Memórias do poeta Thiago de Mello numa viagem a Manaus de antigamente

Por Elvira Eliza França Publicado em: 30/08/2021 às 20:11

A imagem acima, de autoria de Alberto César Araújo, mostra o poeta na beira do rio Andirá em viagem para Barreirinha, no baixo Amazonas, em 1997.

Neste período da pandemia, é possível realizar uma longa e interessante viagem, sem sequer sair de casa, nem gastar com passagem, a não pagar por um bom livro para ler. Para tal, a editora Valer publicou, em 2020, a quinta edição do livro de Thiago de Mello, “Manaus: amor e memórias”, com 192 páginas e lindas fotos em preto e branco, que proporcionam uma incrível viagem no tempo da Manaus de antigamente.

Quem anda pelas ruas de Manaus e vê os antigos casarões, pode se perguntar quem foram seus habitantes de outros tempos. Também lê nomes de muitas pessoas desconhecidas, registrados nas placas das ruas, praças, colégios e prédios públicos. O livro de Thiago de Mello possibilita localizar, nas décadas de 1930, 1940 e início de 1950, várias pessoas, cujos nomes estão registrados na história de Manaus e do Amazonas. Muitos eram ainda crianças e adolescentes, tal como o autor, enquanto outros eram adultos que estavam ajudando os mais novos na construção da história da capital do Amazonas. Mesmo que não tenham seus nomes gravados nas placas de ruas, praças ou prédios públicos da cidade, são personagens que estão presentes na história da cidade e o livro as torna conhecidas por nós.

Assim, por meio das palavras nas linhas e das fotos de Manaus de antigamente, Thiago vai apresentando ao leitor os vários protagonistas de outros tempos. Nesse sentido, a leitura se transforma num passeio de bonde pela cidade de outros tempos e o leitor é apresentado a um estilo de vida que nem sempre era pacato e calmo, numa cidade que vivia os reflexos da crise da borracha, após a década de 20. As palavras-guias do poeta mostram como a Manaus de outros tempos dá um parâmetro das diferenças de como era viver na capital do Amazonas numa época diferente da que estamos vivendo no atual momento, e com alguns problemas que permaneceram e se intensificaram.

A primeira versão do livro foi escrita no início da década de 80 e publicada em 1983 com o apoio de muitos amigos. Thiago havia retornado do exílio na Europa e, de volta a Manaus, reencontrou amigos que reavivaram suas memórias que ele havia preservado enquanto estava vivendo em vários países da Europa. Tinha retornado de um autoexílio para se preservar do risco de morrer na prisão em sua terra natal, tal como havia acontecido com outros intelectuais, artistas, trabalhadores, estudantes etc., porque se opunha à maneira autoritária de governar dos militares e sua luta tinha como arma seus poemas com os quais travava combates com o autoritarismo predominante no país.

Enquanto esteve no exílio, fora alimentado afetivamente pelas memórias de infância e adolescência vividas em Manaus, e pelo seu amor à floresta, à natureza, aos seres vivos que nela viviam, e contestava a violência e a barbárie, resistindo com a esperança de um amanhã melhor. Recebia poucas notícias, mas as multiplicava no sentimento de se fortalecer na sua produção poética. Assim, no retorno a Manaus, concretizava o sonho de registrar as memórias de infância e adolescência, tão presentes e significativas durante o período de exílio.

“Não consultei arquivos e muito pouco me vali de palavras impressas. Apenas ouvi, aticei fogueiras, revolvi águas paradas de fundo de açude. Conversei com gente que viveu e gosta de lembrar, porque gostou de viver, o tempo da Manaus que se conta. Aqui prevalecem as criaturas participando da vida da cidade” (p.31). Thiago acrescenta que, para ele, esse é um “texto cuja matéria-prima é a memória, ele não vale apenas da minha, mas da memória de antigos companheiros de estudo ou de estrada, de rio e de rua, de canoa e de canção. Vários bem mais vividos e mais sábios, da geração de meus pais. Nenhum se fez de rogado. E mais de um se espantou, ao cabo da conversa, ao descobrir acesas as virtudes de sua memória, tanto tempo empoeirada pelo afã de ganhar dinheiro, que atualmente toma conta da cidade” (p.29).

Desafios de duas ditaduras militares

Desfile militar em Manaus com a presença dos ex-governadores João Walter e Paulo Pinto Nery (Foto: @manausdeantigamente)

O poeta e escritor amazonense Amadeu Thiago de Mello nasceu em Porantim do Bom Socorro, no município de Barreirinha, interior do Amazonas, em 1926. Com cinco anos de idade, veio com a família morar em Manaus, onde estudou em escolas públicas na infância e adolescência. Aos 20 anos, em 1946, foi para o Rio de Janeiro estudar medicina e lá começou a publicar poemas no jornal Correio da Manhã, tornando-se um poeta conhecido e elogiado por escritores de renome da época. Além de escrever, Thiago também fazia traduções de livros e poemas e seu envolvimento com a literatura o levou a abandonar o curso de medicina quando estava para cursar o quinto ano, porque queria se dedicar à prosa e aos versos.

Em 1951, com 25 anos, Thiago publicou seu primeiro livro: “Silêncio e Palavra”, considerada pelo crítico Álvaro Lins como um marco na poesia contemporânea. Quando estava com 29 anos, em 1955, foi aclamado membro da Academia Amazonense de Letras. Em 1960, num encontro no Rio de Janeiro com o escritor Jorge Amado, conheceu o escritor e poeta chileno Pablo Neruda, a quem reencontrou no ano seguinte, em 1961, quando estava com 24 anos e foi designado como adido cultural na Embaixada do Brasil no Chile. Em Santiago, Neruda convidou Thiago para morar em sua casa e assim os dois poetas deram início a uma grande amizade e parceria na tradução mútua de poemas e produção de trabalhos literários. Foi nesse mesmo ano que ele inaugurou o Centro Brasileiro de Cultura de Santiago do Chile, que passou a funcionar no prédio anexo à embaixada.

