Zé – Um Guerreiro da Saúde

Por Fátima Guedes Publicado em: 13/06/2018 às 17:33

Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar. Thiago de Mello

O Zé que ilustra nosso artigo não é santo nem tem parentesco com São Jorge. É o José da Saúde Guerreiro, 69 anos, 5^a série primária – o Zé Guerreiro da Casa das Ervas, em Parintins, no Amazonas. Por natureza ou predestinação nasceu Guerreiro e vive em perene desafio entre o direito à sobrevivência e os cuidados protetivos à Mãe Natureza. É um Zé a mais entre outros brasileiros teimoseando encontrar e cuidar no que resta das devastações da Amazônia – ervas de cura, sementes nativas, enfim, vestígios de curandagens ancestrais. Sem escapar do destino imposto às populações do campo, iniciara seu movimento histórico entre trancos e barrancos. Já na adolescência, o pequeno Guerreiro impõe-se às limitações de seu universo campesino, ignora vulnerabilidades infanto-juvenis e forja, no peito e na marra, brechas para se fazer existir; segundo suas concepções, “- me fazer homem”. Nessa busca por autoafirmação, aos 12 anos, assumira um relacionamento afetivo com uma mãe solteira, de 36 anos, seis filhos. Vale esclarecer que os dois enteados mais velhos superavam em idade o ‘padrasto’ adolescente.

O próprio Zé Guerreiro confirma a autenticidade dos relatos. Está cuíra pra falar…

Sou Zé Guerreiro. Nasci na cidade de Faro, estado do Pará. Vim pro Amazonas ainda gitinho. Direto mesmo, nesta cidade de Parintins, já moro há 37 anos. O que me trouxe pra cá, primeiro foi trabalhar em Pau-Rosa, segundo foi trabalhar em Seringa. Todos esses trabalhos foram bons, mas não tive, assim, tanto êxito. O que me deu êxito mesmo e está me mostrando resultado é o trabalho com as plantas medicinais, os remédios naturais, as plantas e ervas da Amazônia. A cidade de Parintins me acolheu, meus sete filhos são daqui, todos estudando… Dona Arlete Cardoso é minha esposa, parceira de vida, mãe dos meus filhos. Trabalha como artesã e erveira junto comigo. Só tenho a gradecer a Deus pela presença dela na minha vida e por todas as coisas boas que me acontecem.

Como disse, enfrentei a vida desde gitinho. Meu pai morreu quando eu tinha dois anos de idade. Daí, até os doze anos, minha mãe assumiu a cria. A gente morava numa comunidade do interior de Faro – Marco Velho. Ali, nós e as outras famílias plantava roça e tirava lenha pra vender pro navio a vapor, Barão de Cametá, que fazia linha de Belém a Faro. Não era bem uma venda; pra dizer bem, era uma troca. A gente trocava a farinha e a lenha com as mercadorias que o navio vendia. Era tipo um escambo. Nesse meio tempo, o Sêo Wagner Rossi, de Belém, viu meu jeito virado e me pediu da mamãe pra trabalhar no bar dele, na cidade de Faro, o Recanto da Saudade. Já viu como é: curumim do interior cheio de sonho, maluco pra ser homem na marra, fazia de tudo pra agradar o patrão. Nisso, ganhei a confiança dele e me deixou no bar como gerente, enquanto ele viajou pra Belém. Acho que, hoje, um homem adulto não fazia o que eu fiz, na época, pra provar pra ele que eu era um homem de fé. Outro fato desta minha vida que me marcou: meu primeiro relacionamento amoroso. Foi assim, eu morava com minha irmã em Faro. Essa moça que me envolvi trabalhava como doméstica pra ela. Era solteira com seis filhos. Quando eu chegava de noite, com fome, ela me dava comida, cuidava de mim e isso foi ajuntando nós. Aí, ficamos juntos. Eu e os filhos dela era uma espécie de irmãos. Gostavam de mim, me respeitavam e eu fazia de tudo pra não deixar faltar nada pra ela e pra eles. Tudo o que eu ganhava trazia pra casa. Ela me ensinou, naquele momento, o que eu precisava saber da vida como homem. Isso durou dois anos.

