No Amapá, feminicídio é um crime que não se apaga

Por Bianca Andrade Publicado em: 30/08/2021 às 15:58

Imagem ilustrativa para reportagem sobre Rosenilda Sarmento, vítima de feminicídio no Amapá

A imagem acima é de autoria de Rudja Santo/Amazônia Real e mostra familiares de vítimas em frente ao cemitério, no centro de Macapá, em ato contra o feminicídio no dia 12 de agosto.

São Paulo (SP) – “Meus filhos perguntam por que eu não tenho mão, querem saber o motivo. ‘Ah, mãe, o papai tem mão’.” Rosenilda respira fundo e diante de Clarissa, de 4 anos, e Iago, de 3, desconversa, prefere afirmar que foi um “acidente”. Mas resta a dor de omitir a verdade. “Faço o possível para não chorar por causa dos meus filhos. Minha vida mudou, agora é outra, mas só eu sei como está dentro de mim.”

Há 6 anos, Rosenilda Sarmento, de 36 anos, sofre com as lembranças do passado. Em 13 de setembro de 2015, ela foi vítima de uma tentativa de feminicídio. Seu algoz: um vizinho, Leonai Brito dos Reis. Por tentar se defender, foi brutalmente agredida com golpes de terçado (arma branca), que lesionaram sua cabeça, rosto, seios, além de ter seus cabelos cortados. Mas algumas marcas permanecem até hoje. Sua mão esquerda foi decepada, e os dedos da mão direita foram mutilados. Ela estava grávida de 4 meses e perdeu o bebê com a agressão.

Em 14 de dezembro de 2015, Leonai Brito foi condenado a 11 anos e 4 meses de prisão por tentativa de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima e a existência de feminicídio, menosprezo ou de discriminação de sua condição de mulher, tornando um crime hediondo). Este foi considerado o primeiro caso de tentativa de feminicídio julgado no estado do Amapá.

Julgamento de Leonai Brito em 2015 (Foto: Bianca Andrade/Amazônia Real)

À Amazônia Real, Rosenilda Sarmento conta sobre os traumas e como conseguiu reconstruir sua vida desde então. Não há um dia em que ela não seja forçada a lembrar da violência que sofreu. Hoje, ela precisa de ajuda para pentear os cabelos, se vestir, colocar o sutiã e os brincos. Quem faz isso é Edivaldo Pinheiro, seu companheiro. “Quando pergunto se fica chateado, ele diz que não, tem paciência comigo, cuida bem de mim, dos meus filhos, fala que sou uma mulher muito bonita. Só tenho que agradecer a Deus por estar viva.”

Por não ter convivido com a mãe, ela cresceu morando com desconhecidos. Isso a fez sonhar com uma casa própria. Ela e o pai, com quem vivia, sempre foram muito pobres. Ele trabalha com serviços avulsos. Ora o chamam para uma roça, ora para fazer cerca. “Mesmo ganhando pouco, meu pai decidiu me ajudar na construção de uma casa próxima da dele. Então consegui uma pessoa para armar e cobrir a casa, usamos madeira usada, faltava porta, janela, era uma bandola (casa pequena)”, lembra Rosenilda Sarmento.

‘Só senti os golpes’

Rosenilda Sarmento na orla de Macapá (Foto: Arquivo pessoal)

E tudo aconteceu na tão sonhada casa. Rosenilda recorda que desde a mudança para seu novo lar, o vizinho Leonai Brito dos Reis começou a persegui-la. O imóvel ficava localizado em uma área de ponte conhecida como “Passarela Bons Amigos”, em Cutias, município localizado a 138 quilômetros de Macapá, habitado por comunidades ribeirinhas, que sobrevivem da pecuária, agricultura e piscicultura. Rosenilda Sarmento conhecia o seu algoz, mas jamais imaginaria que ele poderia atacá-la.

Após retornar de um passeio dominical, por volta de 20h, Leonai já estava dentro da casa de Rosenilda Sarmento. ”Ao trocar de roupa para dormir, ele pulou por trás de mim e me agarrou. Eu resisti. Então ele disse que se eu não ficasse com ele, não ficaria com mais ninguém! Foi aí que percebi que ele estava com o terçado (facão)”, recorda.

Nesse momento, houve uma queda de energia – um problema recorrente no estado do Amapá. “Aí não deu para ver quase nada, na fuga. Só senti os golpes, onde ele pudesse ia me cortando. Eu desmaiei. Ao acordar, eu estava numa poça de lama, gritei por socorro, veio a mulher do meu primo e perguntou o que havia acontecido e chamou a polícia.”

