Comunidades quilombolas do Rio Andirá aguardam título de terra no Amazonas

Por Amazônia Real Publicado em: 12/10/2017 às 18:30

A origem do quilombo está na fuga da escravidão de Benedito Rodrigues da Costa e seu três irmãos para a Amazônia, em 1878 (Foto: Alex Xamango/Acervo)

Vandré Fonseca, especial para Amazônia Real

Manaus (AM) – Os descendentes de Benedito Rodrigues da Costa, angolano, escravo fugido que aportou no Amazonas no Século 19, estão prestes a ter o território de 27 mil hectares regularizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). As terras que abrigam cinco comunidades ficam ao longo do rio Andirá, em Barreirinha (a 331 quilômetros de Manaus), na região do baixo rio Amazonas.

As cinco comunidades remanescentes de quilombolas foram reconhecidas pela Fundação Palmares, órgão federal ligado ao Ministério da Cultura, pela Portaria Nº 176 publicada no Diário Oficial da União no dia 25 de outubro de 2013. São elas: Boa, Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Teresa do Matupiri e Trindade; onde vivem 558 famílias, um total de 2.790 pessoas.

No dia 21 de agosto deste ano, o Incra abriu o prazo de 90 dias para que posseiros, que ainda ocupam as terras das comunidades quilombolas, contestem o relatório técnico que definiu os limites dos territórios. Assim que o processo for concluído, as comunidades quilombolas do rio Andirá serão as primeiras a ter o território tradicional titulado no estado do Amazonas.

Existem outras três comunidades quilombolas no Amazonas, Tambor (no município de Novo Airão), Barranco (área urbana de Manaus) e Sagrado Coração de Jesus do Lago Serpa (município de Itacoatiara). Veja o mapa abaixo:

Tambor foi a primeira comunidade reconhecida como quilombola no Amazonas, em 2006 pela Fundação Palmares. Por estar sobreposta ao Parque Nacional do Jaú, está em litígio com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), ligado ao Ministério do Meio Ambiente.

“A titulação é importante para a defesa e o resgate da autonomia deles, tanto do ponto de vista do território, para garantir acesso às áreas de manejo, quanto para estabelecer um critério político da territorialidade como elemento da construção étnica quilombola”, defende a antropóloga Maria Magela Mafra de Andrade, autora de uma tese de doutorado sobre os quilombolas de Barreirinha.

Na área das comunidades quilombolas do rio Andirá foram identificados pelo menos onze locais de conflito, entre posseiros e a população tradicional. Dezenas de posseiros começaram a chegar na década de 1980. Eles ocuparam as margens e ilhas do Andirá principalmente para a criação de gado.

Mas há informações também de retirada de madeira e pesca ilegal. As comunidades denunciam ainda a extração ilegal de areia, seixo e argila. Quilombolas afirmam ainda que posseiros impedem o acesso área de manejo, onde são encontrados produtos como a castanha.

“Antes disso, o povo vivia de plantar café, guaraná, roças, de criar galinha”, conta a líder quilombola Maria Amélia dos Santos Castro, 57 anos, mais conhecida como Dona Lourdes. “Mas a área foi invadida por fazendeiros, e o povo passou a viver com dificuldades. Hoje, as comunidades estão cercadas por fazenda, os bois destroem as roças”, lamenta.

Nascida em 13 de maio, aniversário da Lei Áurea, Dona Lourdes acredita que não foi um acaso. “É a dor e o destino que Deus me deu para lutar pelo meu povo”, destaca.

Bisneta de Benedito da Costa, pertence à quarta geração da família a viver no Andirá. Ela carrega com seus familiares a herança e a memória os descendentes do escravo que se apaixonou por Gerônima, uma índia da etnia Sateré-Mawé e cumpriu a promessa que fez antes de partir: voltar quando fosse homem livre.

A Origem do quilombo do Andirá

Família da comunidade de Santa Tereza do Matupiri, no baixo Amazonas. (Foto: Alex Xamango/Acervo/2015)

O negro Benedito Rodrigues da Costa se atirou nas águas quando era levado como escravo, junto com três irmãos, Mari, João e Francisco. A história está na memória dos quilombolas, que investigaram as próprias origens e acreditam que fuga tenha ocorrido em 1878. Ela é apresentada na tese de doutorado da antropóloga Maria Magela Mafra de Andrade.

Não se sabe onde exatamente ocorreu o mergulho para a liberdade, provavelmente em Óbidos, no Pará. Mas se conta que Benedito e os irmãos se jogaram ao rio e conseguiram chegar até onde hoje é a comunidade Vila Amazônia, no município de Parintins (também no baixo rio Amazonas) e que depois viria a ser ocupada por imigrantes japoneses. Por lá, a queda da produção e comércio da borracha dava espaço para o crescimento da agricultura, com destaque para o algodão, fibras naturais e cultivo da juta.