Um dos maiores desafios de Guerreiro é manter coerência em praticizar no seu cotidiano extrativista e os princípios cultivados via agroecologia – conservação e preservação. A princípio, dedicara-se à exploração de Pau-Rosa e Seringa, conforme explicitara. Experiência frustrante…

José da Saúde Guerreiro, Zé Guerreiro da Casa das Ervas, em Parintins (Foto: Floriano Lins)

Quem trabalhava com o Pau-Rosa não teve o cuidado que hoje nós tem. Na febre da extração do óleo, o governo brasileiro fornecia dinheiro para nós plantar e multiplicar, mas a turma desviou o recurso, não plantou e, assim, o governo não investiu mais. O resultado tá aí: não tem mais. Com a Seringa não foi muito diferente. Temos que lembrar uma coisa: assim como tem pessoas corretas, há outras que não se pode confiar. Quando eu vim pra Parintins, montei um trabalho no Rio Uaicurapá com cem homens, mas foi um fracasso. Misturavam água no látex e isso acabou com o trabalho e com os meus sonhos. Fiquei muito triste com aquela situação. Passado um ano e pouco, o governo do Amazonas recebeu notícia de que um outro país estava produzindo borracha e os compradores não queriam mais a nossa, justamente por causa da desonestidade daqueles que trabalhavam com ela. O que mais me doeu era que, pela safadeza de uns, todos pagaram e ficamos sem a única fonte de renda que nós tinha na época. Hoje, no Amazonas, tem produção de borracha, mas é lá pro Alto Solimões, acima de Manaus, em Lábrea, Novo Aripuanã… Pra lá, o povo ainda trabalha com Seringa. Aqui, no Baixo Amazonas, não tem mais nada. Aqui em Parintins, as novas gerações nem sabem o que é. A espécie acabou, morreu.

Uma vez Guerreiro, Guerreiro sempre. Quando as portas se lhe fecham e o vislumbre para alcançar o mar se opaciza, não se intimida: observa atento as necessidades vitais de seu tempo, decifra as estratégias e intenções lucrativas do mercado, e inventa jeitos mais simples para forjar picadas menos impactantes nos novos modos de produção impostos aos trabalhadores do campo…

Pois bem, a gente, caboco trabalhador, tem que se virar e descobrir outros meios pra sobreviver. Nossa Amazônia é rica. Basta saber usar seus benefícios sem acabar com ela. Nós que trabalhamos direto com a natureza, temos que ficar de olho aberto para não deixar que a lucratividade e as exigências do mercado destruam nossa fonte de sobrevivência. Meu trabalho é com as ervas medicinais que a floresta me dá; aquelas mais procuradas: Unha de Gato; Pedra Ume caá, Pau D’arco, Mirantã, Miraruíra, Chichuá. Pois bem, Miraruíra é um cipó que regulariza a glicose no sangue, a tal da diabete. Esse erva ajuda muito… A recomendação é tomar o chá ou usar ela triturada em um litro com água, conservando na geladeira. O Mirantã é uma erva afrodisíaca. Através desse produto, fui entrevistado pelo Globo Repórter, nas cidades de Nhamundá/AM e Faro onde tenho um projeto que tem o nome de Globo Repórter por conta da visita deles no nosso trabalho. Quero dizer que o Globo Repórter mostrou pro Brasil, pro mundo, o meu trabalho como erveiro, aqui, na Amazônia, e isso me fez subir um degrauzinho na vida. Sou grato por isso. O Pau D’arco Roxo é um produto que ajuda no tratamento do câncer. Não quero dizer que o Pau D’arco vai resolver todos os problemas de câncer, não. Tudo vai depender do estágio da doença, da situação física do doente, e de sua fé no Poder Superior que vive em nós. O melhor é usar pra prevenir e sempre no início da doença, quando o corpo ainda não foi dominado pelas células malignas. Aqui, no município de Parintins, ainda temos um pouco de Pau D’arco roxo… A exploração da espécie tá grande e as serrarias, aos poucos, também estão acabando com a espécie. A Pedra-Hume-Caá é muito conhecida em São Paulo, Rio de Janeiro por suas propriedades medicinais. Consumidores desses estados usam ela para asseio vaginal, como diurético, e também tem mostrado bons resultados no tratamento de diabete. A Unha de Gato é muito vendida tanto aqui no Brasil como para outros países. Os laboratórios de fora tem muitos estudos sobre a unha de gato. Não é à toa que eles compram muito. Uma outra espécie também muito procurada até fora do Amazonas é o Chichuá. É usada como tônico, afrodisíaco junto com o Mirantã, e também na fabricação de vinho.

