Vandré Fonseca: o guardião da Amazônia na visão de familiares e amigos

Por Elvira Eliza França Publicado em: 25/02/2019 às 16:50

Em texto, a colunista Elvira França relata as homenagens ao jornalista (na imagem Vandré entrevista um ribeirinho impactado pela usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará/Foto: Lilo Clareto/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Durante o período em que atuei como voluntária da Pastoral da Criança da Arquidiocese de Manaus (1997 e 2014), recebíamos a visita de jornalistas e também pedíamos a presença deles para divulgar notícias referentes ao desenvolvimento das crianças, e outros temas relacionados à amamentação materna, alimentação complementar (multimistura), desnutrição, eventos comemorativos etc. Algumas vezes, fui designada pela coordenadora arquidiocesana para fazer o acolhimento dos repórteres, quando eles iam entrevistar mães ou líderes comunitárias.

Algumas vezes aconteceu de o repórter não comparecer, quando ocorria algum crime na cidade; outras vezes, chegavam tardiamente, mas sempre que vinham, estavam com pressa, porque havia outros eventos para dar cobertura. Por isso, em geral o nosso contato era breve e exclusivo para a situação que se apresentava no momento.

Certa vez, um repórter chegou na comunidade antes do início da Celebração da Vida, um encontro mensal com as mães e as crianças, para as líderes darem orientações gerais às famílias. Nessa ocasião, as crianças também eram pesadas e verificados outros aspectos de seu desenvolvimento físico, emocional, social e espiritual. Era uma tarde de sábado, e foi o jornalista Vandré Fonseca que chegou numa das paróquias da periferia de Manaus. Eu o reconheci das reportagens da televisão. Como as mães ainda não haviam chegado, perguntei se poderia aguardar por mais tempo, para entrevistá-las.

Vandré concordou e, enquanto aguardava a chegada das mães e das crianças, conversou comigo sobre a problemática da desnutrição e o trabalho da Pastoral da Criança de ajudar as mães a se conscientizarem sobre a importância da amamentação. Durante a conversa, ele contextualizou bem a questão da pobreza e da desnutrição no país. Estava muito tranquilo e era bem amável, trazendo confiança para as mulheres, que ficaram desinibidas para relatar os benefícios que estavam conseguindo com as orientações das líderes comunitárias daquela pastoral.

Voltei a reencontrar Vandré pessoalmente muitos anos depois, em 2018, na sede da agência de jornalismo independente Amazônia Real. Eu estava lá para tratar sobre questões referentes a um artigo que eu estava escrevendo. Há tempos eu não via Vandré na televisão, e fiquei feliz por reencontrá-lo. Por muito tempo, eu havia me acostumado a assistir ao noticiário Bom Dia Amazonas, cedo pela manhã, com sua face sorridente, dando-me informações sobre a região. Apesar do nosso contato direto na Amazônia Real ser formal, eu sentia afeto por Vandré, por ele ter feito parte de meu cotidiano por tanto tempo, quando ele estava trabalhando na TV.

Outras vezes, reencontrei-me com ele no mesmo local, mas nosso contato era breve e superficial, porque eu aguardava Vandré terminar a conversa com Kátia Brasil, a editora da agência, para eu poder falar com ela. Vandré era sempre educado e gentil. Quando passei a revisar alguns textos das reportagens que ele produzia, tomei mais conhecimento sobre o compromisso que ele tinha com as questões ambientais da Amazônia. As reportagens escritas possibilitavam formar uma memória mais consistente sobre a problemática ambiental regional.

Meu contato mais próximo com Vandré aconteceu quando ele sofreu um infarto cardíaco e foi hospitalizado. Coloquei-me à disposição da esposa para sistematizar os dados dos boletins médicos e, como também sou terapeuta, ofereci procedimentos de relaxamento e energização a ele, nos dias do período pré-operatório. Eu sabia como ele era importante para a agência de jornalismo Amazônia Real, mas muito mais para toda a Amazônia. Eu havia assistido e lido reportagens dele sobre temas científicos e outros temas polêmicos de denúncias sobre crimes ambientais e sentia como a palavra dele era importante para a vida dos povos tradicionais, assim como para os seres da natureza.

Foi com grande tristeza que no início da tarde do dia 17 de fevereiro, o médico informou aos familiares e amigos que estavam na sala de espera do hospital, que o coração de Vandré não havia resistido. Choramos de tristeza e o foco no sofrimento das pessoas da família não permitiu que pensássemos no choro mais abrangente da floresta amazônica, com seus seres e povos, que perdiam mais um de seus guardiões.

Foi pensando na perda sofrida pela Amazônia, pelo Brasil e pelo planeta, que me veio a ideia de registrar a história desse repórter que eu pouco conhecia. Era uma forma de eu agradecer a todas as pessoas que ele amava e que ele havia deixado em São Paulo, para que compreendessem a importância da vida de Vandré Fonseca para o contexto amazônico. Como também sou paulista de nascimento, sei como é grande o desafio de se deixar o contexto da terra natal para viver na distância do Norte do país. Contudo, quando nos apaixonamos pela Amazônia e pelas suas causas, a dor das saudades da terra distante, de onde somos originários e dos nossos familiares, passa a ser minimizada. Para nós, o compromisso com a vida do planeta e de toda a humanidade é muito maior.

A Amazônia, com sua floresta, seus povos nativos e seus seres animais e vegetais, também tem um espírito. Ele é melhor descrito pelos indígenas, e é por isso que defendem esse território da destruição e da devastação. Sendo assim, ao escrever a história de Vandré Fonseca, a partir dos depoimentos da mãe, da esposa, dos amigos, ex-colegas de trabalho e pessoas da comunidade, também quero expressar a homenagem aos seres floresta, que tanto se beneficiaram do trabalho de Vandré. Por isso, faço uso de minhas palavras para que a Amazônia possa falar por mim, para agradecer pelo trabalho desse guardião, transferido para um território desconhecido por nós. Certamente, mesmo onde ele está agora, continuará colaborando para que a nossa natureza e nossos seres permaneçam vivos.

O primeiro ensinamento dado à sua mãe sobre maternidade

Vandré Fonseca e a avó da amiga Rose, dona Ivone Costa, 79 anos (Arquivo de família)

A mãe de Vandré, Teresinha Fonseca, foi uma menina que, desde pequena, não gostava de brincar de bonecas nem de casinha, tal como outras meninas da família. Enquanto elas se dedicavam a ajudar a mãe na cozinha e realizavam trabalhos manuais, Teresinha preferia brincar com meninos: irmãos e seus amigos, subindo em árvores e fazendo cabana em seus galhos. Por isso, quando jovem e casada com José Fonseca do Nascimento, conhecido como Juquinha ou Juca Fonseca, Teresinha não imaginava o que seria ser mãe, e ao mesmo tempo assumir, também, o papel de pai, tempos depois.

No dia 16 de janeiro de 1973, quando estava com 18 anos, Teresinha começou a sentir as dores do parto, mas pensou que era apenas dor de barriga e tomou Cibalena. Foi levada pelos familiares ao hospital Santa Joana, em São Paulo, e lá deu a luz, de parto normal, a um menino com 2.600 kg. A criança recebeu o nome de Vandré Fonseca do Nascimento.

“Eu não sabia fazer nada e quando a enfermeira levou o bebê para amamentar, eu não sabia o que fazer. Foi uma experiência de brincar com ele mesmo, tal como as outras crianças brincavam de ser mães com as bonecas”, lembra Terezinha.

A experiência da maternidade mudou totalmente a vida daquela jovem que havia sido uma menina que gostava de brincar com os meninos. Vandré havia nascido pequeno, mas com o apoio da avó materna, Teresinha Macedo Costa, e dos cuidados da jovem mãe, ele tornou-se um menino forte e muito bonito. Seus olhos verdes chamavam a atenção de quem o via. Quando a mãe saía com ele para a rua, as pessoas se aproximavam, atraídas pela beleza da criança. Pegavam na bochecha do menino para dizer que ele era bonito.

