Testemunhas suspeitam de violência contra a mulher ou vingança na morte de coordenadora MAB

Por Cícero Pedrosa Neto Publicado em: 26/03/2019 às 00:23

Para moradores do assentamento Salvador Allende, os seis homens acusados premeditaram o crime. A imagem acima mostra policiais na casa de Dilma Ferreira no dia 23 de março (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Tucuruí (PA) – Testemunhas ouvidas pela reportagem da Amazônia Real no assentamento Salvador Allende, onde foi assassinada a coordenadora regional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Dilma Ferreira Silva, no município de Baião, nordeste do Pará, baixo rio Tocantins, disseram no sábado (23) que suspeitam que o crime tenha sido motivado por violência contra a mulher ou vingança. Já o MAB levanta suspeitas de que o assassinato da ativista tenha sido um recado para todas as lideranças do movimento no Pará. Até o momento a Polícia Civil não apresentou uma resposta para a motivação e não prendeu os seis homens suspeitos pelos crimes.

Embora esteja localizado em Baião, o assentamento Salvador Allende fica mais próximo do município de Tucuruí, no sudeste do estado. Também era em Tucuruí onde Dilma desenvolvia sua militância no MAB, cujo polo de atuação fica no município. Na ida ao lugar, a reportagem acompanhou uma comissão de representantes do MAB para falar com testemunhas dos assassinatos. Dilma, de 45 anos, o marido Claudionor Amaro Costa da Silva, de 43, e Milton Lopes, 38, agora identificado como vizinho do casal, foram amordaçados e mortos a facadas entre a noite de quinta-feira (21) e a zero hora de sexta-feira (22). A ativista teve o a garganta cortada e há suspeita de estupro. O Instituto Médico Legal (IML) de Tucuruí deverá divulgar o laudo dos assassinatos em 30 dias.

“Agora que vai ficar bom!”

Marcas de Sangue das vítimas na porta da casa de Dilma (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

No assentamento Salvador Allende, os moradores estão com medo e pediram que seus nomes não sejam divulgados. A primeira testemunha ouvida pela reportagem contou que sua família era amiga do casal Dilma e Claudionor, com quem a coordenadora do MAB estava casada há 8 meses e não tinha filhos. A ativista era viúva e deixou uma filha adulta. Essa testemunha disse que deixou o mercadinho por volta das 21h de quinta-feira (21), junto com sua esposa, e viu os seis homens desconhecidos no local, sendo que eles “bebiam muito”.

“A gente estava bebendo lá com o Milton, e a Dilma e o Cláudio [Claudionor Costa] estavam com a gente na mesa, mas eles não bebiam”, disse a testemunha. Ela afirmou que deixou o local sem notar anormalidades, exceto pelo comentário disparado por um desconhecido à sua esposa: ‘não vai, morena! Agora que vai ficar bom!’”, revelou a testemunha, que levantou a suspeita de violência contra a mulher, como motivação para o crime.

Uma segunda testemunha contou à Amazônia Real que presenciou a chegada dos seis homens suspeitos do crime ao mercadinho de Dilma e Claudionor, local onde também funcionava como bar durante a noite. “Eles perguntaram se tinha combustível para vender. Como não tinha, eles saíram em três motos. Depois voltaram e ficaram bebendo lá na Dilma. O pessoal disse até que o ‘Cláudio’ tirou gasolina da moto dele e colocou numa Bros [modelo de uma das motocicletas] de um desses homens quando eles voltaram e ficaram lá bebendo”

Esses seis desconhecidos são descritos em nota divulgada no sábado (23), pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup). Eles teriam chegado ao mercadinho em três motocicletas, por volta de 20 horas da quinta-feira (21), para consumir bebida alcoólica, disse o a secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará.

“Na ocasião, Milton bebia no local com mais duas pessoas. Por volta de 21h30, ficaram no local apenas Milton e os seis homens bebendo do lado de fora do bar, enquanto que Claudionor e Dilma estavam dentro do imóvel deitados. Dilma dormia no último cômodo do imóvel”, descreve a nota da Segup.