Após o golpe militar no Brasil, em 1964, Thiago pediu exoneração do cargo de adido cultural. No ano seguinte estava no Rio de Janeiro, por ocasião de uma conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA), a ser realizada no hotel Glória, no dia 17 de novembro de 1965. Juntou-se a um grupo de intelectuais e artistas que programaram a realização de um dos primeiros protestos contra o governo militar. A OEA só poderia realizar conferências em países democráticos e não havia cabimento de estar em ocorrendo num país que havia sofrido um golpe no governo. Na verdade, o evento havia sido programado no ano anterior e foi mantido mesmo assim.

O general e presidente Castello Branco faria a abertura da conferência e então o grupo se organizou e chamou outros artistas e intelectuais para protestar na frente o hotel. Segundo publicações da época, o grupo organizador esperava adesão de muitas pessoas, mas só apareceram nove: os jornalistas e escritores Antonio Callado, Márcio Moreira Alves e Carlos Heitor Cony; os cineastas Glauber Rocha, Márcio Carneiro e Joaquim Pedro de Andrade; o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues; o diretor teatral Flávio Rangel; e o poeta Thiago de Mello, que elaborou uma das faixas.

No momento em que o general Castello Branco estava chegando ao hotel, o grupo, com faixas nas mãos, começou a gritar “Abaixo a Ditadura!”, e ainda vaiaram o presidente. Apesar de ser um grupo pequeno, no local havia repórteres, fotógrafos e correspondentes internacionais que registraram a manifestação e a resposta repressiva dos policiais que levou todos para a prisão. Após um mês, Thiago conseguiu sair de lá, e o grupo, que era de nove pessoas ficou conhecido como “Os Oito da Glória”. A manifestação e prisão do grupo gerou muitos protestos em vários países e também no Brasil. A partir de então, os militares passaram a ser mais rigorosos ainda no trato com os artistas e intelectuais, intensificando a repressão.

Thiago voltou para o Chile e pediu asilo político a Salvador Allende. Discordava dos Atos Institucionais que o governo militar brasileiro usava para governar, impondo a força e o autoritarismo e institucionalizando a tortura como método interrogatório de prisioneiros. Protestando contra os atos institucionais, Thiago escreveu o poema “Os Estatutos do Homem: Ato Institucional Permanente”, com 14 artigos, nos quais manifestava seu protesto sob a forma de versos. No poema, instituía o amor à vida, a solidariedade, a esperança, a confiança mútua, a parceria alimentar mesmo entre inimigos e com sabor do suor e de ternura, a dor somente por não poder dar amor, o traje branco da paz, o amor, a beleza, a liberdade, e o dinheiro como espada fraternal para cantar a liberdade. O poema foi traduzido por Pablo Neruda e se tornou mundialmente conhecido como arma contra a ditadura, com uma proposta de paz. Esse e outros poemas de Thiago chegaram a ser traduzido para mais de 30 idiomas.

Thiago com Pablo Neruda, no Chile,
em 1961 (Foto: Arquivo JB)

Ainda estava no Chile em 1973, quando a ditadura militar também chegou lá. Certo dia, caminhando na Gran Avenida, Thiago foi abordado por três militares armados. Com metralhadoras nas mãos, eles o obrigaram a se ajoelhar no chão e ameaçaram matá-lo. No livro “Manaus: amor e memórias”, o poeta relata como foi essa experiência e qual a relação que teve com as memórias de infância de quando vivia em Manaus: “Mata aqui mesmo? Consultou um dos soldados. Poucas horas antes, eu assistira o fuzilamento de dois homens, em plena calçada da avenida proletária, de um deles jamais esquecerei o olhar. Durante o silêncio – frações de segundos, quero dizer, uma eternidade – entre a pergunta e resposta do sargento, dezenas, centenas, não sei quantas cenas, nítidas e vivas, me passaram, sucessivas e fugazes pela memória; muitas delas pertenciam à minha infância…” (p.29).

Depois dessa experiência, Thiago foi para a Argentina e depois para vários países da Europa, sendo que, com a ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur), recebeu exílio na Alemanha. “Foi quando me descobri ponderando sobre a imensa importância de Manaus na minha vida, a propósito da qual eu jamais antes me detivera, a seco e a frio, que é uma forma de dizer ardentemente. Nas cartas para minha mãe comecei a relembrar episódios e pessoas da minha distante Manaus que, pelas notícias dos raros jornais que chegavam lá ao outro lado do mar, eu já sabia em etapas de intensa transformação” (p.29).

Buscando outras memórias para construir um livro

Thiago de Mello na Praça Dom Pedro, no centro histórico de Manaus
(Foto: Semcom)

As memórias da antiga Manaus sempre estiveram presentes na vida do poeta principalmente durante o período de exílio. Em 1979, devido às pressões internas e externas, o governo militar brasileiro deu início ao processo de redemocratização, e assinou a lei de anistia, que permitiu que os exilados políticos retornassem ao Brasil sem serem presos. Assim, no início dos anos 80, Thiago retornou ao país e, ao chegar em Manaus foi recebido em clima de festa. Trazia consigo o objetivo da escrita do livro de memórias, e foi em busca das pessoas amigas que havia conhecido na infância e adolescência, para reavivar as memórias e saber como elas e a cidade estavam.

“Trabalhei como os olhos abertos da memória, com substância que faz parte do presente. Como todo mundo sabe, o futuro começa a cada manhã que nasce, mas tem as suas raízes, das quais jamais se desgarra, no âmago da matéria ardente, mesmo revestida de cinza, a que chamamos de passado” (p.31).

Foi assim que nasceu o livro de Thiago de Mello “Manaus: amor e memórias”, cuja primeira edição foi em 1983, e foi impresso com o apoio financeiro de muitos amigos para a impressão dos primeiros mil exemplares. Agora, reeditado pela quinta vez, o livro proporciona um embarcar nas palavras-guias, para que o leitor possa conhecer e amar aquela cidade que deu os alicerces a Thiago de Mello durante sua vida, principalmente durante o exílio. E nesse percorrer dos caminhos já percorridos por ele no passado, ele vai apresentando ao leitor os antigos comerciantes, empresários, catraieiros (condutores de barco), costureiros, médicos, farmacêuticos, parteiras, esportistas, músicos, escritores, jornalistas, cientistas, agentes de serviços públicos etc. Dá destaque aos professores e outros estudantes dos seus tempos de infância e adolescência, e inclui os respectivos pais e mães de alguns. Comenta sobre as mulheres de família, e as moças que despertavam as paixões nos rapazes. Inclui as mulheres que atuavam nos bordeis, divertindo homens de negócios e políticos nas noites amazonenses.