Cuidando do filho, Teresinha aprendeu a fazer sucos, mingau, sopinhas, e a lavar e passar fraldas. Era uma brincadeira real, que ela não havia tido quando criança, manipulando as bonecas. Mas então engravidou novamente. O filho estava com um ano e quatro meses quando a irmã Daniela nasceu, e a avó materna, muito dedicada, passou a dar um cuidado especial para a menina, liberando a mãe para continuar o treinamento materno com o filho da primeira maternidade.

O pai das crianças – Juquinha na família e Juca Fonseca no mundo artístico – era empresário do cantor e compositor baiano Fernando Lona, que produzia trilhas sonoras para peças teatrais e também fazia parceria com Geraldo Vandré. Juca estava com 27 anos quando, numa das viagens de trabalho, sofreu um acidente, vindo a falecer. Foi assim que Vandré ficou órfão de pai aos quatro anos e dez meses de idade.

O menino que já era introvertido, ficou ainda mais introspectivo com a ausência paterna na família. Teresinha precisou sair de casa para trabalhar para sustentar a família e passava o dia no escritório, enquanto as crianças ficavam sob os cuidados dos avós maternos. Quando ela voltava para casa, tentava aliviar o sofrimento próprio e dos filhos, lendo histórias para as crianças.

Foi assim que Vandré desenvolveu o gosto pela leitura desde pequeno. Ele e a irmã prestavam muito a atenção no que ouviam a mãe lendo e eram muito críticos em relação aos textos. Certa vez, Teresinha lia a história bíblica sobre a expulsão de Eva e Adão do paraíso, quando observou que as crianças a olhavam fixamente nos olhos, enquanto ela lia o diálogo entre a serpente e Eva. Quis saber por que eles a encaravam daquele jeito e o menino perguntou meio indignado: “Mãe, cobra, serpente, fala?” Teresinha lembra-se de que os filhos “desmistificavam a fantasia e não havia meios de convencê-los. Por isso, eu não criei meus filhos com as ilusões infantis de Papai Noel, coelhinho da Páscoa, pois sabia que eles iriam duvidar de tudo e colocar meus argumentos abaixo”.

Apesar da atenção dos avós e da mãe, Vandré entrou em processo de grande tristeza, após o falecimento e a ausência do pai. Por isso, a mãe procurava fazer o que podia para distraí-lo, tentando produzir um sorriso em sua face. Quando saía na rua, ou até mesmo em casa, chamava a atenção do filho para tudo o que via. Contudo, Vandré olhava o que ela mostrava, mas não dizia nada. O professor de psicologia de Teresinha, ouvindo o que ela contava, disse que a criança estava sofrendo de depressão infantil.

“A infância do Vandré não foi como a minha, de ser feliz, brincando, despreocupada. Por dois anos, ele chorava à noite, sentindo a ausência do pai. Foi muito difícil para mim, que tinha 23 anos, ter um luto e resolver tudo, trabalhando para sustentar meus filhos”, relembra Teresinha sobre os desafios que enfrentou nessa fase da vida.

Assim, quando o menino ingressou na escola, era muito introvertido e não participava das atividades escolares e tampouco das festividades. Por outro lado, era muito estudioso, aplicado e sempre tirava boas notas. Foi na adolescência que Vandré começou a fazer amizade com os colegas e foi se socializando mais. Nessa fase, ingressou na escola de tempo integral do Serviço Nacional da Indústria (Senai), e fez o curso técnico, pensando em dar continuidade aos estudos numa faculdade de engenharia. Levantava-se muito cedo para ir à aula e só retornava no final da tarde.

“Eu nunca precisei falar para ele estudar e fazer a lição de casa, porque era muito responsável e comprometido com os estudos. Sempre gostou de ler e lia desde gibis e revistas de quadrinhos até livros técnicos e científicos. Eu dava dinheiro para ele comprar roupa, mas ele comprava livros. Nunca voltava sem um livro novo para casa. Tinha livros que ele passava para frente, trocando com os amigos, mas havia livros que lia e relia”.

“Esse gosto pela leitura também era herança do avô, que lia jornais atrasados, que pegava com as pessoas”, relata Teresinha, recordando-se do gosto que o filho sempre teve pela leitura, devido à influência do avô Jorge Gomes Costa. Desde a infância, Vandré também tinha a influência dos tios que gostavam muito de música. Assim, aprendeu a gostar de rock, aprendeu a ser corintiano e a ouvir Raul Seixas, cantando “Eu nasci há 10 mil anos atrás…” Vandré também gostava de música clássica e, posteriormente, quando ficou adulto, da mesma maneira que foi influenciado pelos tios, tornou-se um grande influenciador dos sobrinhos.

Então, chegou a época do vestibular e Vandré dizia que iria fazer engenharia. Tinha desenvolvido habilidades operacionais eficientes, devido ao curso técnico que havia realizado. Contudo, no momento de fazer a inscrição para o exame de vestibular, optou pelo curso de jornalismo. Fez dois processos seletivos e foi aprovado em duas faculdades: na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e na Faculdade Cásper Líbero (FCL), ambas em São Paulo onde morava. Decidiu pela última instituição, conhecida como uma excelente faculdade de comunicação social de São Paulo e, além disso, porque era a mais próxima de sua casa.

Quando Vandré chegou em casa, trazendo o comprovante da matrícula, contou para a mãe sobre a mudança nos planos acadêmicos. Foi então que a mãe entregou a ele a carteirinha da universidade, que indicava o curso que o pai estava realizando quando faleceu: comunicação social. Vandré ficou surpreso com a coincidência do gosto pelo estudo do jornalismo. Até então, a mãe evitava conversar com ele sobre o pai, para não provocar tristeza no filho.

Foi na época do período universitário que Teresinha recebeu um convite para criar o curso de Secretária Executiva em Roraima e foi morar em Boa Vista, a capital. Quando Vandré se formou na faculdade, foi visitar a mãe e resolveu ficar com ela. “Foi lá que ele conheceu Rui Figueiredo, jornalista, e foi trabalhar em um jornal. Em 2005, eu adoeci e voltei para São Paulo, durante dois anos de licença médica. Nessa época, Vandré tinha conhecido a jovem Robileia Mesquita Costa, conhecida como Rob, estudante de administração. Tempos depois, ele pediu transferência para Manaus, da TV Roraima, onde trabalhava, para a TV Amazonas onde gostaria de trabalhar. Rob veio com ele e passaram a compartilhar a vida numa união estável”, relembra a mãe.

Apesar da distância geográfica entre mãe e filho, ambos mantinham contatos constantes: Vandré viajava para São Paulo sempre que podia, e mãe viajava para o Amazonas para visitá-lo também. “Vandré sempre foi uma pessoa que eu respeitei muito. Eu sempre senti que era ele quem me ensinava e não eu a ele. Foram tantos ensinamentos, e o mais importante foi a vivência de uma conduta ética.”

Vandré com sua irmã Daniela (Foto do álbum de família).
Vandré com os pais, Teresinha e Juca (Foto do álbum de família).
Vandré com sua irmã Daniela (Foto do álbum de família).
Vandré com a mãe Teresnha em Boa Vista na comemoração de prêmio de jornalismo (Foto do álbum de família).
Vandré em Boa Vista (Foto do álbum de família).
Vandré em tempo de estudante (Foto do álbum de família).

O encontro com Rob e a vida em casa

A história de Vandré com Rob começou no Natal de 2004, quando ela foi para uma festa depois do Natal, no dia 26 de dezembro, e lá encontrou Vandré. A moça havia acabado de sofrer a perda de um tio querido e se encantou com a maneira educada e gentil do rapaz, que trouxe tranquilidade para ela naquele momento de sua vida. A partir de então, os dois começaram a planejar a vida juntos.

Diz Rob: “Foram os olhos lindos dele. Era um homem com bom humor, gentil, que abria a porta do carro e nunca mais me largou. Era um homem admirável, responsável e muito estudioso. Estava sempre lendo assuntos de todos os tipos. Quando eu fazia faculdade, ele estudava os conteúdos do curso para me explicar o que eu tinha dificuldade. Na parte de trabalho, ele não faltava ao serviço por nada. Tinha uma inteligência e domínio da palavra invejáveis”.