Levada para o Pronto-Socorro da capital amapaense, a cerca de 3 horas de viagem, a vítima conta que o pior foi ao amanhecer. “Quando acordei e vi como eu estava, entrei em desespero, senti tristeza, ódio. Como eu ia sobreviver a isso? Quando a pessoa nasce com alguma deficiência física ela se acostuma a viver assim, mas eu não”, lembra.

Doméstica desde os 13 anos, Rose, como também é chamada, sempre foi vaidosa. Gostava de trabalhar, de sair com as amigas, mas com o passar dos dias e as duras lembranças, ela foi ficando cada vez mais traumatizada com a sua recuperação. “Percebia as pessoas olhando, me viam sem minha mão. Quando eu me olhava no espelho, sentia vergonha de mim.”

Por segurança e para dar continuidade ao seu tratamento, Rosenilda Sarmento morou por alguns meses em Macapá, onde conheceu Edivaldo Pinheiro. Entre ligações e conversas pelo celular, ambos foram se conhecendo melhor até que decidiram ficar juntos. Dessa união, nasceram Clarissa e Iago. Rose também é mãe de 3 filhos do primeiro casamento.

Apesar dos traumas, a sobrevivente da violência contra a mulher conseguiu receber um benefício do INSS e busca ser feliz com a sua família, na qual tem total apoio, e diz que encontra forças no amor. ”Para as meninas e mulheres que já sofreram abusos, estupros, violências como eu já sofri, que tenham força, sejam guerreiras e se levantem!“, aconselha.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e parceiros relatam que ao longo da vida, uma a cada três mulheres é submetida à violência física ou sexual por parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um não parceiro. O feminicídio é uma circunstância qualificadora do crime de homicídio, previsto na Lei 13.104/2015, motivado por razões da condição de sexo feminino, com pena de reclusão de 12 a 30 anos.

O Agosto Lilás

Família de Kátia Silva no Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real)
Neia Miranda, mãe de Emily Monteiro, vítima de feminicído participa do Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Neia Miranda, mãe de Emily Monteiro, vítima de feminicído participa do Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Raimunda, mãe de Janete, vítima de feminicídio participa do Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Neia Miranda, mãe de Emily Monteiro, vítima de feminicído participa do Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Neia Miranda, mãe de Emily Monteiro, vítima de feminicído participa do Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Família de Janete, vítima de feminicídio participa do ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real
Ato contra o feminicídio em Macapá (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que busca resgatar a cidadania feminina, completou 15 anos. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que em 2020 o Brasil teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, média de 34,5% do total de assassinatos.

Nem todos os casos de violência contra a mulher terminam com a condenação dos réus. É por isso que mesmo com uma lei que os amparam, os familiares das vítimas de feminicídio no Amapá se unem e promovem atos que se estendem também pelos demais Estados brasileiros. Um deles aconteceu no último dia 12, para marcar o Agosto Lilás, uma campanha de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Em particular, o 12 de agosto é marcado como o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, data em que a cabo da Polícia Militar Emily Karine de Miranda Monteiro foi assassinada pelo seu ex-cônjuge, Cassio Mangas, em 2018.

“Infelizmente, a minha filha virou um ícone contra o feminicídio”, lamentou Aldineia Monteiro, mãe de Emily. O ato foi realizado em um cemitério de Macapá, uma forte mensagem para a sociedade. “Foi escolhido para simbolizar que, por conta de um machismo, as nossas mulheres, nós, estamos acabando todas no cemitério, sendo mortas por esse homem que não aceita fim de relacionamento”, explica Aldineia.

A mãe de Emily informa que algumas famílias já perderam a confiança na Justiça e têm deixado de participar dos atos. Outras, por serem pobres, não têm dinheiro para chegar aos locais. “Quem tem suas filhas que foram tiradas, não desistam, façam manifestações, chamem os grupos, porque nós estamos aqui para isso”, conclama.

Para Aldineia, a participação dos homens também é importante. “Não estamos contra eles, mas lutando contra o ato hediondo que alguns homens cometem por pensar que a mulher é propriedade”. A mãe de Emily reforça que em briga de marido e mulher tem que meter a colher, é preciso denunciar para acabar com a impunidade.

Segundo Aldineia, o processo do réu Cássio Mangas está em Brasília, com previsão de um novo julgamento neste semestre. “Espero que seja a última instância e não haja mais brechas para ele recorrer. Vivo a dor da perda, a agonia e a espera são muito longas. São três anos sem a minha filha e até agora ele só está ganhando tempo. Eu, a minha família e toda sociedade pedimos e esperamos essa resposta, que a perda da minha filha não seja em vão. Claro, não vai trazê-la de volta, mas eu quero que a justiça seja feita e que esses atos alertem muitas mães, famílias que estão passando por isso.”