Seguindo uma ordem alfabética, apresenta as muitas personagens que fizeram parte de sua infância e adolescência e, além dos respectivos nomes, fornece características e estilos de comportamentos, além de detalhes sobre a família, profissão, ou algum fato curioso de suas vidas. É justamente isso que vai possibilitando ao leitor se familiarizar com essa comunidade presente na história de Manaus, à medida que vai entrando cada vez mais na memória de Thiago e de seus amigos. É isso que faz com que as experiências vividas de outrem, relatadas no livro, se tornem experiências do leitor, o que é um mérito da publicação, que possibilita a apropriação histórica no ato de ler.

Os bondes da Manaus Tramways

Bonde no centro de Manaus (Foto:@manausdeantigamente)

Um dos pontos de saída para essa viagem literária que Thiago proporciona ao leitor para conhecer Manaus de antigamente é a estação da praça Oswaldo Cruz, localizada ao lado do porto. Hoje, o local está tombado pelo patrimônio histórico, mas está totalmente abandonado. Ali funcionava a estação da Manaus Tramways, companhia inglesa que trouxe os bondes para Manaus, possibilitando o transporte da população para vários bairros da cidade.

Thiago contextualiza o leitor nos costumes da época, e ali na estação relembra o hábito de tomar “refresco de guaraná gasoso, servido no quiosque sempre muito limpo, montado por um francês, onde também se podia tomar um excelente pega-pinto, também chamado pela criançada de rala-rala” (p.100). Com o bonde já andando, o leitor vai saber o que significava morcegar naqueles tempos: o costume dos rapazes subirem e se pendurarem no balaústre do bonde já andando, para depois saltarem, quando a velocidade estava aumentando, para mostrarem as habilidades de coragem e valentia. Chegavam a fazer apostas e competições, inclusive com prêmios, acrescentando que também ocorreram mortes nessa brincadeira perigosa.

Naquela época, o bonde era, também, um meio para aproximar rapazes e moças fisicamente. Dentro do bonde, eles se deliciavam com o aconchego fugaz, possibilitado pelo movimento forçado do veículo de um lado e depois para o outro, nas curvas dos trilhos pelas ruas da cidade. Segundo Thiago, “nenhum namoro chegou a noivado, nenhum noivado deu em casamento, sem a ajuda do bonde” (p.101). A passagem do bonde também era esperada com ansiedade por moças nas janelas das casas, para verem os rapazes com quem flertavam e que acenavam com a mão para elas. Era “um adeusinho, como então se dizia e que era dado só com os dois dedos, e então estávamos namorados” (p.101), explica o poeta.

Em dias festivos, havia bonde com passagem gratuita para os estudantes. Durante o trajeto, os ginasianos e as normalistas iam cantando modinhas e o motorneiro que dirigia o bonde cantava também. Mas havia momentos de tensão nos trajetos, porque havia pessoas na rua que colocavam vidros nos trilhos das curvas, para serem triturados quando o bonde passava. Depois, recolhiam o material para fazer cerol. Por isso, em locais estratégicos das curvas, a companhia dos bondes colocava guardas a postos para surpreender e dar o flagrante em quem fazia isso, porque o cerol já era proibido nas linhas dos papagaios daquela época.

Brincadeiras e atividades sociais e culturais

Centro de Artes Usina Chaminé
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

No decorrer do livro, Thiago também conta sobre as brincadeiras de rua e cantigas de roda (p. 110-1), e relata situações em que as crianças corriam riscos de sofrer acidentes, quando se envolviam nas brincadeiras em locais perigosos. Uma delas era ficar admirando os tanques da Usina de Esgoto, que foi transformado no velho Almoxarifado das Águas, localizado onde hoje é o Centro Cultural Usina Chaminé (p. 23).

Thiago relata: “O portão só se abria quando saía ou chegava o automóvel do diretor, um Ford de bigodes e capota de lona creme, que ali tinha a sua garage e a moradia do seu chofer: o seu Josias, mulato finíssimo de trato. Um filho dele, caboquinho troncudo, uma tarde caiu dentro de um dos tanques enormes e fundos, revestidos de chapas de ferro, eram uns quatro ou cinco tanques daqueles, retangulares, com maquinarias lá por baixo, suponho que bombas; eram destapados, porém grossas correntes serviam de grades: ficar espiando lá de cima o fundo deles, um tempão grande sem nenhuma palavra, era um de nossos encantamentos (p. 171). A operação de salvamento do menino é relatada com muita expectativa, quando um funcionário do almoxarifado, amarrado numa corda, pegou a criança e depois foi puxado por adultos e crianças.

Outra emoção dos estudantes estava nos desfiles cívicos, nos quais aqueles que eram da clientela popular do Gymnásio Amazonense Dom Pedro II competiam com os filhos das famílias abastadas, que estudavam em sistema de internato no Colégio Dom Bosco. Thiago apresenta ao leitor um de seus amigos de infância e adolescência, o poeta Luiz Bacellar, cujo livro de poemas foi carregado por ele enquanto estava no exílio. Também lembra o negro cantor Cândido Ferreira, apelidado de Candoca, que depois se tornou desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, dentre outros amigos.

Um evento importante não só para Manaus, como para o Amazonas e que é abordado no livro, é a formação do Clube da Madrugada, na década de 40. Era uma associação de escritores, que foi inaugurada oficialmente no início dos anos 50, e que tinha sede numa praça pública do centro da cidade. Esse grupo teve o papel de vanguarda na política cultural de Manaus e do Amazonas e, segundo Thiago, foi uma “força canalizadora, capaz de unir todos os órgãos vinculados, por ofício, obrigação ou vocação, ao exercício da arte e ao estímulo da capacidade criadora da cidade, no campo da literatura, da música, do teatro, das artes plásticas, do cinema e, sobretudo, todas as manifestações da arte e da cultura popular” (p.115).

