Virgem do Carmo, Rogai por Nós!

Por Amazônia Real Publicado em: 16/07/2015 às 16:42

FÁTIMA GUEDES

No momento em que a Comunidade Católica de Parintins se envolve em toda uma cênica de espiritualidade para homenagear a Flor do Carmelo, urge refletir sobre as tentativas do Papa Francisco em reconstruir as bases do cristianismo sob as pegadas de Jesus de Nazaré. Vale chamar atenção sobre o desafio de Francisco frente a atual conjuntura político religiosa de tendência mercantil, classista e conservadora onde o lucro determina valores, ciência, crenças, relações afetivas e poderes constituídos.

A propósito das referências e do perfil interventor do Bispo de Roma às contradições da Igreja Católica, quem sabe, a partir de 2015, as festividades dedicadas à Padroeira de Parintins – Nossa Senhora do Carmo – se lancem como instrumentos para mudanças significativas na existencialidade dos ilhéus…. A perspectiva leva em consideração o volume de parintinenses ditos seguidores do cristianismo. Por coerência, espera-se destes atitudes combatentes às injustiças, às desigualdades, às omissões, às rotineiras corrupções administrativas; aposta-se ainda num repensar entre dizer e fazer.

Com base em evidências, é impossível negar os pecados cometidos aos direitos básicos do parintinense, de modo especial, à saúde, à educação, à saneamento básico, lazer digno, trabalho e renda… São agravos cotidianos sob aceitação passiva de órgãos fiscalizadores e da própria população, massa de manobra política e religiosa. Clamores por Justiça Social são abafados nos bastidores das representatividades e até mesmo entre anunciadores da “boa nova” do Mestre.

No saber popular, quem a boca do meu filho beija, a minha adoça. Agrada-se à Mãe do Mestre, a partir da realização da vontade do Filho. E, segundo relatos bíblicos, o Nazareno não hesitou apontar o dedo a fariseus hipócritas, a vendilhões do Templo e provar a Caifás a impossibilidades de diálogos harmoniosos entre opressores e oprimidos.

Em observação às provocações do Papa, trazemos um fato da cotidianidade parintinense cuja materialidade se oferece como oportunidade de se levantar o debate político cristão, neste momento em que o mercado legislativo brasileiro negocia a condenação dos pequenos miseráveis da Nação à guilhotina social, e sobre a questão, Parintins, mais uma vez se recolhe em silêncio.

Era mais de meio dia e meia; o sol escaldante sobre a cidade de Parintins deixava a Rua 10, Bairro Itaúna II, quase deserta, não fosse a inesperada presença de um garoto, pela aparência, 7 ou 8 anos. As configurações na expressividade do Solitário Curumim, naquele horário, em contraste com as extravagâncias e aparatos midiático-ideológicos trazidos na bagagem da Festa do Carmo, preenchera na totalidade não apenas a rua, mas nossa percepção e compromisso dialógico – era um testemunho por excelência para a condução do debate…. Talvez até uma revelação da Santa à necessidade de intervenção às hipocrisias da Ilha.

O Solitário Curumim trajava apenas um velho short amarrado à cintura por uma corda. Descalço, desafiava o asfalto quente, saltitando entre monturos de lixo espalhados na via pública. Em uma das mãos, protegia uma sacola plástica transparente contendo cinco salsichas… E seguiu bairro adentro. Em seus rastros ficaram clamores por direitos negados… Pra nós restou o problema, a indignação e a impotência… Aquelas cinco salsichas, certamente adquiridas em troca de força de trabalho duro, serviram de almoço a uma família inteira… Na contramão, o fato rememora o fervor poético de D. Arcângelo Cérqua, primeiro Bispo de Parintins, quando vislumbrara Parintins reluzindo sob a bênção da Virgem do Carmo… Isso há uns cinquenta anos. Hoje, sem dúvidas, D. Arcângelo rogaria por intervenção, por ativismo social.

E a propósito das contradições, ficamos a matutar sobre os rumos do Solitário Curumim e de outros parintinensezinhos condenados ao arbítrio do Estado Dominante – desigualdades, exclusões e chiqueiros de detenção, caso aprovem a redução da maioridade penal. Por conseguinte, espera-se dos seguidores de Jesus de Nazaré assim como dos devotos da Virgem do Carmo um brado forte em favor de Justiça para os milhões de Solitários Curumins, em condições desumanas.

Flor do Carmelo – Referência a Nossa Sra. do Carmo

Ilhéus – Denominação aos parintinenses residentes na cidade de Parintins (Ilha Tupinambarana)

Solitário Curumim – Personagem real do fato em descrição.

Sob a bênção da Virgem do Carmo – Trecho do Hino de Parintins, composição de D. Arcângelo Cérqua, primeiro Bispo de Parintins.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])