“Posso estar enganado, mas esse crime tem algo de vingança: ninguém mata com tanta brutalidade. Nunca vimos algo assim nesse assentamento”, disse a terceira testemunha ouvida pela reportagem. “Tem jeito de premeditado”, disse ela.

Casa de Dilma Ferreira, no assentamento Salvador Allende (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

O coordenador do MAB em Tucuruí, Roquevam Alves Silva, que estava na comissão que foi ao assentamento Salvador Allende, tinha declarado anteriormente à agência Amazônia Real que o crime não tinha relação com o conflito agrário, mas agora suspeita que o ativismo de Dilma contra a obra da hidrelétrica de Tucuruí possa ter sido a motivação para os assassinatos.

“Por que só Dilma teve a garganta cortada daquele jeito? A morte da Dilma, eu tenho dito para os companheiros e companheiras, é um recado para o nosso movimento e para todos os movimentos sociais da região”, afirma Roquevam, que é ativista no MAB em Tucuruí há de 17 anos.

Dilma e sua família receberam um lote de terra para morar no assentamento Salvador Allende, em 2010. Maranhense, ela e a família foram atingidas pela construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, obra considerada a maior no país, inaugurada em 1984, durante a ditadura militar, com o intuito de abastecer os grandes projetos de mineração que estavam sendo empreendidos na Amazônia, como era o caso da Albras e da Alunorte (hoje, Hydro Alunorte). Ela ingressou no MAB em 2005 e reivindicava a reparação dos danos aos atingidos pela barragem da usina, informou o representante o movimento.

Roquevam disse, ainda, que Dilma representava a força feminina do movimento. “Espero que seu exemplo possa inspirar a cada um de nós, e alertar para os riscos que os integrantes do movimento, por conta da nossa luta, corremos. Somos ameaçados e não é de hoje. Eu mesmo já perdi as contas do quanto já me juraram de morte ou contrataram pistoleiros pra me matar”, afirmou o coordenador do MAB, atribuindo a morte de Dilma à luta que ela tinha em favor dos atingidos por barragem na região.

Novas mortes

Policiais vistoriam a casa de Dilma, local do triplo homicídio (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

A ida ao assentamento Salvador Allende, a reportagem encontrou a força-tarefa da Polícia Civil, composta por 12 policiais e três viaturas. O delegado Rommel Souza, superintendente regional da Polícia Civil do Lago de Tucuruí, disse que eles estavam “enviando todos os esforços, no sentido de descobrir a identidade dos assassinos e as motivações dos crimes”.

Os policiais não deixaram os representantes do MAB de Belém, Marabá e Tucuruí entrarem na casa de Dilma. A equipe da Amazônia Real foi proibida de fotografar a residência por dentro.

Ao chegar no assentamento Salvador Allende, a reportagem ouviu relatos de moradores amedrontados sobre outras três mortes e um incêndio ocorrido após a morte de Dilma, mas os policiais da força-tarefa disseram desconhecer os fatos.

Procurada nesta segunda-feira (25), a Segup confirmou que três pessoas foram encontradas carbonizadas em uma fazenda, situada nas imediações da vicinal da Martins, na zona rural de Baião, distante 80 km da cidade de Tucuruí. As vítimas são um casal de caseiros e um tratorista. A fazenda fica a 14 km do assentamento Salvador Allende, onde mataram Dilma. Segundo a Segup, não é possível afirmar se existe relação entre os dois crimes.

Sobre a morte de Dilma, a Segup diz que a Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá foi destacada para atuar no caso, mas não identificou ou prendeu os acusados, e não sabe a motivação do triplo homicídio: “não é possível fechar uma linha de investigação para a motivação do crime”, disse em nota a secretaria.