Manaus na recuperação da sua amazoneidade

Thiago de Mello na Praça da Polícia em Manaus em 2002
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Caminhando com Thiago numa cidade que não vivia mais da economia da borracha, o leitor vai conhecer uma cidade que havia retomado a autenticidade cultural e a recuperação da amazoneidade, vivendo a “cultura adquirida na convivência com os seres animais e vegetais, terrestres e aquáticos e com as virtudes materiais e espirituais da floresta” (p. 44). Para o autor, era um tempo […] “em que as pessoas não tinham medo dos transeuntes desconhecidos e em que as janelas nunca tiveram precisão de grades. As janelas dormiam abertas: o único temor que então existia era o de que penetrasse pela casa, soprando de viés, algum vento encanado, misterioso, causador de infalíveis dores de nuca, de lombo ou garganta” (p. 49).

O poeta chama a atenção para a cor branca das vestimentas dos homens, elegantemente vestidos com suas fatiotas de linho bem engomadas, andando pela rua, uma cor que ele continua usando-as até os dias atuais. Conta que, naquela época, o ato de visitar pessoas doentes em suas casas era comum, o que era denominado “fazer quarto” ou “dar quarto”. Nas casas das mulheres grávidas, eram as parteiras quem traziam as crianças ao mundo, e eram elas que depois cuidavam dos bebês durante o período do resguardo materno. Thiago cita os nomes das parteiras Elvira, Adelaide, Avelina, e Etelvina (p. 158). Diz que no período de resguardo, as mães tomavam “canjas, caldos, mingaus de caridade” (p.51) e ainda tomavam Água Inglesa Granado, vinho reconstituinte e comiam marmelada Colombo. Para os visitantes era servido vinho do Porto ou aluá, feito com abacaxi fermentado, denominado “mijo da criança”.

Os sons e odores da cidade

A Fábrica de Cerveja (antiga Miranda Corrêa) na Aparecida
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Nesse passeio a Manaus de antigamente, Thiago estimula a imaginação do leitor, recriando sons, odores e sensações enquanto relata sobre os vários contextos da época. Relembra os sons da Fábrica de Cerveja de São Raimundo (hoje é bairro de Aparecida); o som do apito da Subusina de Luz na Cachoeirinha, onde dormiam os bondes, assim como o da Fábrica de Castanha do Sabbá, no Monte Cristo; o da Usina de Luz nos Tocos; e do Forno do Lixo. Os sons dos apitos dos barcos, rebocador, e o som metálico do hidroavião ao decolar ou aterrissar nas águas do rio Negro, também são lembrados. O hidroavião, primeiro meio de transporte aéreo na cidade, era uma atração para a população que esperava o momento da chegada e da partida.

Mas há muitos outros sons relembrados no livro, como os dos sinos das igrejas, das sinetas do carro da polícia, do carro da assistência e do carro do vendedor de Gelo Cristal. Thiago vai apresentando as personagens daquele contexto, incluindo as vozes cantadas de vendedores de ruas que ofereciam pirulito, quebra-quebra, ervas, cascalho, mingau, mungunzá, merenda, frutas, sorvete e até mocotó. Relembra que após o mocotó ser usado como alimento em casa, os ossos eram recolhidos pelas crianças para serem usados como brinquedo. Conta que quando menino também vendia sorvetes na rua, mas não dá muitos detalhes.

Outros sons para os quais chama a atenção do leitor é o do teque-teque do vendedor de tecidos e o som do realejo no momento em que era lida a sorte para as moças. Além do som estridente do afiador de facas, também menciona os sons dos instrumentos musicais, audíveis próximo às janelas das casas de pianistas e outros músicos da cidade. Thiago leva o leitor para conhecer bares com música ao vivo e clubes onde eram assistidos shows musicais e transmissão de jogo internacional de futebol. Nesse passeio pela Manaus antiga, o leitor também conhece o Cabaré Chinelo e outros locais da zona de prostituição, onde estavam as mulheres que “faziam a vida” e eram chamadas de “raparigas” (p. 183).

Além dos estímulos para a audição, Thiago também usa as palavras para estimular o olfato do leitor, quando o leva para locais onde havia serrarias com cheiros das diferentes madeiras, assim como os locais de comércio de borracha. O odor do matadouro e do mercado com as tartarugas e peixes também está presente, assim como o cheiro das frutas, do café torrado, do camarão e outros importados. O autor relembra o indistinguível o odor do óleo de mutamba (Guazuma ulmifolia) nos cabelos lisos dos homens, assim como da brilhantina, e do pó-de-arroz na face das mulheres. E ao falar sobre as crianças, lembra o cheiro desagradável do vermífugo, do óleo de rícino e óleo de fígado de bacalhau. Mas também delicia o leitor com o cheiro das flores nos jardins das casas das benzedeiras, e o odor das comidas regionais vendidas nas ruas e também oferecidas nas casas das famílias.

Conversas de calçada e estilo das construções

Thiago de Mello e Aníbal Beça, na Praça da Polícia em Manaus, em 2002
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Nesse passeio pelas ruas da cidade, o leitor é levado para vivenciar as conversas na calçada com pessoas de diferentes famílias. Thiago ressalta a importância que tinha essas conversas para a vida em comunidade. “Era um tempo de conversa. Tempo do diálogo. Da boa prosa e as santa conversa fiada, que sempre deixava um saldo chamado sabedoria. Uma das esplêndidas instituições culturais de Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. […] Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, das onças e de serpentes e naufrágios, de assombrações e magia” (p.48)

Enquanto passeia e reencontra pessoas da Manaus de antigamente, Thiago comenta com o leitor sobre o estilo das construções: “São gabados o estilo neoclássico, o sobradão colonial português, as extravagâncias do art nouveau, certas residências que o gosto da época chamava de palacetes, que chegavam a ser cópias quase fieis de pequenos ‘hotéis’ franceses ou de ‘vilas’ italianas, sem disfarçar a satisfação do registro da origem do material de construção, quase todo vindo das estranjas [do estrangeiro]: as pedras, os mármores, as telhas, as vidraças, os azulejos, os gradis, as rosáceas coloridas. É o louvor ao colonizador, o reconhecimento entre aparvalhado e submisso, do colonizado” (p. 94).