É por isso que eu digo, é importante nosso sistema de saúde se interessar em estudar nossas ervas, nossas plantas e levar esse conhecimento pra toda a população… Além de ser da nossa região, geraria economia interna e as pessoas economizariam seu dinheirinho em compra de remédios. Às vezes, muitos remédios comprados por aí, adoecem ainda mais o corpo. O remédio natural tem tudo pra curar; depende muito do jeito como ele é usado.

A ausência de formação ou referenciais acadêmicos (exigência padrão para ascensões no mundo capitalista) não intimida Zé Guerreiro. Sua prática nativa de cuidar do Ser antes do Ter é a base do equilíbrio de sua relação com o mercado consumidor…

Algumas empresas de São Paulo, Rio de Janeiro, São Bernardo do Campo compram nossas ervas. Essas empresas compram a matéria prima, geralmente de seis em seis meses. A gente entrega diretamente e a empresa paga as despesas. São cinco firmas que mantêm mercado com a gente. Assim que terminam os estoques, encomendam novamente; não uma quantidade grande por causa do valor do transporte. O produto em si não é caro, o transporte sim. Mesmo com o transporte caro, a gente vende em média 1.000, 1.500, 600, 500, 200, 100 quilos, conforme a qualidade e a espécie do produto, e também a demanda deles.

A garantia de modos sustentáveis de vida (memória ameaçada pela ética de mercado entre as populações nativas da Amazônia) é o trabalho comunitário. Sozinhos ou isolados a sobrevivência do caboco é bem mais difícil. O enfrentamento ao individualismo, à competitividade exige convergência de forças, “camaradagem entre os cabocos” …

Zé Guerreiro como a colunista Fátima Guedes (Foto: Floriano Lins)

Pra fazer esse trabalho são aproximadamente quarenta famílias. Ninguém é empregado de ninguém. Cada família trabalha voluntariamente. Uma família somando com a outra. Essa camaradagem entre os cabocos da Amazônia é que faz a gente sobreviver. Aqui, por essas bandas, o capitalismo é meio devagar. Tem muita fartura, e nós não temos a cultura de estocar as coisas. A gente trabalha assim, por conta própria, nos nossos terrenos: planta, refloresta, colhe e vende. Essas famílias estão sobrevivendo assim. Como eu tenho um registro no SEBRAE, compro o produto dessas famílias e repasso para as empresas de fora. Tenho registro do IBAMA, do Meio Ambiente… Até onde chega o meu trabalho? Até onde o IBAMA me autoriza. Até onde chega o meu direito? Até onde o meio ambiente me autoriza.

É comércio, mana! Essa venda acontece de seis em seis meses; tirando as despesas, fica pra mim, uma média de 30% do total: R$ 2.500,00 a R$ 3.000,00. É muito pouco. O governo é que mata nós com os impostos. Pra mandar essa mercadoria, pago 18% pelo valor da nota. Eles não dispensam. A gente tem que ter todo esse dinheiro pra pagar adiantado pro governo, senão, chega a fiscalização e toma de nós sem piedade. Muito difícil. Por isso eu torno a dizer: sem a camaradagem entre nós cabocos da Amazônia, estamos ferrados.

A Casa das Ervas, na cidade de Parintins/AM, é o ponto comercial do Guerreiro. Quando instigado a falar sobre esse empreendimento, não esconde o entusiasmo e uma certa “pavulage”…

Mana, tenho uma lojinha que se chama Casa das Ervas; fica na rua Sete de Setembro, nº 1904, no bairro de Palmares. Às vezes, me dá pavulage falar dela. Lá, tem muitas espécies de produtos para vários tratamentos de saúde. Muitas pessoas nos procuram. Lá em Manaus, umas treze lojinhas compram os produtos da Casa das Ervas, de Parintins. Quero lembrar aqui duas pessoas muito importantes pra nós – Moacir Biondo e Juan Revilla. Esses dois parceiros têm ajudado muito nesse trabalho da saúde natural. A lojinha do Zé Guerreiro fornece produtos para municípios do Amazonas e Pará. Temos xaropes, comprimidos, pomadas, produtos embalados tudo bem direitinho… Os vendedores ganham a parte deles e a Casa das Ervas ganha a sua. É o justo, né? Pessoas me perguntam se a Casa das Ervas tem algum químico. Não. Nossos produtos são preparados através das experiências e saberes de nossos ancestrais. Eles não tinham químicos. A química deles era a observação da natureza e a iluminação dos Espíritos da Cura. Era assim que eles se tratavam e viviam bem. Só consome quem acredita. Até hoje, ninguém voltou lá em casa pra reclamar do Zé Guerreiro ou dizer que o produto fez mal ou não curou. Qual o meu papel nisso tudo? Preciso de autorização. Tanto faz ter químico ou não, precisa de autorização pra despachar o produto. A minha responsabilidade vai até onde o órgão me autorizou.