Quando Vandré foi transferido para a Rede Amazônica em Manaus, Rob veio com ele. Dulcinei Maria Souza dos Santos, 41, a diarista da família, conta como o patrão estava sempre de bom humor. “Apesar de ser bem tímido, era muito brincalhão. Por ele ser jornalista, em época de eleição, quando eu queria saber algo, eu perguntava para ele, e ele me explicava tudo: ‘assim, assim, assim’. Eu dizia que perguntava porque ele é entendido das coisas.’ ”. Dulcinei, com tristeza, dizia que iria sentir saudades daquele que a tratava como se fosse alguém da família, que gostava brincar e era muito alegre.

Início da vida profissional em Boa Vista, Roraima

Vandré Fonseca com os colegas da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo (Arquivo de família)

A conversa com alguns amigos de Vandré, por ocasião do último adeus, possibilitou-me recompor a vida profissional de Vandré, desde o período em que iniciou a profissão em Boa Vista, capital de Roraima, onde ele estreou como jornalista. Leandro Monteiro, 50 anos, que atua como D.J., conta como ele foi inserido no contexto profissional, logo depois de formado.

“Conheci Vandré em 1996, em Boa Vista. Ele tinha acabado de se formar e tinha ido para lá, porque a mãe dele era professora da universidade. Ele trabalhava no Diário da Amazônia, com o Oribe e o Pavaril, dois fotógrafos recém-formados. Era uma sucursal. Vandré era muito competente e exigente no trabalho.”

A amizade com Leandro foi duradoura e quando Vandré mudou-se para Manaus, foi acolhido na casa desse amigo que estava trabalhando na capital do Amazonas. “A primeira vez que ele veio para Manaus, veio para a minha casa. Ele reclamava que era longe e fazia piada de tudo. Depois, veio para trabalhar na TV Amazonas e por aqui ficou e não voltou mais para lá. Eu passei 25 anos de minha vida lá, e de 1996 a 2000 eu tinha contato direto com ele. Depois, nosso contato foi pelas redes sociais”.

Outro amigo de Vandré, Luciano Abreu, 42 anos, repórter da Rede Amazônica, também o conheceu em Roraima, em 1999. Ambos trabalhavam na Rede Amazônica de Roraima. “O Vandré sempre foi uma pessoa com muito conhecimento de jornalismo e das questões do país. Por isso, as abordagens dele eram muito profundas. A gente que estava ali, ficava na superfície, mas ele ia para as questões fundamentais. Eu guardo dele o humor ácido, a gargalhada e a forma como ele tratava os assuntos”.

Tanto Vandré quanto Luciano queriam ser transferidos para o Amazonas e, segundo Luciano, havia duas vagas: uma para a TV Amazonas e outras para o Amazon Sat. Segundo Luciano, Vandré “foi em casa conversar se não havia problema da vaga ser para ele. Acabou que ele veio sozinho para a TV e eu vim depois de oito anos e nos encontramos aqui. A última vez que a gente se encontrou, ele estava fazendo uma reportagem na fronteira da Venezuela. Eu e outros repórteres tínhamos dúvida sobre a dimensão da fronteira do Brasil com a Venezuela. Ele tinha os dados precisos e sempre tinha conhecimento da região e dos marcos [geográficos]. Vandré tinha sempre um algo a mais para compartilhar e a gente sempre aprendia com ele. Havia muitos jovens produtores da TV e ele sempre reunia as pessoas, dava orientações e se dava muito bem no jornalismo impresso e na televisão e, com o jeitão dele, ensinava os outros. Era conhecido como o chato mais legal que conhecíamos”.

O início da vida profissional de Vandré em Boa Vista, como jornalista, também é lembrado por Adeíce Torreia, 60 anos, jornalista aposentada. Ela conta sobre seu contato com ele na capital roraimense: “Conheci Vandré em Boa Vista, quando ele era bem novinho e estava começando a profissão. Eu era a assessora de comunicação do Governo do Estado e eu sempre tinha contato com ele, que era uma pessoa séria e comprometida. Ele me procurava para entrevistar como assessora, e sempre me tratou com muito respeito, cordialidade e equilíbrio. A gente lamenta a perda de um profissional tão jovem e competente, que fez a carreira na Amazônia… Eu também conheci a mãe dele, professora da universidade, que saiu de Roraima há tempos”.

Vida profissional e amizades no ambiente de trabalho

Trabalhando como repórter da TV Amazonas (Arquivo da família)

Maura Lapa, 42 anos, da Secretaria de Comunicação do Governo do Amazonas, lembra como conheceu Vandré, quando ele trabalhava na TV Amazonas. “Eu imagino que era em 2004, quando voltei de Brasília e ele já estava lá. No convívio de redação com ele, o que ficou para mim foi o excelente humor dele: o tempo todo brincalhão, fazendo piada. Dava gargalhada sozinho, gargalhada única, com aqueles olhos verdes brilhantes. Tinha um senso muito crítico na análise dos fatos e ficava muito inquieto com as condições de trabalho. O último encontro que tive com ele foi num encontro do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), e ele era muito participativo e cheio de dados. Era uma grande mente, com colocações muito pertinentes. Era um coração enorme, que vai fazer muita falta”.

Dentre os ex-colegas de Vandré da Rede Amazônica, que agora trabalham em outros locais, Rose Medeiros, 40 anos, assessora de comunicação do Hospital Adriano Jorge de Manaus, relembra como Vandré conquistava os familiares de seus colegas de trabalho. Para ela, ele era muito humano no trato com as pessoas. “A impressão que tenho dele era da humanidade que possuía. Ele tinha um viés humano em todas as matérias, mostrando o lado humano em todas as situações, mesmo quando eram denúncias. A vovó Ivone Costa assistia aos jornais todos os dias e se lembra dele. Certa vez, ela caiu e eu estava trabalhando e ela quis tirar uma foto com ele. Ele quis saber se ela queria fazer uma denúncia, mas era o desejo dela de tirar uma foto com ele, porque assistia ao telejornal todos os dias. Eu disse para ela que estava trabalhando, mas ela queria a foto que eu tinha tirado com ele”.

A mestranda em educação e ensino em Ciências na Amazônia, Ercilene Oliveira, 51 anos, estuda espaços não formais e educação (IDC). Ela lembra sobre a versatilidade de Vandré em diferentes atividades profissionais. “Ele foi gerente de jornalismo da Rede Amazônica, de 1993 a março de 2017. O Vandré era funcionário da TV Roraima. Ele queria vir para Manaus para mudar de vida com a Rob, a esposa. Então, fizemos uma negociação para ele ser transferido, ao invés de ser demitido [em Boa Vista] e ser contratado [em Manaus]. Ele foi tudo na nossa redação e chegou até a ser chefe. Na carteira de trabalho era registrado como repórter, mas atuava como apresentador, produtor e chefe substituto de reportagem e núcleo de rede. Ele era um cara de personalidade muito forte, contestador, muito culto e inteligente”.

Ercilene lembra que o colega “quando tinha uma posição, ele a defendia e dividia o grupo entre quem gostava e quem não gostava dele. Sempre tinha bom humor e dava muitas risadas sonoras. Gostava de matérias especiais, mais trabalhadas, enfocadas na Amazônia, ciência e saúde e pesquisa. Gostava muito de viajar e atuava com muita desenvoltura. Nunca dizia não para as missões que tinha a cumprir. Podia contestar, mas não se negava. Ele agia profissionalmente em tudo e era apartidário na profissão, mesmo reclamando do que fazia parte da rotina dele. Era o chato mais legal que eu conheci”.

