Vila de Balbina sob o temor da privatização da Eletrobras

Por Vandré Fonseca Publicado em: 14/05/2018 às 11:44

Criada para abrigar funcionários da usina hidrelétrica nos anos 80, em Presidente Figueiredo, o lugar está em área que pertence a estatal (Vila de Balbina em foto de Bruno Kelly/Amazônia Real)

Presidente Figueiredo (AM) – Moradores de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, a cerca de 180 quilômetros de Manaus, temem ser despejados caso a Eletronorte Amazonas Energia, subsidiária da Eletrobras, seja privatizada pelo governo federal. A vila, onde vivem mais de 2.300 pessoas, é administrada pela empresa estatal e, segundo os moradores, fica em uma área da União, concedida à empresa.

A Vila de Balbina deveria abrigar apenas funcionários da usina hidrelétrica. Mas operários que trabalharam na construção e decidiram ficar na região, além de ribeirinhos que não foram compensados pelos prejuízos provocados pela barragem, também ganharam casas no povoado.

A usina começou a ser construída em 1981, mas a quinta e última turbina só entrou em operação em 1991. Além de atender cerca de apenas 10% da necessidade de Manaus, Balbina provocou impactos socioambientais que continuam a ser sentidos até hoje.

Quase 240 mil hectares de florestas foram inundados, um terço da população de índios Waimiri-Atroari, que viviam na região do Rio Uatumã, foi deslocada. Ribeirinhos também foram afetados, devido principalmente ao impacto sobre a pesca.

“A população está preocupada porque no pacote de venda pode estar contemplada também a venda da vila e casas onde os moradores vivem”, conta a padre Israel Magdaleno Juarez, um mexicano que há dois anos chegou a Paróquia do Perpétuo Socorro, em Balbina. “Muitos nasceram e se criaram ali. E os outros, após 30 anos, já não têm a mesma força de antes para recomeçar uma história em outro lugar.”

Maria José Canté da Costa, que mora na vila há 32 anos, diz que os moradores não querem sair de Balbina. Ela chegou à vila para morar com o esposo, funcionário da usina, e permaneceu por lá mesmo após a morte dele há 18 anos. Quando ficou viúva, quase foi expulsa por não ser funcionária da concessionária de energia. Conseguiu ficar, porque nessa época já trabalhava no hospital.

“As famílias já criaram raízes, tem um amor, um carinho por aquela terra”, diz a moradora. “Essa é uma problemática que não é só minha, mas de muitos moradores: Balbina acabar, Balbina ser vendida e nós sermos vendidos junto. Sair de Balbina? E ir para onde?”, questiona.

A preocupação aumentou com a iniciativa da gerência da vila de retirar moradores que não tinham vínculo com a empresa. O padre conta que famílias foram intimidadas pelo atual gerente, ameaçadas de despejo. Pelo menos três famílias teriam recebido intimação para deixar as casas.

“Ele (o gerente) entregou ofícios a algumas famílias, dando o prazo até 30 de março para eles deixarem as casas, sem dar nenhuma opção de moradia para essas empresas”, diz o padre Juarez.

As famílias não saíram graças à intervenção do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, que passara em 16 de março uma recomendação para a Eletrobras Amazonas Energia suspendesse qualquer tentativa de retirar moradores da vila.

“A nossa petição em torno dessa causa é que as casas sejam cedidas definitivamente para quem vive nelas, porque são eles que cuidaram dos imóveis esse tempo todo”, reforça o representante dos moradores da Vila Residencial de Balbina, Jorge Figueiredo.

Denúncias de abusos

Vila de Balbina: moradores temem ação de despejado (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Antonio Cordeiro de Souza vive no lado Atroari da Vila de Balbina (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Os moradores denunciam abusos cometidos pela empresa. No dia 5 de janeiro deste ano, uma sexta-feira, de acordo com o que conta Antônio Cordeiro de Souza, morador de Balbina, uma advogada e um motorista identificados como representantes da empresa Eletronorte destruíram o galinheiro, onde ele criava cerca de 200 frangos. Também destruíram onde ele plantava e colhia tomate, cebolinha e cheiro-verde.