A Saúde do Guerreiro se expande para fora do Brasil. Com altivez e determinação mostra pro mundo lá fora que, no interior da Amazônia, ainda existem cabocos que jogam por terra o estigma de que são ‘preguiçosos, lentos’ …

Mana, não dá pra nós ficar esperando as coisas acontecer por aqui. Esse negócio de dizer que caboco do Amazonas é preguiçoso, lento, não combina comigo. Nossos produtos já são conhecidos fora do Brasil. Três firmas compram com mais frequência. A exigência é grande: temos que mandar amostras para analisarem. Como os nossos produtos já deram resultado lá, eles voltam a comprar. No final do ano passado, 2017, participei de uma reunião com um pessoal que veio da França e Japão. Eles visitaram o nosso projeto, na Comunidade Santo Expedito, rio Uaicurapá, aqui, no município de Parintins. Esse nosso projeto é uma verdadeira farmácia na natureza, no centro da Amazônia; é uma farmácia viva. Agora, vai voltar lá o pessoal do SEBRAE para fazer um levantamento das famílias envolvidas no projeto pra gente poder ter direito a crédito. Esse levantamento é importante pra nós. Só assim, o governo pode acreditar na seriedade do nosso trabalho. Falando em SEBRAE, o grupo daqui do Amazonas me levou no Rio de Janeiro, finalzinho de maio, 24 a 26, para mostrar no Green Rios 2018, todo este trabalho com as ervas. Foi, assim, Mana, um negócio discunforme bom de valorização do nosso trabalho.

A comercialização de espécies medicinais na Amazônia nem sempre atendem às exigências da Legislação Ambiental no que se refere à preservação e conservação dos recursos naturais. Zé Guerreiro traz um pouco da relação dos extratores de ervas com a terra, com a floresta, enfim, com a biodiversidade…

Nós que vivemos praticamente daquilo que a floresta dá, não podemos deixar que aconteça o que aconteceu com o pau- rosa. A gente comercializa o Pau d’arco, a Miraruía, o Mirantã, a Unha-de-gato, o Chichuá, sem destruir a floresta. O que a gente tira, a gente replanta. A prova está lá. Os órgãos fiscalizadores acompanham e orientam nosso trabalho. Se tivesse alguma coisa errada já tinham embargado. Já viu, né? Trabalhador pequeno como nós vive na mira do governo e dos órgãos fiscalizadores. Qualquer falhazinha, só dá pro nosso. Vai chegar um ponto em que o governo vai querer ver, e ele vai encontrar a floresta conservada. Temos esse cuidado, não tanto pela fiscalização, mas pela consciência que nós temos. Se não reflorestarmos aquilo que a gente tira, amanhã vai acabar tudo. Aí, o que vai sobrar pra nós sobreviver? Além das espécies da floresta, a gente já começou um trabalho com as outras plantas medicinais cultivadas nos quintais. Até aqui, já temos um plantio grande de capim cheiroso e já estamos colhendo. Manaus consome bem.

Entre uma conversa e outra, Guerreiro abordou uma nova realidade que, aos poucos, está distanciando o caboco de sua cultura, do trabalho com a terra, da relação com a natureza. Sêo Zé associa a questão à dependência do caboco ao assistencialismo…