Na época da borracha, conta ele, vinham mestres de obras de Portugal para realizar as construções dos que tinham dinheiro para pagar o luxo das importações, enquanto as casas autenticamente amazonenses eram construídas com madeiras, às margens dos igarapés, que são os riachos que cortam a cidade. Thiago explica melhor: “São casas simples, quase singelas. Na maioria de madeira, chão de itaúba ou sucupira. Portas e janelas admiravelmente bem dispostas, muitas preferindo o frontão só de janelas, deixando lugar adequado para a porta lateral, que se abre sem trancas para as vastas varandas, quase todas protegidas por treliças de madeira, cujos desenhos são invenções caboclas, já faz tempo deixaram de copiar as treliças arábicas tradicionais” (p. 95).

O autor menciona para o leitor o filme documentário de Roberto Evangelista sobre a arquitetura popular de Manaus. Ainda reforça que os sobradinhos de madeira daquele tempo são um “primor de criação arquitetônica, cujas fachadas resumem verdadeiras lições de teoria de conjugação e equilíbrio de cores” (p.95).

Os imigrantes

Avenida Floriano Peixoto em 1952
(Foto: @manausdeantigamente)

Muitos imigrantes são mencionados no livro, dentre eles vários árabes, sírios, libaneses e turcos, que chegaram a Manaus com os bolsos vazios, dedicando-se ao comércio como regatões. Saíam pelas ruas carregando o peso das mercadorias para serem vendidas em diferentes bairros da cidade. Com o que ganhavam, instalavam casas comerciais, ou se dedicavam a outros negócios, conforme iam progredindo.

Thiago, encontra o amigo Nagib, que lembra de seu pai, o sírio Issa Abrahão, que ao chegar na cidade hospedou-se na casa de um amigo e estava sem um tostão no bolso. Um libanês emprestou-lhe dez tostões, que era muito dinheiro na época. “Então, ele começou a trabalhar. Comprava uma barra de sabão por dez tostões e a cortava em 12 pedaços. Saía pelas ruas gritando: ‘Sabão, sabão, tostão’” (p. 96). Vendia e economizava e assim conseguiu “comprar uma caixa para botar teque-teque. Saía carregando a caixa com uns duzentos quilos e ia a pé às vezes até Flores, ia e voltava, com aquele peso todo. Tinha dia que ele vendia um carretel de linha, uma pasta de dente” (p.96) e assim, vendendo armarinhos, ele conseguiu ficar rico.

No livro também é abordada a vinda de judeus para o Amazonas. “Todos, enfim, foram viver e trabalhar no interior. Foi uma migração rural e sobretudo familiar. Todos chegaram com as famílias. Primeiro foram regatões. Depois seringalistas. Na época da decadência, todos perderam, praticamente tudo. A maioria foi à falência. Só então é que vieram para Manaus” (p. 181). Dentre esses judeus estava a família do estudante Samuel Benchimol, colega de colégio de Thiago. O pai do menino enfatizava muito a importância dos estudos para os filhos, como sendo a verdadeira riqueza. Samuel era um dos que desfrutava a leitura dos livros que o professor Agnello Bittencourt, o professor de geografia, disponibilizava ao estudantes em sua casa. Esse professor é lembrado como um dos que despertava nos estudantes o gosto pelo estudo, além do amor e o cuidado com os seres da natureza. Anos depois, o menino Samuel transformou-se num grande estudioso sobre a realidade da Amazônia, e publicou vários livros que são referência acadêmica nos dias atuais.

Dentre os estrangeiros, estava o diretor do Serviço de Águas e Esgotos, instalada pelos ingleses no início do século, e que era o responsável pelas instalações das tubulações da cidade: Francisco Pereira Delgado, conhecido como Chico das Águas. Ele deixou a marca de sua presença nas iniciais FPD no relevo das tampas redondas de ferro da rede de esgoto de Manaus. Era um dos que entravam em agonia quando as águas do rio Negro baixavam, e os serviços de recuperação demoravam a ocorrer, devido à demora na chegada dos materiais importados para a reposição. Enquanto isso, a população era privada da oferta do serviço.

Seu Alonso, escafandrista espanhol, também é lembrado pelo perigoso serviço que realizava: “Vi e nunca mais esqueci o seu Alonso mergulhar, depois de ajustar na cabeça o redondo capacete metálico com viseira de vidro, nas águas das proximidades do cais. Permaneceu submerso um tempão, alimentado pelo oxigênio de uma máquina primitiva, girada por companheiros no interior de um batelão no qual achei um jeito de embarcar no instante da saída na beira do Almoxarifado” (p.94). O batelão, barco de madeira ou ferro, com fundo chato, era usado para serviços pesados, realizados geralmente perto das margens do rio.

A convivência com pessoas com transtorno mental

Prédio do Departamento de Saúde Pública de Manaus na antiga Praça Benjamin Constant (atual Praça do Congresso), em setembro de 1935
(Foto@manausdeantigamente)

Das pessoas mencionadas no livro, chama a atenção duas que sofriam de transtorno mental e que conviviam com as pessoas nas ruas. Uma delas, a Carmem Doida, “era uma mulher alta, magra, morena, olhos espremidos, dos quais saíam faíscas de ódio ou uma triste cinza orvalhada. Gostava de dançar na rua, sozinha, intensa à curiosidade dos transeuntes! Tinha a boca ligeira. Carmen Doida!, sempre alguém gritava (quase sempre era a voz de normalista). É a tua mãe, filha da putinha. De repente a ofensa irada se abrandava no diminutivo. Respondia cortante, enfezada, quatro ou cinco palavrões cabeludos e continuava a dança. Se a chamavam doida de novo, então ela saía correndo, atrás das normalistas fardadas…” (p.123).