Muitas vezes, na realização de seu trabalho como repórter, Vandré passava muitos dias fora de casa, viajando pelo interior. O cinegrafista Nonato Costa, 59 anos, que atuou na TV Amazonas por 32 anos relembra: “Ele era não só um bom profissional, mas um ótimo companheiro. Ele tratava a gente como irmão, parceiro, mesmo eu sendo subordinado a ele. Ele escrevia e ajudava a gente. Nós viajávamos bastante para o interior do estado fazendo matérias. Nas viagens que a gente fazia, ele não deixava ninguém ficar triste: era o tempo todo alegre, brincalhão. Nunca vi ele ficando com raiva”.

Nonato conta, com mais detalhes, sobre uma das matérias que produziram e que, para ele, foi muito marcante. “Nós fizemos uma matéria muito boa sobre o gasoduto Coari-Manaus. Fizemos o acompanhamento das tubulações de gás num documentário de Urucu a Manaus. Passamos de 20 a 30 dias viajando. Vandré trabalhava de manhã, de tarde, de noite, sempre animado e nunca com raiva. Levávamos muitos equipamentos e ele era muito alegre o tempo todo, sorrindo, alegre, brincando. O Brasil perdeu um grande profissional não só em Manaus. Quem conheceu ele, sabe quem é o Vandré e não tenho palavras para falar quem ele era”.

Nessas viagens longas ao interior do Amazonas, Vandré e os colegas ficavam expostos a diferentes tipos de riscos. Paulo Frazão, 54 anos, auxiliar técnico de cinegrafia, relembra um fato que ocorreu numa das viagens. “Em 2009, fomos fazer um trabalho com o IBGE sobre a pior seca que teve no Amazonas, e muita mortandade de peixes. Fizemos também a contagem dos eleitores com o IBGE e foi um dos piores tempos para mim, porque eu contraí uma bactéria de um peixe que comi e fiquei todo paralisado. Foi em Manaquiri que, depois de eu comer peixe, comecei a me sentir mal e não conseguia nem pegar um copo. Eu não conseguia me mover mais”.

Situações desafiadoras como essas, mobilizavam o aspecto humano e solidário de Vandré, na relação com os colegas e ele chegava a interromper o trabalho para socorrer quem precisava de ajuda. Paulo Frazão se lembra, com gratidão: “Ele voltou comigo na lancha até Manaquiri. Tinha até incêndio na estrada e ele todo o tempo meu companheiro. Fiquei internado por dois meses, paralisado”.

Frazão explica que havia contraído uma bactéria que “devorava todo o potássio do meu corpo”. Depois que o perigo passou, Vandré fazia brincadeira e graça com a situação, criando motivos para dar risada e gargalhar. “Depois que eu me recuperei, ele sempre dizia que ia levar um cacho de banana na viagem, porque tem muito potássio”.

Frazão não tinha ideia de como o envolvimento de Vandré com o trabalho era importante para a vida do colega, e de como aquelas aventuras o ajudavam a sustentar a vida, com suas adversidades. “Antes de ele sair da TV, fomos ao rio Uatumã. Foi um momento difícil na vida dele, e ele confessou para a gente que nós tínhamos salvado a vida dele. Disse que andava muito triste e sem vontade de viver”.

Mas qualquer recordação triste de Frazão é logo superada com as lembranças agradáveis e engraçadas do amigo: “Ele era um cara durão, alegre, que gostava de cantar, mas era muito desafinado. Ele me chamava de Pacu, o nome de um peixe. Meu santo batia muito com o dele. Meus encontros com ele fora da TV aconteciam em coberturas de reportagens. Foi muito legal o encontro. Ficamos no mesmo hotel”, referindo-se à viagem para o rio Uatumã.

Dentre as amizades conquistadas no ambiente de trabalho, a de Luciane Marques, 40 anos, jornalista, teve grande importância, pelo fato de ambos fazerem aniversário no mesmo dia. “Na minha casa, no dia do meu aniversário, 16 de janeiro, convidei amigos para comemorar. O Yano Sérgio e a esposa chegaram em casa, perguntando se podiam entrar com um amigo que estava lá. Era o Vandré que também fazia aniversário e aí ele brincou comigo, dizendo que ia colocar uma vela no meu bolo. A partir daí, nós nos unimos em amizade. Eu já trabalhava na Rede Amazônica e ele tinha acabado de entrar. Eu era cinegrafista e ele repórter”.

Luciane conta que “depois de uns anos, fui para a redação, porque engravidei e não podia carregar peso. Ele já era repórter da redação. Começamos a trabalhar juntos. Ele foi para a apresentação do Bom Dia Amazonas e eu fui ser produtora dele. Vandré me ensinou muita coisa: a gostar de meio ambiente, de pesquisa. A Amazônia era a paixão dele. É um amigo que vai fazer muita falta. Mesmo depois que ele saiu da empresa, nós não nos afastamos. Conversávamos todos os dias por telefone. Ele sempre me perguntava: ‘De quem a gente vai falar hoje?’ ‘Qual a série que você está assistindo?”

O fato de ambos fazerem aniversário no mesmo dia, fortaleceu uma amizade muito verdadeira e sincera. Segundo Luciane, “um falava para o outro o que pensava, como um ensinamento mesmo. Os aniversários meus agora não vão ser os mesmos, sem receber a ligação e mensagens perguntando: ‘Onde vamos comemorar nosso aniversário?’”

Vandré Fonseca no rio Xingu, em Altamira (Foto: Lilo Clareto/Amazônia Real)

De todas as amizades, a de Yano Sérgio Delgado Gomes, 46 anos, assessor de comunicação do Ministério Público do Estado do Amazonas, é outra das mais antigas no contexto da Amazônia. Essa amizade foi iniciada quando os dois ainda eram novatos na profissão, atuando em Boa Vista.

“Eu conheci o Vandré há mais de 20 anos. Ele era correspondente em Roraima do Diário da Amazônia, cuja sede é em Rondônia. A gente se conheceu entre uma pauta e outra. Eu era repórter da Rede Amazônica – TV Roraima. Nós viajávamos juntos, cobríamos pautas em comum e nos encontrávamos para trocar ideias. Eu também era iniciante”.

Yano relembra como Vandré estava sempre atualizado em todos os assuntos e, mesmo que não tenha nascido na Amazônia, ele sempre estava bem informado sobre os assuntos da região. “Chamava a atenção pela capacidade de compreender os cenários socioeconômicos, político, social do local onde se encontrava. Ele era muito perspicaz e era bonito ver a vibração dele pelo trabalho. Parecia um bandeirante paulistano, desbravando a Amazônia como repórter”.

Segundo Yano, Vandré “não tinha medo de atravessar fronteiras: era um cara corajoso. O Vandré, pela inteligência, conhecimento e coragem, fez a gente pensar em trazê-lo para trabalhar conosco na TV, para trazer um ganho inestimável. Aí, conseguimos a transferência dele da TV Roraima para a Rede Amazônica. Eu vim para Manaus transferido e ele continuou lá, mas veio depois de três ou quatro anos.”

A amizade entre os dois permaneceu, mesmo quando Yano veio para Manaus e Vandré ficou em Roraima. Ambos se encontravam quando o amigo viajava para Boa Vista, para visitar familiares. “Eu o visitava também, porque havia se tornado um grande amigo. Também dizia para ele que seria importante ele vir para um grande centro, que daria melhores condições de trabalho de qualidade e alcance melhor. Eu vim antes e achava que Roraima estava pequeno para Vandré, e ele veio para cá (Manaus)”.

Vandré cultivava as amizades que tinha na Amazônia e se envolvia com as pessoas, que eram consideradas como os familiares que ele não tinha por perto. “Aqui, continuamos amigos e mais parceiros, porque não tínhamos família aqui e dávamos força um para o outro na vida pessoal e profissional, numa relação fraterna. O Vandré era um cara de poucos amigos, mas tratava os amigos com um zelo muito grande e com muito carinho. Tinha muito cuidado com os amigos. Gostava muito dos meus filhos, visitava-os e se preocupava com eles na fase de minha separação. Era sempre muito bom estar com o Vandré, porque sempre tinha uma visão positiva da profissão e procurava alternativas para realizar um bom trabalho”.