Poeira e abandono

Ramal de acesso ao assentamento Salvador Allende (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

O acesso ao assentamento Salvador Allende (nome que homenageia o chileno Salvador Allende Gossens (1908-1973)) se dá por meio da rodovia federal BR- 422, conhecida como Transcametá, já nos limites entre os municípios de Baião, que fica na região nordeste, e Tucuruí, no sudeste paraense. São duas horas de viagem para percorrer os 70 quilômetros que separam as duas cidades, até chegar a antiga “Vila do 50”.

O percurso da rodovia BR-422 é difícil, principalmente, na travessia pelo trecho que passa no território indígena do povo Asurini, repleto de buracos, com pontes quebradas e trechos alagados ao longo da estrada. No km 50, por meio de um cruzamento na rodovia, tem início o ramal que leva mais 20 quilômetros de percurso até chegar ao assentamento Salvador Allende. As casas, de madeira rústica e telha de barro, são bem distantes uma das outras e uma poeira paira nas ruas de terra batida. A energia elétrica e o saneamento básico são precários na comunidade. A população não dispõe de água encanada e se serve dos poços e dos igarapés existentes nas áreas do assentamento.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o assentamento Salvador Allende tem sua origem na ocupação de cerca de 480 famílias, ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da antiga fazenda Piratininga, que pertencia ao fazendeiro Renato Lima, em 2007. O histórico dessa ocupação é violento, com pistoleiros disparando tiros contra o acampamento e fazendo ameaças às pessoas assentadas.

Em 2011, o fazendeiro ganhou uma ação de reintegração de posse na fazenda e a justiça despejou cerca de 50 famílias. Algum tempo depois, porém, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou a medição dos lotes, que deram origem ao assentamento Salvador Allende. Durante os 12 anos do assentamento não foram registradas vítimas por conflitos agrários, diz a CPT.

Som ocultou gritos

Local onde os assassinos beberam no mercadinho da casa de Dilma (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

A reportagem visitou vários vizinhos de Dilma no assentamento Salvador Allende. Eles não quiseram ser identificados por temer algo contra a vida deles. Esses vizinhos disseram ter ouvido “o som tocar mais alto do que o normal” na noite do crime, mas não foram checar se havia algum problema na casa de Dilma. No dia seguinte (22 de março), quando souberam dos assassinatos, disseram que tinham uma certeza: “O som tocava daquele jeito para ocultar os gritos.”

Claudionor Costa (Tucuruí Agora)

O primeiro vizinho que falou com a reportagem disse que soube do crime pela manhã de sexta-feira (22). “Eu estava esperando a van com o meu filho, quando passou um homem lá da fazenda [próxima do assentamento] dizendo: ‘Ei, tem um homem morto lá na casa da Dilma’. Foi quando já correu um monte de gente pra lá e viram que era o Milton, o Cláudio [Claudionor] e a Dilma também”.

“Encontrei Dilma em cima da cama dela. Ela foi amarrada e muito judiada”, disse ele.

Outros vizinhos ouvidos pela reportagem no assentamento Salvador Allende relatam que sentem muita insegurança porque, até o momento, não foram presos os assassinos de Dilma, Claudionor e Milton

“Eu estou sem dormir desde o dia que aconteceu isso [os três assassinatos] e já pedi pro meu marido pra gente ir embora daqui”, afirmou uma amiga de Dilma”.

Uma vizinha e amiga de Dilma revelou seu temor: “até agora não fui ameaçada. Só que me sinto insegura, porque não sei quem, como foi e porque fizeram isso com ela. Aí fico com medo de acontecer alguma coisa comigo [também]. O que queremos é justiça”.

A cena do crime

Marcas de sangue das vítimas no chão da casa de Dilma (Foto: Pedrosa/Amazônia Real) Neto/Amazônia Real)

De acordo com os vizinhos de Dilma no assentamento Salvador Allende, os assassinatos dela, de Claudionor e Milton aconteceram na quinta-feira (21 de março), antes da zero hora de sexta-feira(22). Segundo eles, a polícia de Tucuruí só foi acionada no dia seguinte pela família da coordenadora do MAB e amigos. O carro do Instituto Médico Legal (IML) e os policiais chegaram ao assentamento por volta das 12h e saiu às 13h30 com os corpos.