“Eu não estava no local na hora”, conta Antônio de Souza, aposentado devido as sequelas da hanseníase. “Eles chegaram lá, invadiram, destruíram tudo e foram embora. Eu tinha ido almoçar e quando retornei, já estava tudo destruído.”

Antônio de Souza, que diz criar frangos e peixes na entrada da vila há dez anos, conta que chamou a polícia. Os ditos funcionários da empresa afirmaram que ele estava invadindo área de reflorestamento, segundo o produtor rural, e que seria processado. Deram o prazo de 72 horas para ele deixar o local.

“Eu falei que já tinham passado vários gerentes pela empresa e nenhum deles nunca foi lá me agredir, me atacar ou chamar para conversar, dizer que eu não poderia ficar lá”, diz o morador da vila. “Se a terra era deles, eu não me recusava a sair. Só queria que me desse um prazo adequado para eu sair. E não fazer da maneira que eles fizeram destruir tudo o que é meu, sem me comunicar e sem dizer nada”.

A mágoa do produtor rural é ainda maior devido ao tratamento preconceituoso que recebeu da advogada. No lugar de se dirigir ao produtor pelo seu nome, a advogada usou um apelido pejorativo que fazia referência a uma sequela nos membros de Antônio de Souza causada por hanseníase. O produtor está curado da doença.

A Amazônia Real entrou em contato com a Eletrobras, para buscar informações sobre a situação da Vila de Balbina diante dos planos de privatização da empresa e também para ouvir a versão da companhia sobre as denúncias dos moradores. Após vários contatos por telefone e envio de e-mails, a empresa informou que não ia se manifestar sobre o assunto.

Desestatização no Congresso

A privatização da Eletrobras é um projeto de lei do presidente da República, Michel Temer (MDB). No dia 22 de janeiro deste ano, o Diário Oficial da União(DOU) publicou a mensagem dele encaminhada ao Congresso Nacional em que trata da desestatização da empresa pública. O texto do projeto determina que a privatização se dará por meio do aumento do capital social da empresa, que oferecerá novas ações na bolsa e, com isso, a participação dos atuais acionistas será diluída.

De acordo com a proposta, que está sendo analisada pela Câmara dos Deputados, o aumento de capital social poderá ser acompanhado de oferta pública secundária de ações da União. Isso significa que o governo poderá vender suas ações e que o dinheiro arrecadado vai para os cofres públicos — e não para o caixa da empresa. A expectativa do governo é de que a privatização garanta ao Tesouro uma arrecadação de R$ 12,2 bilhões com o pagamento à União do bônus de outorga. Especialistas, sindicalistas, políticos da oposição criticam a privatização.

A hidrelétrica polêmica

Lago da hidrelétrica de Balbina (Foto de divulgação)

A Usina Hidrelétrica de Balbina foi planejada no auge da crise do Petróleo, meados da década de 1970, com alternativa para atender a Zona Franca de Manaus. A demanda da capital do Amazonas era atendida por um parque termoelétrico. Hoje é vista como um grande erro, exemplo de obra faraônica mal planejada, que que resultou em enormes prejuízos ambientais e sociais

Projetada para produzir até 250 MW, na verdade não nem média nem a metade dessa quantidade, obtendo em média 112 MW. Nunca deu conta de atender toda a cidade de Manaus, que continuou a crescer e precisar a cada ano de mais energia. Para cada quilômetro quadrado inundado, Balbina em capacidade de produzir só 0,1 W. Com lago de extensão semelhante, Tucuruí produz cerca de 8 000 MW, ou seja, 320 MW / Km2.