Mas o que mais chamava a atenção do amigo Yano, em relação a Vandré, era o gosto pela leitura e como ele utilizava os conhecimentos obtidos para criar novos instrumentos de trabalho. “Era um jornalista incansável: lia muito, fazia cursos, criava ferramentas novas para realizar o trabalho dele. Ele era muito preocupado com as questões da Amazônia. Ele tinha uma visão protecionista e equilibrada da Amazônia, que permitia discutir formas de desenvolvimento para a região. Mas ele era muito cético para discursos oportunistas e identificava isso facilmente. Tinha uma ideia muito clara sobre a Amazônia, que funcionava como um escudo e ele destruía facilmente os argumentos das visões oportunistas”. Na verdade, Vandré era muito esperto e percebia, com facilidade, quando os oportunistas estavam querendo fazer uso da mídia e desmontava rapidamente as pretensões oportunistas, segundo Yano.

Por isso, quando o amigo Yano pensa na possibilidade de Vandré não estar mais atuando como jornalista na Amazônia, ressente-se pela perda de um de seus grandes guardiões. “O jornalismo da Amazônia perde uma referência de alguém que tratava a ética como algo inviolável no trabalho. A Amazônia perde um guardião como poucos. Ele ainda iria fazer muito pela região, pelas minorias. Ele tratava esse aspecto social do trabalho de modo muito forte. Com o nível de comprometimento que ele tinha, é difícil reposição de alguém como ele, como homem e como jornalista. Era uma pessoa íntegra ao extremo. A gargalhada era muito conhecida.”

Essa perda, segundo Jorge Campos, 59 anos, apresentador do programa Amazônia Interativa, do canal Amazon Sat, representa uma lacuna no jornalismo da Amazônia, que tem abrangência também no país e no mundo. “Na realidade, o Vandré, além de ser um homem extremamente humano, amigo, estava sempre a serviço do próximo. Também vai deixar uma lacuna para a profissão de jornalismo, pela forma como ele buscava e divulgava informações. Também deixou uma grande contribuição para a difusão da Amazônia, com belíssimas reportagens que mostrava, não só para o Brasil, mas também para o mundo: as belezas e potencialidades dessa região importante para a humanidade. Para mim, foi um aprendizado a experiência de conviver com ele, tanto em particular como profissionalmente”. A experiência de Jorge com Vandré também era de vizinho, porque “morávamos no mesmo condomínio também.”

A influência na nova geração de jornalistas

Vandré Fonseca em debate com Mayra Wapichana e Sineia Vale, em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Elaine Marques, 42 anos, jornalista da Assessoria de Comunicação do Portal Metropolitano, lembra bem como conheceu Vandré e como foi seu aprendizado na convivência com ele. “Eu conheci o Vandré na época que entrei na Fundação Rede Amazônica. Em 2004 e 2008, trabalhei em programas terceirizados na rádio Amazonas FM. Em 2009, entrei para a Fundação Rede Amazônica e fui estagiar na produção, tendo mais contato com o Vandré. Ele era uma pessoa muito simples, tranquilo, falava com todas as pessoas. Quando alguém tirava brincadeira, dava sorriso faceiro. Ele era muito atencioso com todo mundo, principalmente com os estagiários. Era muito generoso quando alguém perguntava algo e pedia a atenção dele. Ele procurava fazer sempre o melhor e fazia tudo com amor. Tratava todos bem e respeitava as pessoas sempre. A palavra para descrevê-lo é generosidade.”

O aprendizado dos profissionais mais novos com alguém que já tinha mais experiência foi importante para vários profissionais da nova geração, tal como Samira Benoliel, 29 anos, repórter da Rede Amazônica. “O Vandré é da leva antiga de profissionais e eu da leva nova. Quando entrei no quadro de profissionais, ele ainda estava atuando como repórter. Mas muito antes de eu me tornar jornalista, eu assistia às matérias dele sobre a Amazônia, meio ambiente e de jornalismo científico. Ele é referência no meio. Ele contribuía muito para a formação de profissionais novos, que tinham ele como referência no jornalismo, pelo jeito que ele contava e mostrava a Amazônia. Foi uma perda muito grande para a Amazônia. Mas ele vai continuar vivo, sendo a minha referência”.

Outros colegas, como Guilherme Fragas, 32 anos, editor chefe do Jornal do Amazonas, 2ª. edição, da Rede Amazônica, lembra como Vandré instigava os novos profissionais a serem críticos e comprometidos com as causas do contexto onde viviam. “Trabalhei com o Vandré durante alguns anos, principalmente na época em que ele esteve no Bom Dia amazonas. Ele era um cara muito inteligente, crítico, que ajudou a formar muita gente. Os mais novos na profissão não tinham uma visão mais crítica sobre determinados assuntos e ele instigava os jovens produtores a serem mais críticos e a elaborarem os assuntos que iam ser discutidos, com um olhar diferenciado.”

Segundo Guilherme, a forma crítica e rigorosa de Vandré realizar o trabalho, muitas vezes assustava quem estava começando na profissão. “Havia gente que interpretava isso como prepotência e arrogância, mas ele queria que as pessoas jovens tivessem uma visão mais crítica. Era um cara que tinha um humor peculiar e ria das próprias piadas, quando as pessoas não entendiam o contexto do que ele estava falando. Foi uma experiência muito boa, e ele vai fazer muita falta. Hoje em dia, são poucos os jornalistas que têm uma visão profunda sobre o assunto e conseguem analisar, criticar. Vai deixar bastante saudades”.

Vandré era um profissional que alternava os papeis de repórter sério e colega brincalhão no dia a dia da redação. Guilherme relembra: “No ar era mais sério, comprometido em transmitir a notícia, em passar seriedade e na redação mostrava mais seu lado extrovertido e brincalhão, mas não era o tempo todo não, porque ele era muito centrado no que fazia e cumpria com suas obrigações. Vai fazer falta. Era um cara que lutava pelo desenvolvimento sustentável, pelas causas ambientais”.

O que mais caracterizava Vandré, nas palavras de Guilherme, é que ele não gostava do que era convencional e comum no cotidiano. “Adorava pautas sobre desenvolvimento científico, que trouxessem boas reportagens, e boas discussões sobre a Amazônia. Não se contentava com o ‘arroz com feijão’, porque ele tinha que ter uma refeição completa. Hoje em dia, são poucos que vão além e ele era um desses que sempre ia além. Muitas vezes, ele era mal interpretado, quando estava ajudando a formar pessoas. Quem soube ouvir e interpretar a crítica dele cresceu muito profissionalmente. Hoje em dia, os meninos saem da faculdade e caem na produção. Nem sempre o que pensam é o que tem que ser feito.”

Guilherme é bem crítico em relação à formação do jornalista, para que não fique limitado ao que lhe é dado para fazer, pois em cada ação, segundo ele, é possível fazer desdobramentos que criam um estilo próprio de fazer jornalismo na Amazônia. Por isso, acredita que Vandré estava se realizando no trabalho que fazia no site de jornalismo independente Amazônia Real. Diz ele: “Encontrar o lugar adequado para expandir a criatividade é o grande desafio de cada um. O Vandré mostrava que ele tinha que ir além do que haviam pensado. Hoje em dia, tem poucas pessoas assim, porque aceitam tudo o que vem. O site [refere-se à agência Amazônia Real, onde Vandré estava trabalhando] é um projeto muito legal e lá ele encontrou gente que pensava como ele e que fazia uma grande discussão sobre a Amazônia. Ali ele se encontrou. Não tem uma visão estereotipada como tem a imprensa em geral”.

Os amigos de outros jornais relembram Vandré

Vandré Fonseca tinha uma olhar sensível para as causas da Amazônia (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Leanderson Lima, 38 anos, jornalista editor executivo do jornal Manaus Hoje, relembra como Vandré se comportava, diante do estresse do movimento do jornal onde ambos trabalhavam. Ele também contextualiza melhor como foi importante para Vandré trabalhar na agência de jornalismo independente Amazônia Real.