O outro deficiente mental era Bombalá, apaixonado pela música e pela ordem no trânsito. “Bombalá era apenas um doido, por ventura o mais ostensivo doido de Manaus, porque o seu campo de atuação era a rua. […] Banda militar tocando, a gente já sabia: lá vinha o Bombalá à frente dela; com preciosos e elegantes gestos dos dois braços, abrindo, ao ritmo marcial, o caminho dos músicos que por ele já guardavam afeição, a começar pelo regente, que não se sentia ferido nos brios do ofício por ter à sua frente, bem uns seis, oitos metros à frente, aquele que, para a cidade, era o verdadeiro comandante da banda” (p.99). Mesmo sem poder falar, mas com gestos e sorriso encantadores, o Bombalá que encantava a todos precisou deixar as ruas aos 30 anos de idade, após ter sido atropelado, passando a admirar a rua e os transeuntes pela janela de sua casa, que ficava na rua Joaquim Nabuco.

Os movimentos estudantis

Gymnasio Dom Pedro II (Foto: @manausdeantigamente)

De todas essas personagens curiosas da Manaus de antigamente, os estudantes e os professores têm um destaque, em especial os envolvidos na Revolução Ginasiana de 1930 que criaram um evento político que mudou a vida política do estado na época. Na ocasião, o chefe da Polícia de Manaus começou a perseguir os estudantes do Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, quando estes estavam nas ruas e nos cafés da cidade. Em reação aos policiais, os estudantes fizeram um protesto, bloqueando a avenida Sete de Setembro, bem na frente da escola, onde era a passagem obrigatória dos bondes.

“Sobre os trilhos, acumulavam pedras e passavam sabão. O chefe da Polícia não conversou: mandou invadir o Ginásio, cujo diretor era o professor Plácido Serrano, que se opôs e resistiu ao ingresso dos policiais, que recuaram, para logo depois voltar com reforço” (p.132). Mencionando os nomes das lideranças estudantis da época, Thiago conta que o sargento do Exército chamado Prado Lins, instrutor de educação física da escola, ficou solidário com os estudantes e permitiu que eles pegassem os fuzis do Tiro de Guerra – que funcionava numa sala do próprio colégio – para se defender.

Então, “os policiais subiram as escadarias e o pau cantou, mas sem bala, e muitas prisões. A situação se acalmou após a interferência de professores como Carlos Mesquita, Plácido Serrano, Agnello Bittencourt, obtendo a liberação dos estudantes detidos” (p.132). O professor de Moral e Cívica e Literatura, Álvaro Maia, chegou “na ocasião do conflito e logo se distinguiu pelo corajoso empenho de conter os policiais e apaziguar os estudantes” (p. 133). Em protesto com o que havia ocorrido na escola, o professor Agnello pediu a exoneração do cargo e foi apoiado pelo diretor Plácido. A população da cidade se revoltou com a ação dos policiais e foi para as ruas protestar, criando um alvoroço e caos tão grandes, que levou à queda do então governador Durval Porto.

A Manaus de antes e a de agora

Malhação de Judas em 1943 na rua Costa Azevedo
(Foto: Thomas-D. Mcavoyn/Time Life)

Ao iniciar essa aventura nas palavras-memória de Thiago de Mello, não se tem ideia do quanto a intensidade das experiências de sua vida, no livro “Manaus: amor e memórias”, pode ampliar a visão de mundo que temos. Na verdade, ele não aborda somente o que ele e seus amigos vivenciaram nas décadas de 30, 40 e início de 50, mas o que eles estão dizendo para quem viveu em Manaus, no ano de 2021, durante a pandemia da covid-19.

No início de 2021, Manaus ficou mais conhecida mundialmente, depois que os hospitais lotados de doentes da covid-19 ficaram sem oxigênio e muitas pessoas morreram asfixiadas, devido à negligência do governo federal nas providências em relação ao fornecimento, em tempo hábil, dos cilindros de oxigênio aos hospitais e vacinação da população. O caso está sendo investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado Federal, revelando aspectos subjacentes a essa omissão, relacionados com atos de corrupção, envolvendo civis e militares.

A covid-19 chegou no país e não fez distinção de cor, raça, religião, nem da condição econômica e social das pessoas. Arrancou das casas muitos doentes que foram levados para os hospitais, e de lá muitos foram levados para os cemitérios, e houve até quem foi enterrado em valas coletivas, tal era a quantidade de pessoas mortas. A doença deixou vazios espaços afetivos e amorosos nas famílias, nos quais as pessoas eram matrizes produtoras de memórias da vida e da cultura de um povo. Todos os que morreram antes, durante e depois, portadores do registro nacional, deixaram evidente a fragilidade do maior estado brasileiro em tamanho territorial e em reserva de floresta, sobre a precariedade dos serviços de saúde, pois sequer havia Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) nos municípios do interior, o que sobrelotou os hospitais de Manaus, a capital, que era a única do estado que possuía esse serviço.

Do Amazonas foram enviados doentes para se tratar em outros estados brasileiros, porque os recursos locais não comportavam o imenso número de pacientes necessitando hospitalização. Manaus também ficou conhecida por disseminar a variante P.1 do coronavírus, com capacidade maior de transmissão infecciosa, mas a identificação da variante foi feita no Japão, porque na região não havia testagem da população. Nas redes sociais, houve quem publicasse chacotas com discriminação contra quem vivia ou passava por Manaus e Amazonas e foi necessário o nome grego Gamma para que a variante do vírus tivesse amenizada a associação com o nome da cidade e do estado.

Thiago diz que, de todas as cidades que conheceu no mundo, “de Manaus ganhei o principal: os alicerces da vida do homem, que se edificaram na minha meninice, toda ela vivida em Manaus, chão e céu de minha adolescência inteira […] Foi em Manaus que pela primeira vez senti, queimando profundas, as solicitações do amor, da arte e da justiça. Aqui nas beiradas dos nossos igarapés a vida me abriu os olhos para as desigualdades sociais, cujas causas só mais tarde eu viria a enxergar. […] Esta cidade me plantou a perplexidade perante a pobreza, e me ensinou a valorizar o sentimento da amizade como um dos mais belos dons da condição humana. Aqui descobri a força do sentimento solidário e a certeza de que o ser humano nunca está sozinho” (p.29).