A barragem do Rio Uatumã provocou morte de peixes e fez surgir um enorme lago, com quase 240 mil hectares. As árvores inundadas ainda apodrecem sob as águas, emitindo grandes quantidades de gases e metano e, portanto, contribuindo para o aquecimento global. Devido a esse fenômeno, Balbina contraria a tese de que hidrelétricas significam necessariamente energia limpa e demonstra que em regiões tropicais podem ser tão poluidoras quando geradores a óleo.

As duas vilas de Balbina

Padre Israel Magdaleno Juarez vive no lado Waimiri da Vila de Balbina (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Para dar apoio aos trabalhadores, a Andrade Gutierrez, responsável pela obra, construiu uma vila com casas de madeira, que deveria ser temporária. Inicialmente, a Vila Atroari contava com 854 casas, mas a maior parte foi desmontada quando a usina ficou pronta.

A Vila Waimiri, ou vila permanente, foi construída a partir de 1984. Além das 282 casas de alvenaria, conta com infraestrutura de dar inveja a muitos núcleos habitacionais, com sistema de coleta de esgoto, escola, posto de saúde e hospital. Deveria abrigar os futuros trabalhadores da usina, mas hoje é lar também de servidores municipais.

Filhos e netos dos primeiros trabalhadores das obras da hidrelétrica que morreram ou deixaram o emprego também moram no local. O local também se tornou lar de ribeirinhos que foram desalojados de seu território por causa da usina.

As duas localidades formam um povoamento que ficou conhecido como Vila de Balbina, onde vivem mais de 2.300 pessoas, segundo dados obtidos pela Cáritas Diocesana de Manaus junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). São 300 famílias (1.200 pessoas) na Vila Atroari e 282 famílias (1.128 pessoas) na Vila Waimiri.

Como parte das medidas para minimizar os danos provocados pela usina, foi criado em 1984, o Centro de Proteção Ambiental de Balbina, que deveria ter laboratórios, espaços para coletas de dados e alojamentos. O CPAB deveria abrigar também um acervo relacionado aos índios Waimiri-Atroari, que sofreram impactos com a construção da hidrelétrica.

Apesar de ser construído parcialmente, apenas os laboratórios ficaram prontos, o CPA de Balbina foi tombado pelo Patrimônio Cultural e Artísticos do Estado do Amazonas, por ser uma das grandes obras do arquiteto Severiano Mario Porto no Amazonas.

Infelizmente, a falta de cuidados pesou sobre o CPA de Balbina, que hoje está em ruínas. Uma ação do Ministério Público Federal tenta obrigar a Eletronorte a recuperar as instalações.

Uma liminar de maio de 2017 determinou que a Eletrobras apresentasse dois planos de ação emergenciais para evitar a ruína e desabamento e conservar o acervo arqueológico do CPAB. Segundo informações da Procuradoria da República no Amazonas, esses planos já foram aprovados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas.

Casas em vez de indenizações

Vila de Balbina pode acabar com a privatização da Eletrobras (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A vila temporária, chamada de Atroari, deveria abrigar apenas os trabalhadores da obra da Hidrelétrica de Balbina. Quando a usina estivesse pronta, o que ocorreu em 1991, o projeto inicial previa o desmonte total da vila. As casas seriam casas levadas para outros lugares. Mas não foi o que aconteceu. Uma parte das casas foi entregue a ribeirinhos atingidos pela barragem e que ficaram sem lar ou meio de sobrevivência. Outra parte, para operários que ficaram sem trabalho após a construção.

“Como a Andrade Gutierrez não tinha, na época, outra obra para levar os funcionários, a maioria pediu para acertar as contas e ficar para tentar a sorte”, lembra Sebastião Souza de Alencar, o Tião Alencar, de 68 anos. “Eles foram ficando e a empresa perdeu o controle de desmanchar toda a Vila Atroari”.

Tião de Alencar é um dos mais antigos moradores da região do Rio Uatumã. Está lá desde 1956. Quando a vila foi construída, ganhou uma casa onde vive até hoje. Ele conta que a empresa chegou a desmontar mais de 600 casas e entregá-las aos governos estaduais de Roraima e Amazonas. Mas outras 221 ficaram.