Como denunciar

A promotora pública, Alessandra Moro (Foto: Ascom MPAP)

De acordo com a titular da Promotoria de Justiça e Defesa da Mulher do Amapá, Alessandra Moro, houve um aumento significativo de denúncias no período de pandemia. De janeiro a agosto de 2021 foram realizados cerca de 400 atendimentos virtuais às vítimas de violência doméstica. Em outubro de 2020 e março deste ano, a Amazônia Real publicou a série Um Vírus e Duas Guerras, em que faz um balanço do feminicídio nos estados da região Norte. No Amapá, os dados desse tipo de crime só foram disponibilizados por meio da Lei de Acesso à Informação. De janeiro a agosto de 2020, já em meio à pandemia, o estado registrou 155 casos de homicídios de mulheres, ante os 153 de todo o ano de 2019.

O MP investe em ações de repreensão, conscientização e encorajamento para que a vítima quebre o silêncio e se liberte do chamado “ciclo da violência”. Isso porque o femicídio, na maioria das vezes, é precedido por violências psicológicas e físicas Se esse ciclo não for interrompido, denunciando o agressor a tempo, pode ser tornar um crime de feminicídio.

“Foram criados mecanismos de atendimento virtual, sendo disponibilizado números exclusivos de celular, aplicativo SOS Mulher, a vítima também pode enviar sua denúncia e requerer medidas protetiva através de e-mail, solicitar orientações jurídicas, para garantir que sua denúncia seja de forma segura e eficaz, incluindo plantões 24h”, explica Alessandra.

A promotora destaca os recentes avanços na legislação brasileira com a inclusão no Código Penal do crime de violência psicológica contra a mulher. “Agora o nosso código inclui o risco à integridade psicológica como um critério para afastamento imediato daquele agressor do local de convivência com a vítima”, informa a promotora. Essa conduta criminosa tem pena de reclusão de 6 meses a 2 anos e multa.

Para Alessandra Moro, essas relevantes mudanças contribuem com o sistema de combate à violência contra a mulher e reforça o trabalho das instituições que atuam no apoio às vítimas. “Temos de construir uma sociedade em que a mulher se sinta segura e protegida como afirmação da sua liberdade, reconheça a sua dignidade e a valorize”, finaliza.

Uma história que não termina

Após o fechamento da reportagem e antes das programações do Agosto Lilás finalizarem, o Amapá registrou mais uma vítima de feminicídio. Desta vez, foi a professora Simone Luz de Freitas, de 47 anos. Ela foi assassinada pelo ex-marido, Nicodemos Dias Alcântara, em um rio do município de Mazagão.

Nico, como era conhecido, foi preso no dia 27 de agosto. Investigações policiais apontam que Simone sofria violência doméstica havia anos e já tinha solicitado medida protetiva de urgência. Mas ela declinou e não compareceu na audiência, ocorrendo assim o arquivamento do processo.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Citações

"Infelizmente, a minha filha virou um ícone contra o feminicídio", lamentou Aldineia Monteiro. Ela é mãe da cabo da Polícia Militar Emily Karine de Miranda Monteiro, que foi assassinada pelo seu ex-cônjuge, Kássio Mangas, em 12 de agosto 2018. A data é marcada pelo Dia Estadual de Combate ao Feminicídio.

Links:

Citações e referências

Fórum de Segurança Pública: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/6-a-violencia-contra-meninas-e-mulheres-no-ano-pandemico.pdf

Amazônia Real: https://amazoniareal.com.br/category/um-virus-e-duas-guerras/

https://amazoniareal.com.br/no-amapa-os-dados-de-feminicidios-so-saem-por-meio-da-lei-de-acesso-a-informacao-08-10-2020/

Nacões Unidas Brasil: https://brasil.un.org/pt-br/115652-oms-uma-em-cada-3-mulheres-em-todo-o-mundo-sofre-violencia

Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm

Leis Estaduais: https://leisestaduais.com.br/ap/lei-ordinaria-n-2404-2019-amapa-institui-o-dia-estadual-de-combate-ao-feminicidio

JusBrasil: https://www.jusbrasil.com.br/processos/nome/36233006/kassio-de-mangas-dos-santos

Local de Cobertura

São Paulo

Bianca Andrade

Nascida em Macapá, capital do Amapá, Bianca Andrade é publicitária, especialista em Comunicação Social e assessoria de comunicação. Há três anos ingressou na Agência Amazônia Real, iniciando seu primeiro trabalho na equipe com a matéria sobre a abertura da Renca para a mineração. ([email protected])