A perplexidade de Thiago em relação às desigualdades sociais continua sendo sentida por quem vivem em Manaus, após 38 anos da primeira edição do livro. As populações que vivem às margens dos igarapés e nas áreas ribeirinhas, geralmente em casas de madeira, foram as que mais sofreram em 2021, com a maior cheia já registrada no estado, somando-se as dificuldades da pandemia. Mas nesse ano até mesmo quem vivia em casas de alvenaria sofreu muito, com as alagações. Indígenas na floresta e na cidade continuaram denunciando as ameaças que sofriam e a discriminação, enquanto a doença era levada por invasores aos lugares recônditos da floresta, que deveriam estar protegidos. Outros muitos fatos evidenciaram que a amada Manaus de Thiago continua pedindo por amor e esse amor não é só para uma cidade, mas também para um estado e um país.

A necessidade de melhores serviços de saúde, educação, segurança, justiça social, é o que toda a nação reclama, mas a região Norte, em especial, sofre muito mais com a falta de políticas públicas mais justas. Thiago coloca Manaus como alicerce de sua vida, e esse agora é um alicerce que precisa ser repensado e fortalecido para a nova geração. As crianças e adolescentes que estão aprendendo a escrever o futuro, têm que saber como sair do silêncio para enfrentar descobrir formas de lutar pelos seus direitos. Mas até mesmo os clamores de professores e universitários estão sendo abafados e até reprimidos, assim como o de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras populações vulneráveis como as minorias sociais.

Durante toda a sua vida e ainda no tempo presente, Thiago chamou a atenção do mundo sobre a importância do rio, da floresta, dos direitos humanos, da necessidade de uma sociedade justa, pacífica, humana e solidária. No livro, “Manaus: amor e memórias”, ele relembra as palavras do professor Agnello Bittencourt, que semeava o amor à terra em que viviam os estudantes do Gymnásio Dom Pedro II. Ao completar 90 anos, estava escrito em uma mensagem que “no Amazonas é a Natureza que ensina os homens a serem fraternais, a serem grandes, a serem nobres; é a própria terra, o próprio rio, pela própria largueza de toda a vasta planície. No Amazonas observamos que ali está um livro aberto para quem deseje, para quem queira aprender” (p. 97).

Assim, mesmo indignados e discordando de muitas coisas que estão acontecendo atualmente no país, as palavras de Thiago nos conduzem a uma viagem restauradora da esperança, na leitura de um livro que é um testemunho da resistência de um ex-exilado, que atualmente está com 95 anos. Numa de suas falas em público, no lançamento de seu livro “Acerto de contas”, ele lembrou que “a indignação é uma forma de amor”.

Quando produziu o livro de memórias sobre a infância e adolescência em Manaus, no início da década de 80, o poeta sequer imaginava que um dia ele seria uma leitura tão alentadora para quem estava ou não em isolamento social, durante a pandemia do novo coronavírus em 2020 e 2021. Nesse livro, Thiago nos impulsiona para avançarmos do estágio de indignação para a busca de pessoas e fatos que possam restaurar mais memórias para fortalecermos a história de uma cidade, de um estado e de um país, para que possam fortalecer os alicerces das novas gerações para o amanhã. Ele conta uma história rica de beleza natural e humana que merece ser compartilhada com o mundo, tal como foram seus poemas.

Em 1965, quando resistia à ditadura militar e à prisão, escreveu o poema “Faz escuro mais eu canto”, e sequer imaginava que esse título seria escolhido em 2021 para nomear a 34ª. Bienal de São Paulo – Faz escuro mais eu canto, um evento que conta com a participação de artistas de 39 países. Nesse poema, Thiago nos convida a nos mantermos acordados, para trabalhar pela mudança do mundo, pela alegria, porque amanhã é um novo dia. Num outro poema “Na manhã do milênio”, Thiago diz: “Não consola saber que fiz, que fiz a minha parte, que reparti com tantos o diamante, que olhei o sol de frente e não fugi (nem do meu próprio medo)”. Na verdade, ele está convidando mais pessoas a fazerem a sua parte também.

No artigo primeiro de “Os Estatutos do Homem”, seu primeiro decreto contra a ditadura militar deixou registrado: “Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida, e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira”. E respeitando esse estatuto e os demais, vamos seguir confiantes, com a gratidão a ele por essa viagem no tempo, que na verdade é o tempo de sempre da cidade de Manaus, para quem a ama. Ter explorado mais os motivos da escrita do livro trouxe um aprendizado importante de como se pode lutar e, ao mesmo tempo, semear a paz e a aurora do amor. Foi com as armas dos poemas que Thiago de Mello lutou e se tornou o mais conhecido poeta da Amazônia no mundo, pela incansável luta pela ecologia, direitos humanos, igualdade social, amor à natureza e à paz. Assim, sigamos na construção da cidade-poema, no chão de rio e floresta onde ele viveu e continuará vivendo na memória e no coração de seus habitantes.

Detalhe da mão do poeta Thiago de Mello, em 2006
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Faz escuro mas eu canto
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.

O poeta Thiago de Mello em viagem ao rio Andirá em dezembro de 1997
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Fontes de consulta:

CINTRA, André. Thiago de Mello, 95 anos: uma entrevista a Adalberto Monteiro

FOLHA DE S. PAULO. Na prisão com Glauber e Callado.

FRAZÃO. Dilva. Biografia de Thiago de Mello.

GLOBAL. Thiago de Mello: Faz escuro mas eu canto.

MEDEIROS. Alexsandro M. Thiago de Mello: a poesia como crítica social, em defesa da floresta e dos povos que nela vivem. Sabedoria Política, fev. 2019.

MELLO, Thiago de. Man: a view from the forest – a floresta vê o homem. Organizado e traduzido por Sérgio Bath. Manaus: Valer/ Prefeitura de Manaus, 2006.

MEMORIAL DA DEMOCRACIA. Protesto leva ‘Oito da Glória’ à prisão.

O PENSADOR. Thiago de Mello: Faz escuro mas eu canto, porque a manhã…

RIO MEMÓRIAS. Protesto dos Oito da Glória.

RBA. Rede Brasil Atual. Reportagem de Vitor Nuzzi em 25/03/2014. Os estatutos do homem, indignação do poeta contra o arbítrio, também faz 50 anos.

PREFEITURA DE MANAUS. Exposição Thiago de Mello 95 anos de vida, poesia e amor por Manaus.