As casas eram habitadas por famílias de operários da obra, que pretendiam aproveitar a proximidade de Manaus para recomeçar a vida. Mas havia também gente da região, que sofreu as consequências ambientais e sociais da obra.

“Com a inundação e barramento do Rio, ribeirinhos passaram por sérias dificuldades”, conta o líder comunitário Jorge Figueiredo. “Para não cumprir com o contrato que seria dispendioso para ela, a empresa permitiu que eles ficassem na vila residencial. Agora, trinta anos, quarenta anos depois, ela pensa em vender a usina e o temor é que as pessoas sejam evacuadas do local”.

Antônio Amorim de Oliveira, de 71 anos, hoje mora da Vila de Balbina, mas antes da construção da usina vivia na marquem esquerda do Rio Tarumã. Tem na memória um tempo em que o rio ainda não havia sofrido os impactos da barragem.

“Tínhamos nosso peixe, água limpa, peixe a vontade”, recorda. “Hoje, você vai lá, uma água poder, peixe com mercúrio”. Com a chegada das obras, a situação mudou. Além da natureza, a vida das pessoas que sobreviviam do rio e da floresta seria totalmente alterada.

“Nós éramos escorraçados pela empresa”, conta. “Você não podia comprar um gás, que iam lá e mandavam prender”.

Os ribeirinhos receberam a promessa de indenização e reassentamento. Iriam ocupar uma área hoje onde fica uma outra vila, a Fé em Deus, a cerca de 60 quilômetros da usina. Tudo ficou na promessa. Sem indenização e sem reassentado em outro lugar, Antônio acabou aceitando uma casa na vila, onde vive até hoje.

“Ninguém viu para onde foi o dinheiro e nós ficamos lá, na beira do rio, sem nada”, conta. “Foi quando a Eletronorte chamou e jogou as chaves em cima do balcão e disse ‘taí, escolhe as casas que vocês querem ficar’. Por isso, o pessoal pegou as casas lá. Hoje os pais são mortos, mas os netos e os filhos e os bisnetos continuam morando lá”.

Ele resume como os moradores da vila enxergam a tentativa de retirá-los de lá: “Para mim, quem faz isso é um carrasco. Mandar a pessoa sair de casa e dar um caminhão de mudança sem ter para onde ir, para mim é coisa de carrasco”.

Vista aérea do lado Atroari da Vila de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vista da portaria que da acesso à hidrelétrica e a Vila de Balbina, administrada pela Eletronorte (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vila de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vila de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vila de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Lado Atroari da Vila de Balbina, em Presidente Figueiredo, distante 180 km de Manaus (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vila de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Ruínas do Centro de Proteção Ambiental de Balbina, em Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Ruínas do Centro de Proteção Ambiental de Balbina, em Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Ruínas do Centro de Proteção Ambiental de Balbina, em Presidente Figueiredo, distante a 180 km de Manaus (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vista aérea da hidrelétrica de Balbina, administrada pela Eletronorte Amazonas Energia, subsidiária da Eletrobras (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Vandré Fonseca

3 Comentários

Antônio disse:

11/07/2023 às 14:40

O terror da vila de Balbina não é a privatização da Eletrobrás mas sim o fato da prefeitura de Presidente Figueiredo se negar de todas as formas a assumir a Vila de Balbina

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Simone de França Aguiar disse:

18/07/2022 às 09:03

Morei aí na vila de Balbina quando meu pai trabalhava para a Andrade Gutierrez. Eu lembro da minha escola, dos campeonatos que faziam nas escolas, meus irmãos devem ter medalhas até hoje guardadas desta época. Boas lembranças e tempos que ficarão na minha memória, os moradores eram unidos, brincávamos na rua, casinha de madeira, era tudo tão bonitinho.
❤️

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Maria ester da silva Pinheiro disse:

25/02/2021 às 16:28

Gostaria de saber informações atualizadas dessa situação… estamos vivendo o mesmo drama na vila de Tucuruí no estado do Pará.

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