“Conheci o Vandré em 2006, quando ele já estava fazendo uma temporada no Jornal Correio Amazonense, que ficava perto da Bola do Coroado. Eu trabalhava lá e tive contato com ele. Ele não combinava com aquela loucura de jornal, porque era muito tranquilo, de paz. Ele era um cara de TV, de vídeo. Nos últimos contatos com ele, fiquei sabendo que ele estava na Amazônia Real. Eu fazia uma entrevista sobre esse site de jornalismo independente, que apresenta as populações amazônicas desassistidas da grande mídia e do meio ambiente. Eles têm esse trabalho de retratar essa realidade e foi lá que eu encontrei o Vandré na nova sede”.

Para o jornalista Leanderson Lima, assim como para outros que conheceram Vandré, a notícia do falecimento foi um baque, porque “ele é um cara novo e foi repentino. Foi chocante saber que ele sofreu um infarto no dia que o site recebeu um prêmio internacional. Foi triste ele sofrer isso, e tínhamos esperança de recuperação, mas aconteceu isso. Ele amava a profissão, tinha gosto de fazer um trabalho bom. Para mim, é uma tristeza, uma lacuna muito grande. O mais curioso é que ele não é daqui. Muitos amazonenses não se tocam do que temos aqui, e que temos que defender nossas causas: meio ambiente, população indígena, nossos tesouros. Tem uma frase no instagram dele que eu acho muito interessante: “jornalista que nasceu em São Paulo e escolheu viver no Amazonas”. Leanderson reconhece o fato de Vandré ser de outro estado e ter assumido e defendido a bandeira das causas amazônicas.

Profissionais da geração mais nova, como Mairkon de Castro, 36 anos, jornalista produtor da TV A Crítica, relembra a importância de Vandré e de suas dicas na produção de uma boa matéria, ajudando na formação de outros profissionais, no compartilhamento de suas experiências. “Na época, eu atuava no jornal impresso como freelancer da Folha de S. Paulo, em Manaus. A gente se encontrava nas grandes pautas nacionais e uma dessas pautas foi o Fórum de Governadores da Amazônia, que aconteceu no [pólo esportivo] Vasco Vasquez. Ele dava muitos toques na produção dos textos, no uso da fala do entrevistado, dando muitos toques para os novatos. Ele ajudava muito quem estava iniciando e às vezes dava carona no carro para ajudar. Eu lembro muito as dicas de como melhorar os textos. Quando fui para a TV, fiquei mais preso à programação interna e saio pouco, porque fico dentro da redação. Mas sempre me encontrava com ele. A imagem que guardo dele é das pessoas sentadas e ele chegava dando um sorriso de canto, meio seco para cumprimentar, sem intimidade, e depois ia se soltando.”

Mesmo os colegas que não trabalhavam na mesma empresa se lembram da influência de Vandré na sua formação e o legado que ele deixou para a categoria. Fábio Costa, 46 anos, jornalista de diversos portais, relembra: “Fui colega dele, mas nunca trabalhei na mesma empresa que ele. Eu era assessor de comunicação de um órgão do Estado e sempre que chamávamos a TV Amazonas era ele quem ia. Então, tivemos muito contato. Ele sabia que eu sou paulista também e sempre conversávamos e tínhamos amizade. Hoje, trabalho em outro veículo e sempre nos encontrávamos nas pautas. Uma coisa que vai marcar a gente é a pessoa humilde, alegre e comunicativa que era o Vandré. Nós, jornalistas do Amazonas, todas as vezes que estivermos numa pauta, iremos ecoar a voz do Vandré, porque sabemos o quanto ele era apaixonado pelo jornalismo. Com certeza, Vandré deixou um legado no jornalismo amazonense. Nós não perdemos um colega de profissão, mas alguém que era apaixonado pelo que faz.”

São muitas as palavras de reconhecimento sobre a importância do trabalho e das contribuições que Vandré deixou para o jornalismo na Amazônia. Luiz Augusto Pires Batista, 56 anos, diretor de jornalismo da Rede Amazônica, fala como o colega era respeitado como repórter e como participava das soluções dos problemas na empresa.

“O Vandré … eu também sou de São Paulo e vim em dezembro de 2005, convidado pela Globo para assumir a Rede Amazônica. Eu encontrei ele trabalhando no grupo e o que me chamou a atenção é que ele sempre foi um repórter muito presente e prestativo e se dispunha a fazer o que era necessário. A partir de então, criamos uma grande amizade. Eu conversava abertamente com ele sobre os problemas da redação e do dia a dia. Essa intimidade não se tem geralmente com os repórteres. Mas ele era amigo, propunha soluções e era muito mais que repórter.”

Luiz Augusto relembra como ele e os fundadores da Rede Amazônica identificaram o interesse de Vandré pelas questões ambientais, e de como o jornalista passou a ser designado para realizar as matérias mais complicadas. “Aos poucos, fui descobrindo que ele tinha um conhecimento muito grande sobre a questão ambiental e era alguém com quem a gente podia contar nas reportagens mais complicadas. Ele tinha grande conhecimento sobre a Zona Franca de Manaus. O Dr. Phelippe Daou, nosso presidente (faleceu em 2016), gostava muito do trabalho dele e ele me chamava no gabinete e falava assim: ‘Eu queria que fizesse tal matéria, mas queria que fosse matéria feita pelo Vandré’.”

Segundo Luiz Augusto, Vandré era versátil nas diferentes funções dentro da empresa de comunicação. Em seus anos de trabalho, conquistou a confiança do presidente e também do vice-presidente, e conquistou seus espaços no jornalismo, fazendo o que mais gostava: reportagens na rua. “Ele era pessoa de confiança do presidente e do Dr. Milton Cordeiro, que era vice-presidente de jornalismo e também fundador. Aí, o Vandré também trabalhou no núcleo da rede, fez reportagens para todos os jornais de rede, foi apresentador do Bom Dia Amazônia, trabalhou na chefia da reportagem, mas gostava mais de trabalhar com reportagens de ir para a rua. Ele não gostava de ficar internamente, e ao longo dos anos foi criando essa marca de alguém que tinha conhecimento dos principais temas de jornalismo. Era muito ponderado nas situações tensas: colocava a cabeça no lugar e sabia qual era a maneira mais certa de fazer.”

Em relação ao motivo de Vandré ter sido desligado da Rede Amazônica, Luiz Augusto explica que a empresa passou por um período de contenção de despesas e demissão, em 2017, após o falecimento dos fundadores. “Ele se tornou meu conselheiro e tinha bom humor, contando coisas engraçadas em tudo o que fazia. Em 2017, os donos faleceram e com a morte dos fundadores ele acabou saindo da emissora, com a nova direção, por contenção de gastos e não foi possível segurá-lo no time. Mas foi possível continuarmos amigos e sempre nos encontrávamos. Sempre terá essa memória preservada sobre o legado que ele deixou com tudo o que ele ajudou a construir.”

O convívio social fora do ambiente de trabalho

Alberto, Elaíze, Ariene (estudante de jornalismo), Kátia e Vandré na sede da Amazônia Real, em 2018.

Verônica de Castro Martins, 63 anos, professora de educação física, foi coordenadora de esportes do Colégio La Salle por 29 anos e presidente da Federação Amazonense de Ginástica por 10 anos. Ela conheceu Vandré durante as reportagens sobre esportes, e depois tornou-se amiga dele na convivência em situações festivas, na casa de uma prima de sua esposa.

“Conheci Vandré quando ele ia fazer entrevistas de esportes para o colégio e na federação. Depois, tive mais convivência com ele na casa da Iracema, que é amiga dele e da Rob. Eu sempre que assistia a TV, [achava que] era um dos melhores repórteres que tínhamos aqui no Amazonas. Ele começou em Roraima e depois veio para a Rede Amazônica em Manaus. Ele tinha uma dicção perfeita e sabia fazer a colocação dos assuntos. A gente se encontrava sempre na casa da Iracema. Eu me lembro do reveillon de 2016 para 2017, que passamos juntos. Eu lamento essa partida precoce de quem tinha muita coisa para realizar e conquistas, mas Deus chama e é assim mesmo”.