RAYOL. Luciana de Moraes. Pablo Neruda e Thiago de Mello: tradutores/amigos em diálogo. Belo Horizonte – MG: Cadernos CesPuc, n^o< 22, 2013.

TV GRABOIS. Trechos da entrevista com o poeta Thiago de Mello.

Artigos de Opinião ou colunas

Sobre a matéria

Citações

"Foi com as armas dos poemas que Thiago de Mello lutou e se tornou o mais conhecido poeta da Amazônia no mundo, pela incansável luta pela ecologia, direitos humanos, igualdade social, amor à natureza e à paz. Assim, sigamos na construção da cidade-poema, no chão de rio e floresta onde ele viveu e continuará vivendo na memória e no coração de seus habitantes", diz Elvira Eliza França sobre o poeta Thiago de Mello.

Este artigo tem citações dos seguintes sites:

CINTRA, André. Thiago de Mello, 95 anos: uma entrevista a Adalberto Monteiro (em 16/03/2016). Disponível aqui:<https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/thiago-de-mello-95-anos-uma-entrevista-a-adalberto-monteiro/>. Acesso em 17/08/2021.

FOLHA DE SÃO PAULO. Na prisão com Glauber e Callado. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/7/28/mais!/5.html>. Acesso em 19/08/2021.

FRAZÃO. Dilva. Biografia de Thiago de Mello. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/thiago_de_mello/> . Acesso em 16/08/2021.

GLOBAL. Thiago de Mello: Faz escuro mas eu canto.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qsEzbuk9FVg>. Acesso em 22/08/2021.

MEDEIROS. Alexsandro M. Thiago de Mello: a poesia como crítica social, em defesa da floresta e dos povos que nela vivem. Sabedoria Política, fev. 2019. Disponível em: <https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/thiago-de-mello-poeta-e-prosador-amazonense/>. Acesso em: 17/08/2021.

MELLO, Thiago de. Man: a view from the forest – a floresta vê o homem. Organizado e traduzido por Sérgio Bath. Manaus: Valer/ Prefeitura de Manaus, 2006.

MEMORIAL DA DEMOCRACIA. Protesto leva ‘Oito da Glória’ à prisão. Disponível em: <http://memorialdademocracia.com.br/card/protesto-leva-oito-do-gloria-a-prisao>. Acesso em: 19/08/2021.

O PENSADOR. Thiago de Mello: Faz escuro mas eu canto, porque a manhã... Disponível em: < https://www.pensador.com/frase/MTUyNDk5Ng/>. Acesso em 22/08/2021.

RIO MEMÓRIAS. Protesto dos Oito da Glória. Disponível em: <https://riomemorias.com.br/memoria/protesto-dos-oito-do-gloria/>. Acesso em 19/08/2021.

RBA. Rede Brasil Atual. Reportagem de Vitor Nuzzi em 25/03/2014. Os estatutos do homem, indignação do poeta contra o arbítrio, também faz 50 anos. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/03/estatutos-do-homem-indignacao-do-poeta-contra-o-arbitrio-tambem-completa-50-anos-6390/>. Acesso em 19/08/2021.

PREFEITURA DE MANAUS. Exposição Thiago de Mello 95 anos de vida, poesia e amor por Manaus. Disponível em: <http://vidaecultura.manaus.am.gov.br/>. Acesso em 17/08/2021.

RAYOL. Luciana de Moraes. Pablo Neruda e Thiago de Mello: tradutores/amigos em diálogo. Belo Horizonte – MG: Cadernos CesPuc, n^o< 22, 2013. Disponível em: < >. Acesso <http://docplayer.com.br/22780032-Cespuc-pablo-neruda-e-thiago-de-mello-tradutores-amigos-em-dialogo-adernos-resumo-luciana-de-moraes-rayol-entre-casas-e-poemas.html>. Acesso em: 19/08/2021.

TV GRABOIS. Trechos da entrevista com o poeta Thiago de Mello. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XgYEgzCZbok>. Acesso em 17/08/2021.

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”

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3 Comentários

@relliot disse:

15/01/2022 às 09:38

Tiago de Mello, poeta da liberdade”, levando aos deuses da liberdade os anseios dos poetas libertadores e o clamor dos povos e da natureza oprimidos. Não será em vão tua rede rede de repulsa contra a opressão contra o nosso povo pois haverá, sempre haverá novos poetas com seus gritos de indignações, em defesa de um povo que não aceitará, jamais, o massacre dos seus sonhos. Parabéns Tiago, não será em vão; sua luta.@eelliot

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Elsa Goncalves Avancini disse:

14/01/2022 às 17:38

Saborei muito teu texto sobre nosso amado poeta Thiago de Mello que aliás inspirou também o nome de meu primogênito. Tudo isso lembrei após ler as memórias do poeta através das fotos e de teu texto. Acordei de madrugada com alguma apreensão vaga nestes tempos pandemicos e brotou-me a frase: “faz escuro mas eu canto”, um chamado a superação das dificuldades. Voltei ao sono e só entendi a razão da frase mais tarde pela manhã quando li a notícia da partida de nosso poeta. Não sabia que ele estava indo, mas pela lei da sincronia entrei na sintonia do delicado momento de sua passagem. Presto-lhe aqui minhas homenagens e reverências a um potente e viril lutador da história contra o arbítrio no Brasil. Gratidão. Que a Musa da Poesia e das Artes o receba no seu âmago

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Antonio Bordeaux-Rego disse:

06/09/2021 às 10:03

Elvira, li o seu artigo sobre a obra de Thiago de Mello. Muito bom. Realmente é uma viagem por Manaus dos velhos tempos.
Entendi agora seu interesse pela prisão dos “Oitos do Glória”, que incluía Thiago de Mello.
Muito bacana o seu texto e bem escrito. Mas o que mais me cativou foi conhecer este poeta e intelectual que criou uma declaração espetacular sobre os atos institucionais do homem.
Valeu, e agradeço a oportunidade de conhecer Thiago de Mello. Leitura boa e instigante.
Outro fato que me chamou a atenção foi o tema da Bienal de São Paulo.
Tema escolhido é ‘Faz escuro mas eu canto’, verso do poeta Thiago de Mello escrito em 1965 em oposição à ditadura militar.
Espetacular e muito atual.

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