Esta informação derruba a primeira nota da (Segup), que disse que a Polícia Civil iniciou as investigações no assentamento por volta da meia-noite da sexta-feira (22).

Um vizinho amigo de Dilma disse que no assentamentos todos souberam dos assassinatos na manhã de sexta-feira (22). “Quando foi de manhã cedo, um rapaz que mora perto [da casa da coordenadora do MAB] foi comprar um pacote de fumo [no mercadinho do casal]. Quando chegou lá, viu o sangue e começou a falar pros vizinhos que tinha alguma coisa errada ali”, afirmou esse amigo de Dilma.

“Chegamos na casa da Dilma antes da polícia, logo quando a notícia se espalhou, umas sete e meia da manhã. Ela estava na cama dela, de camisa vermelha e bermuda jeans, com os punhos amarrados, e com marcas de facada no pescoço e na costela”, afirmou outra vizinha. Ela disse, ainda, que a porta dos fundos da casa, que dá acesso ao quintal, estava entreaberta, assinalando por onde teriam fugido os assassinos

Em nota, a Segup disse no sábado (23) que o corpo do Claudionor estava amordaçado e amarrado com uma rede. “Ele recebeu diversas cutiladas de faca pelo corpo, não sendo possível, no momento, saber exatamente quantas foram. Dilma foi morta no último cômodo, também amarrada e amordaçada, e tinha um corte profundo no pescoço. A casa foi revirada. A motocicleta do Claudionor teve o pneu rasgado, retirado da moto e jogado na rua perto do bar/casa. Os suspeitos não eram conhecidos na localidade. O bar e residência foram revirados e alguns objetos de propriedade do casal foram roubados”, diz a secretaria, informando também que encontrou uma faca possivelmente usada pelos criminosos na casa.

A Amazônia Real procurou a direção do Instituto Médico Legal (IML) em Tucuruí para saber como está o andamento da produção dos laudos sobre os assassinatos, mas um funcionário encontrado no local disse que os resultados só serão divulgados em 30 dias.

Dilma estava feliz

Dilma Ferreira da Silva tinha 45 anos e deixou uma filha adulta (Foto: MAB)

Segundo o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o corpo de Dilma foi velada e homenageada no sábado (23) pela família em Monte Castelo, distrito do município de São Raimundo Doca Bezerra, no Maranhão. A ativista era viúva do primeiro casamento e deixou uma filha adulta.

O corpo de Claudionor foi sepultado no cemitério de Tucuruí, e Milton em Baião, ambas no Pará.

Conforme a direção do MAB, nem Claudionor e nem o vizinho Milton atuavam no movimento de atingidos pelas barragens. Há poucos meses, Dilma havia conseguido um emprego na Secretaria Municipal de Educação de Tucuruí. Ela atuava como monitora, para acompanhar o traslado de alunos no transporte escolar, desde o assentamento, passando por comunidades próximas, até chegarem na escola que se encontra na “Vila do 50”. Milton era casado com Simone, a merendeira da escola onde Dilma havia sido lotada, com as funções já mencionadas acima, o que reforça a amizade entre os casais.

Uma das vizinhas de Dilma disse à reportagem que ela estava feliz com o novo emprego: “não sei por que isso foi acontecer. Ela nunca fez mal para ninguém, pelo contrário, ajudava quem podia. Ela estava toda contente com esse serviço [referindo-se ao novo emprego de Dilma], porque o movimento da taberna não estava bom. Eu estou apavorada com o que aconteceu”, disse a mulher, temendo pela sua segurança também. (Colaborou Kátia Brasil)

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Sobre a matéria

Cícero Pedrosa Neto

Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados ao meio-ambiente, impactos sociambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humano na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo, documentarista, roteirista, podcaster e mestre em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará. ([email protected])