A prima de sua esposa Rob, Iracema da Costa Monteiro, 56 anos, economista e servidora do Ministério da Economia, relembra como Vandré entrou para a família. “Eu conheci o Vandré na TV de Boa Vista, assistindo ao jornal. Ele se casou com minha prima e nós nos reencontramos em Manaus, porque eles vieram para cá e eu já morava aqui. Eles passavam o Natal e Ano Novo em minha casa. Nós tínhamos convivência de família: íamos juntos para festas, eventos, e estávamos todo o tempo juntos”.

Vandré era como membro da família e por ter a pele e cabelo claros, tal como a prima da esposa, muitos pensavam que ele era o primo dela. “Ele foi adotado pela nossa família como parente de sangue e nós amamos muito o Vandré. A situação mais curiosa, é que eu dizia que ia sair com minha prima e o esposo, mas por ele ser claro, as pessoas pensavam que ele era o meu primo. Ele era muito brincalhão, divertido. Nossos encontros eram sempre à base de risadas e alegria. No casamento do meu filho Guilherme, ele ficou tão feliz que até cantou no microfone. Todos ficaram admirados, porque era tímido e se soltou, dançou e cantou: pegou o microfone da banda e se soltou”.

Outra amiga de Vandré, Linda Lúcia Oliveira Ramos de Lima, 53 anos, advogada, também se refere a ele pela alegria contagiante que sempre estava presente em seu comportamento. “Eu só me lembro dele sorrindo, gargalhando e tomando café da tarde com a gente. O que mais me faz recordar o Vandré é o profissionalismo na área de ecoturismo, econatureza. Ele era um grande conhecedor nessa área e falava com conhecimento. Eu não posso deixar de falar do amor dele pela Rob, que era intenso”.

A amizade de Vandré com o esposo de Linda o fez se tornar um amigo-filho, com quem estavam em constante contato. “Eles conversavam muito e meu esposo o aconselhava e ele ria. Umas duas semanas antes dele falecer, eu mandei ele buscar documentos no nosso escritório. Ele falava muito da avó e sofreu muito quando ela faleceu. Ele tinha muitos planos e projetos profissionais. Era muito dedicado, crítico com o que achava errado e ninguém fazia a cabeça dele, quando se posicionava diante dos assuntos. A gente pensava que ele era durão, mas parecia um bebezão, chegando em casa, pedindo uma caneca de café. Ele amava muito a família e falava chorando, se derretendo e lembrando das coisas”.

Por ter deixado a terra natal e os familiares para se dedicar às causas da Amazônia, Vandré pagava um preço afetivo muito alto, principalmente nos momentos em que se sentia triste, e não tinha como recorrer ao aconchego familiar. Por isso, com sua simpatia e inteligência, criou relações de amizade que se assemelhavam às relações familiares das quais carecia. Assim, foi na convivência com amigos mais próximos, como Esaú Matias de lima, 62 anos, advogado e esposo de Linda.

“Eu convivi com ele num momento difícil da vida dele. Saía de casa para o trabalho muito cedo e quando voltava ia para casa direto. Só deixava as coisas na casa dele e ia lá conversar comigo. Ele estava muito triste e choroso, por causa de uns problemas pessoais. Eu o incentivava e encorajava ele e conversava sobre muitos assuntos; eu também aproveitava para aprender sobre as guerras do Iraque, Síria e outros países. Vandré era um homem muito culto sobre questões políticas, econômicas, históricas. Ele era muito inteligente e conhecedor de todas as coisas que permeiam a nossa vida. Eu levei ele na minha igreja, falei sobre a palavra de Deus e ele saiu fortalecido sobre a vida de um modo geral. Eu não sabia, mas tudo o que a gente conversava, ele relatava para a mãe dele. Eu fiquei sabendo que ele tinha eu como se fosse um pai. Eu gostava daquele sorriso dele. Eu dizia: “Você não ri: você gargalha!” Era inconfundível, alegre e divertido”, relata Esaú, relembrando o amigo-filho.

A comunidade se ressente da ausência do repórter

Cleia Evangelista de Souza, 46 anos, enfermeira, foi se despedir de Vandré, em nome da mãe, que é uma grande admiradora das reportagens que ele fazia. “Eu só sou fã dele. A minha mãe, que trabalha na prefeitura é que conhece ele. Ele era muito talentoso, esforçado, sabia dominar a matéria. Eu estranhei que ele tinha sumido da TV. Achei que ele tinha ido para fora. Ele dava muita reportagem na área ribeirinha, gostava muito da natureza. Eu creio que Deus vai recebê-lo de todo o coração. Ele é uma pessoa muito humana. Que Deus possa confortar a esposa, a mãe, a família, porque nessa hora não é fácil”.

Vandré conquistou amigos também no condomínio onde morava, participando de assembleias e dando sugestões pertinentes aos problemas que eram apresentados nos encontros de condôminos. Cinélia Mendonça Printes, 50 anos, auditora de controle interno da Prefeitura de Manaus, moradora do condomínio, relata que conheceu Vandré como condômino. “Ele era extremamente educado, disposto a colaborar e ajudar. Dava seus pareceres bem posicionados. Fiquei chocada com a notícia. Era uma grande personalidade, uma grande pessoa”.

A ex-vizinha Irna Suely Fernandes da Silva, 60 anos, funcionária pública da Prodam aposentada, relembra como o vizinho era amável e educado, na convivência cotidiana. “Eles eram meus vizinhos do lado da minha casa. Casaram e foram morar lá. Durante um tempo, fizeram uma reforma e deixaram as coisas deles em casa: guarda-roupa e roupas. Eles gostavam muito de feijão com bucho que meu marido cozinhava. Vandré não gostava, mas a esposa sim. Era um rapaz muito tranquilo, educado, muito dado. Sempre estava dando bom dia, perguntando como estávamos”.

Outros profissionais, como Welerson Nascimento, 34 anos, empresário contábil, que conheceu Vandré por intermédio de Rob, também relembra a grande amizade, permeada por conversas inteligentes. “Ele comentava muito sobre o trabalho que fazia e gostava de fazer. Trocávamos experiências profissionais e sempre me passou ser um homem trabalhador, dedicado à esposa, que aparentava ser uma ótima pessoa.”

Nesse contexto dos que foram dar o último adeus a Vandré, também esteve presente Lucimar Peixoto Marques, 64 anos, que trabalha com cozinha popular em Boa Vista, Roraima e que estava em Manaus. “Moro em Boa Vista há 30 anos. Estou em Manaus, na casa da minha mãe, no bairro de Santa Luzia, perto de Educandos. Eu vim a pé para ver ele, porque não dormi à noite pensando: “Pôxa vida! Deus precisou desse jovem com todo esse vigor…!!! Só Deus para nos dar essa conformação toda!”

Lucimar, também conhecida como Lucy Marques, contou como Vandré fez sua abordagem, certa vem em que estava numa feira local, fazendo-a participar da reportagem que ele estava fazendo. Isso a tornou popular no bairro onde mora sua mãe em Manaus. “Eu conheci ele das reportagens na televisão, com aqueles olhos lindos! Uma vez, eu estava na feira e ele estava entrevistando as pessoas sobre pescado e eu saí na reportagem local. As pessoas diziam depois: ‘Olha! Eu te vi na televisão!’ ”.

A simplicidade do repórter e como ele deixava as pessoas que entrevistava à vontade, principalmente quando faziam parte dos grupos populares, era fundamental. “Eu estava de sandália e boné e tinha ido fazer a feira e ele me pegou para andar com ele nas bancas. Ele disse que era bom eu estar daquele jeito: ‘o importante não era a roupa, mas poder se expressar’. Minha mãe, Maria Peixoto Marques, com 92 anos, é fã dele. Ela conhecia ele pela televisão e o chamava de ‘Meu jornalista’. Ela perguntava sempre: ‘Cadê meu jornalista?’ Aí, ontem, eu via a reportagem falando dele. Eu disse: ‘Eu vou a pé, mas vou ver meu amigo!’ Vim prestar minhas últimas homenagens a ele.”