Hoje, esses novos companheiros do interior não querem mais trabalhar com a terra. Pra falar a verdade, quem faz a maior parte do trabalho com a terra são as mulheres. Até mesmo pagando para roçar um campo, plantar um roçado, tirar uma madeira é uma grande dificuldade aparecer um homem. A maioria dos companheiros do interior, além do vício da cachaça, se viciaram também em depender dos políticos… Quem mais trabalha no interior é a mulher: cuida da casa, dos filhos, da roça, pesca e ainda aguenta eles… (franze a testa demonstrando indignação). O bolsa família não foi bem entendido pela maioria dos companheiros: os gestores não explicam direito pro povo a finalidade do bolsa família. O caboco acha que não precisa mais trabalhar. Aí, pega o dinheiro e fica acomodado, dorme mais do que ressacado. Não quer mais ir pra roça… E quando a mulher vê o mundo desabando sobre a família, ela parte pra luta e acaba assumindo tudo sozinha. O bolsa família, no meu entender, é apenas uma ajuda pras famílias pobres se desenvolverem melhor. É uma ajudazinha muito importante, mas não é tudo. Eu, por exemplo, como aposentado, também tenho que me virar de outro jeito pra ajudar no meu aposento. Pra falar a verdade, não tenho dúvidas, daqui a mais uns anos, do jeito que a coisa vai, o homem vai ser comandado pela mulher, porque ele não quer trabalhar. Uma outra coisa que eu quero dizer: a mulher cuida melhor do meio ambiente. Ela vê ali o futuro da família dela, dos filhos… A mulher tem essa preocupação porque ela sabe que é da terra que vem o alimento e a saúde da sua família.

Zé Guerreiro intervém rememorando experiências de seus antepassados – avós, bisavós, tataravós, curandeiros… Lembra do jeito como essas populações cuidavam da natureza e se relacionavam com os saberes de saúde. Faz referências também à cidade de Faro, no Pará, conhecida, na época – “cidade de feiticeiros” …

Zé Guerreiro da Casa das Ervas, em Parintins (Foto: Floriano Lins)

Como já disse, nasci em Faro, no Pará, e me orgulho disso. Era tradição na minha cidade as práticas dos curandeiros, das parteiras, dos puxadores, dos benzedores, dos sacacas… Hoje, ainda encontramos por lá pessoas que trabalham em cura, mas já são poucas. E eu pergunto: pra onde foram esses curadores? Os saberes desses curadores estão se acabando… Os nossos políticos estão perdidos, esqueceram totalmente nossas origens culturais; só pensam em se dar bem… Ninguém se preocupa em fortalecer essa cultura que é nossa. Além de ser praticamente de graça, os tratamentos naturais curavam de verdade. O que vemos hoje é muita drogaria em vez de farmácia. No meu entender, drogaria vende droga e a maioria do povo que consome essas drogas está cada vez mais doente. A gente tem que resgatar o saber dos nossos pajés, dos curandeiros, dos sacacas… As parteiras estão sumindo. Minha cidade, Faro, era famosa pelas histórias que contavam de seus curandeiros. Ali não havia médicos. Diziam até que era cidade de feiticeiro. Podia até ser, mas o povo dali, naquela época, tinha saúde. A gente chegava com a dona Maria – curandeira das boa – dizia o que estava sentindo… Primeiro ela benzia pra tirar da alma e do corpo as zinguizibas, as tenúias que geram doença; depois, ela ensinava o preparado, o remédio, o chá e a gente ficava curado. No Uaicurapá, conheço dois Sacacas, têm mais de setenta anos. São os últimos de lá. A maioria dos cabocos da região nem sabe o que é Sacaca, por aí se tira… Esses saberes passavam de geração em geração, mas, infelizmente estão caindo no esquecimento. O mercado das doenças é quem manda hoje.

Lembro de um fato que aconteceu com meu sobrinho, lá em Faro, 1978. O rapaz adoeceu muito, ficou discunforme malacafento, e o pai dele consultou ele com um camarada que manjava das curas e fazia remédios naturais de folhas e raízes. Meu sobrinho fez o tratamento com ele e hoje, taí, Manoel Brasil, vivíssimo e agradece muito àquele curador e às plantas que curaram ele.