As saudades e a importância da paz no ar

Vandré Fonseca viajando para entrevistar ribeirinhos no Rio Negro (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A morte é inevitável, mas há diferentes formas de morrer. Contudo, todas elas deixam lacunas de dor para aqueles que amaram e continuam amando aquele que deixa de estar presente no cotidiano da vida no mundo físico. Quando se trata de um defensor da Amazônia, da floresta, dos seres vivos e dos povos que nela vivem, essa dor é ainda maior, porque sabemos como esse território do país é vulnerável e como, frequentemente, vive ameaçado pela ganância dos que querem ganhar dinheiro e poder político com seus recursos naturais e o sacrifício dos povos e seres que nele vivem.

Vandré era um dos guardiões da floresta amazônica e dos seres e povos tradicionais que nela habitam. Enquanto eu fazia as anotações e ouvia as palavras das pessoas que me ajudaram a compor a vida de Vandré como profissional e ser humano, ficou ainda mais desafiador reconhecer como um coração tão grandioso como o dele pudesse ter adoecido e necessitasse passar por uma cirurgia tão séria. Até mesmo nos encontros que eu tinha com ele para o relaxamento pré-cirúrgico, ele estava sorrindo e de bom humor.

Na verdade, diante da correria do cotidiano, todos nós precisamos dar uma parada, para ouvir a voz do coração, principalmente quando ele está pedindo socorro. Não é preciso que o coração pare de funcionar para que possamos reconhecer que ele, ou algum outro órgão do corpo, está em processo de sofrimento. Principalmente o coração – que trabalha, incansavelmente, dia e noite, desde antes de nosso nascimento, para nos garantir a vida – tem o direito de ser bem tratado e saber ouvi-lo é fundamental.

Cada ser é único e insubstituível, mas quando um guardião da Amazônia conclui sua missão de vida na terra, nós nos perguntamos: o que se pode esperar dos dias do amanhã? Como fica nosso coração, neste imenso coração da Amazônia, e como fazer para defendê-la de tantas agressões?

A morte de alguém sempre nos faz pensar na possibilidade de nossa própria morte. Mas mesmo continuando vivos, nós morremos um pouco, no processo de reconhecer a ausência do outro em nossas vidas. Há lições de vida que não estão presentes nos livros nem nos tratados sobre os diferentes assuntos que elucidam a vida no planeta. Há lições de vida que estão presentes na convivência direta e no ar que respiramos e compartilhamos uns com os outros.

Segundo os orientais, podemos inspirar a verdade alheia não somente pelas imagens, sons e palavras ouvidos e escritos, como nas também nas sensações internas percebidas em nosso organismo, à medida que vivenciamos diferentes experiências na relação conosco e com o próximo. Também podemos expirar a nossa verdade, juntamente com o ar que sai de nosso pulmão e se dirige a outros corpos no ambiente em que vivemos. Assim, a verdade pode nos chegar pelo ar que respiramos, porque é um grande meio de comunicação silencioso que flui entre nós. É assim que os grandes Lamas do Oriente transmitem seus conhecimentos aos discípulos, sem fazer uso de palavras: simplesmente no silêncio.

O ar carrega consigo a verdade do mundo interior de cada um de nós. Ao sair de um corpo e entrar no organismo alheio, ele leva consigo a mensagem silenciosa da verdade do interior de cada ser, que é compartilhada e ampliada. Assim, essa verdade segue seu fluxo enquanto toca e modifica a intimidade dos corpos de cada pessoa com as quais convivemos e que compartilham do mesmo ar. Então, ainda que não estejamos conscientes disso, o ar passeia no nosso interior, levando e trazendo informações que podem ser até mais importantes do que as de uma reportagem televisiva ou escrita.

Sendo assim, neste momento, o que queremos é inspirar o ar da verdade deixada por esse grande defensor da Amazonas, Vandré Fonseca, quando deu sua última expiração. Queremos que a verdade de Vandré, assim como a de outros guardiões da Amazônia que já se foram, adentre nosso mundo interior, fazendo-nos ser mais verdadeiros, mais íntegros, mais éticos e comprometidos com a vida e com os seres que aqui vivem.

Queremos receber o que ficou disponível no ar, deixado ao ser expirado por todos aqueles que lutaram para que a vida na Amazônia fosse mais justa, mais digna e respeitada, visando assegurar vida para os futuros moradores deste território que serão nossos herdeiros no amanhã.

A experiência de conhecer melhor Vandré deixa o convite para todos sobre a importância do ar e das mensagens que ele levava para o interior de cada um de nós. Nessa mensagem, está implícito ouvir a voz interior e cuidar mais do nosso coração, sentindo quando ele sofre e quando pede socorro, para dar a ajuda necessária para que ele sobreviva.

Para nos tornarmos verdadeiros guardiões da Amazônia, temos que nos tornar, primeiramente, guardiões de nós mesmos. É garantindo uma boa saúde, que poderemos ser, também, guardiões do Brasil e do planeta em que vivemos. Precisamos continuar vivos, para que a verdade do ar que respiramos possa continuar fluindo para mais e mais pessoas. Por isso, neste momento de união e integração entre todos os que amaram e admiraram Vandré, e que respiraram o mesmo ar na Amazônia e em outros lugares do planeta, fica a mensagem para que continuemos a realizar a troca pacífica de nossas verdades, pelo ar que respiramos. É isso que nos irá fortalecer na continuidade da missão que todo e qualquer guardião da Amazônia deve levar consigo.

Juntos e fortalecidos para dizer sim, quando for o momento de dizer sim, e saber dizer não quando for o momento de dizer não, mesmo que possamos ser divergentes uns dos outros, que seja mantida a integridade de nossa verdade mais sincera, aquela verdade da linguagem silenciosa que está no ar que respiramos. Por meio desse ar, podemos promover a paz, mantendo-nos unidos pelo amor à Amazônia, com a promessa de que iremos defendê-la sempre, como território e patrimônio da humanidade.

Fica, assim, nosso agradecimento a todos que se dispuseram a relatar suas experiências na convivência com Vandré Fonseca, para que eu pudesse recompor a história da vida desse jornalista que amou tanto sua profissão e sua missão na Amazônia. Vandré Fonseca, pelas inspirações e expirações que nos proporcionou, e pelas verdades que nos transmitiu no silêncio das batidas de seu coração, enquanto se comunicava conosco, deixa-nos muitas lições de vida. Fica a ele o nosso agradecimento pelo que gostaria de ter dito, mas seu coração não permitiu que dissesse. Fica nosso agradecimento pelos riscos que sofreu durante as viagens que realizou pela Amazônia, trazendo-nos palavras silenciosas e pulsar de corações de irmãos distantes, para que compreendêssemos a realidade do cotidiano de quem vive nos mais distantes rincões desta imensa Amazônia.

Que todos nós possamos continuar fazendo o mesmo em qualquer atividade que realizarmos, com a consciência de que, além das imagens, palavras e sensações, estaremos compartilhando o ar que respiramos com todos com quem nos relacionamos. E que esse ar seja promotor da paz, da saúde do coração e de todo o organismo social onde vivemos. É justamente isso que nos irá fortalecer na defesa da Amazônia e dos seres e povos que nela vivem.

Assim, que todos estejam em paz, e que o jornalista paulista Vandré Fonseca do Nascimento receba o reconhecimento do povo da Amazônia, por tudo o que fez em defesa deste território sagrado do planeta, para que ele possa continuar contribuindo para a vida sadia de todos os seres que aqui habitam.

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”

2 Comentários

Mairkon Castro disse:
15/12/2020 às 02:52
Amei
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Arnoldo Santos disse:
25/02/2019 às 18:52
O texto faz voltar no tempo e lembrar tantas e tantas passagens do convívio com o Vandré. Foi bom ler os depoimentos. Todos foram muito certeiros do que lembramos do nosso amigo. Valeu pelo registro, Alguém tinha de fazê-lo. Vida longa ao empreendimento das queridas Elaíze e Kátia, junto com nosso grande brother, Alberto. Não somente queridos colegas, mas profissionais respeitadíssimos. Abraço fraterno!
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