Considerando o andar de nossa carroça, a ausência de remadores determinados para impulsionar a canoa contra a correnteza, é provável que estejamos registrando um dos últimos gritos de um Guerreiro… Daí, a importância desse diálogo. E, antes que as portas se fechem de vez ou o banzeiro afunde a frágil embarcação, Sêo Zé tem um recado…

Mana, não sei se o que eu falei vai servir pra alguma coisa, mas era o que eu tinha pra dizer. Foi uma oportunidade de mostrar o que a maioria já não vê, cutucar as pessoas que vão ler essa prosa e quem sabe mexer nessa história da saúde dos nossos antepassados. Eu quero dizer ainda: sem cuidado com a vida este mundo está pedido. Que as pessoas zelem, tenham cuidado com a natureza, com o solo, com os rios, com os bichos, com o ar… É muito importante também amar as pessoas. Digo ainda, vamos investir numa educação que valorize todos os saberes, todos os jeitos de curar; uma educação que reconheça o valor das ervas como remédio. Uma educação voltada para a natureza porque a natureza é a Grande Mãe de todos nós. Se ela se acabar ninguém vai contar história. Não pretendo ser o último a dizer isso.

“Faz escuro, mas cantamos…”

As cuíras trazidas por Zé Guerreiro em suas memórias culturais dialogam com o lema do 13⁰ Congresso Internacional da Rede Unida, realizado na cidade de Manaus/AM, entre 31 de maio a 02 de junho – Faz escuro, mas cantamos…

É verdade, os dias se sucedem frios, nebulosos, carentes de vida… A Amazônia caboca parece entregar os pontos; parece sucumbir com a morte das memórias ancestrais, dos sonhos…

À densa escuridão, elevam-se canções de esperança no clamor original de Sêo Zé – Guerreiro ladino. Do Porto de Lenha, a Rede Unida se faz vida e celebra a Utopia com outros Zés no Puxirum Paulo Freire. Teçumes do novo dia.

Faz escuro nestas paragens… Tal galos transgressores, anunciamos a manhã ornada na diversidade de cores, jeitos, falares e fazeres humanos…

A História é tempo de possibilidades e teimosias.

Glossário

Capim Cheiroso/Capim Santo – Cymbopogon citratus.

Cuíra – Ansiedade, inquietação.

Discunforme Malacafento – Muito doente.

Espíritos da Cura – Entidades espirituais invocadas nos rituais de cura.

Gitinho – Pequenininho.

Chichuá (Xiuxuá – Maytenus guaianensis

Juan Revilla – Natural do Peru, Pesquisador do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Autor da Obra – Cultivando a Saúde em Hortas Caseiras e Medicinais – Edição SEBRAE/AM, 2001.

Mirantã/ Marapuama – Ptychopetalum olacoides.

Miraruíra – Salacia impressifolia

Moacir Biondo – Natural de Presidente Prudente, SP. Técnico Especialista, Pesquisador de Plantas e Ervas da Amazônia.

Pau d’arco/Ipê Roxo – Handroanthus impetiginosus.

Pau Rosa – Aniba roseadora.

Pavulage – Gabolice.

Pedra Ume Caá – Myrcia multiflora.

Picadas – Ramais estreitos no meio da floresta.

Porto de Lenha – Denominação à cidade de Manaus em referência à mercantilização de lenha para navios movidos a vapor na região, no século passado.

Puxadores – Massagistas.

Puxirum Paulo Freire – Espaço organizado no 13⁰Congresso Internacional da Rede Unida (Manaus/AM) onde se desenvolveram oficinas e Rodas de Conversa sob educação popular e saúde coletiva. Puxirum é um termo caboco que designa cooperação, partilha, solidariedade entre os nativos da região, para a realização de trabalhos no campo, na roça…

Seringa – Hevea brasiliensis

Tenúias – Tristeza profunda; depressão.

Unha de gato – Uncaria tomentosa

Zinguizibas – Estado de adoecimento.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, e Militante da Marcha Mundial das Mulheres. Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia e Algemas Silenciadas.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Fátima Guedes

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

DOE PARA A AMAZÔNIA REAL

Sua contribuição fortalecerá o jornalismo investigativo, feito com independência e liberdade editorial, que visibiliza as populações silenciadas.

DOAR AGORA

2 Comentários

Jurandir Rosas de Oliveira disse:

24/06/2020 às 19:20

Bela reportagem conheço os dois Moacir e Juan grandes pesquisadores e conhecedores da nossa fauna e flora um abraço a todos eles, sou Jurandir Rosas de Oliveira moro em Manaus estou fazendo uso do Miraruira

Responder
Elvira Eliza França disse:

28/06/2018 às 19:19

Parabéns por essa história de vida de alguém que zela pela preservação da cultura tradicional e pela promoção da saúde por meios naturais com recursos da floresta

Responder