Os irmãos trabalhavam na produção de algodão. Mas de frente para o rio Amazonas, o local era muito exposto para negros que queriam se esconder. Em uma pequena embarcação entraram em um furo (canal que une dois rios) e saíram no rio Andirá, afluente do rio Amazonas, em busca de um lugar para viver. Eles queriam vida nova, longe da escravidão ou dos trabalhos forçados. “Não queriam (ser empregados)”, afirma Maria Magela. “Eles já tinham um sentido de liberdade, eu penso, vinculado a certa autonomia”.

Em um barracão de festas, quando festejos religiosos se misturavam à diversão secular, Benedito encontrou Gerônima, filha da Júlia Saterê. Dizem os descendentes que os dois se apaixonaram. E não há motivos para duvidar.

Benedito ainda era um escravo fugido. Partiu dali mas deixou a promessa: voltaria como homem livre e então poderia viver com Gerônima.

Graças à Lei Áurea ou talvez tivesse sido um pouco antes, 10 de julho de 1884, quando a Província do Amazonas libertou os escravos, finalmente ele pode voltar.

Do casamento entre o negro e a índia, vieram cinco filhos. E ele teve ainda um filho fora do casamento. “Ele teve também uma relação com uma não indígena, que era branca e judia”, esclarece Maria Magela. “No mapa genealógico você tem Rodrigues e Castro. O Castro se incorpora a partir dessa relação que ele teve fora do casamento, que foi uma menina, a Cristina”, diz a antropóloga.

Benedito tinha marcas de açoites nas costas e, segundo contam descendentes, as iniciais de um provável senhor marcadas na pele. Os irmãos dele deixaram o Andirá e não deram mais notícias. Dizem não ter se adaptado ao clima retornado ao Pará ou Maranhão.

Estabelecidos no rio Andirá, Benedito e a família faziam roças, colhiam castanhas, pescavam. Guardavam entre eles informações sobre as origens, sem que pessoas de fora soubessem da herança que carregavam.

Herança mantida em segredo

No dia da Consciência Negra, quilombolas das comunidade se reuniram em Santa Tereza do Matupiri (Foto Alex Xamango/2015)

Comunidades de remanescentes de quilombo (Foto: Alex Xamango/Acervo/2015)

A própria antropóloga Maria Magela, nascida e criada em Barreirinha, afirma só ter descoberto que os moradores do Andirá eram descendentes de um ex-escravo em 2012. E ela já havia estudado essas comunidades alguns anos antes, mas sempre os considerou genericamente como “ribeirinhos”.

“Conhecia todos e nunca tinha ouvido falar de quilombo”, conta. “O que nós percebíamos era a cor. Havia algo diferente do indígena, diferente da gente”, recorda a antropóloga. Só em 2010, ela veio a descobrir que existiam quilombolas ali, e mais do que isso, que eles buscavam reconhecimento.

Ela conta que eles chegavam à cidade sempre em comitiva, o que chamava a atenção. E eram tratados como “os pretos do Andirá, pirangas ou guaribas”, como a própria dona Lourdes conta. Os descendentes de Benedito não conheciam o valor da própria história.

Eram bastante reservados não só quanto à origem, mas também aos costumes. Mantiveram vivas tradições, sem chamar a atenção. Eles carregam na cultura elementos da religiosidade africana, como rituais e ervas de cura. Há também mistérios que não devem ser revelados, como o ritual da sexta-feira santa.

Segundo a descrição de Maria Magela, um grupo se reúne à meia-noite no cemitério, que é colado à igreja, e sai cantando um mantra. “Eles fazem oferendas aos mortos, vão as casas dos filhos dos antigos, batendo sino, depois vão embora. “Isso, alguém contou para mim, porque não é dado o direito a ninguém ver, ninguém pode abrir a janela”, conta a antropóloga.

A herança cultural está também nas brincadeiras, como a Onça te Pega e do London, uma dança em grupo. O ritmo é entoado pelo gambá, um tambor também tradicional coberto com couro de carne de caça.

Em busca do território

Comunidade de Santa Tereza do Matupiri, a maior comunidade quilombola do Amazonas (Foto Alex Xamango/Acervo/2015)

A identidade quilombola passou a ser reconhecida pelas próprias comunidades com a possibilidade de garantirem, de forma definitiva, a propriedade da terra onde vivem. Essa garantia foi dada pela ratificação por parte do Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004.

“Assinado pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com este Decreto, o critério fundamental para identificar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção é a ‘consciência de sua identidade indígena ou tribal’”, conforme explica Maria Magela em sua tese de doutorado.

Em 2009, fundaram a Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha (FOQMB). Em 2013, realizam a assembleia em que se reconheceram remanescentes de um quilombo. A ata foi assinada por 387 pessoas é enviada à Fundação Cultural Palmares, responsável pelo reconhecimento oficial dos quilombolas.

Não foi um caminho fácil. Dona Lourdes, que durante três anos presidiu a FOQMB, chegou a ser avisada pelo Incra para nunca aparecer sozinha na cidade. Mas ela não se acovardou. Quando a primeira presidente da federação teve medo de assinar o documento para reconhecer a identidade quilombola, dona Lourdes assumiu a responsabilidade.

Se antes, não assumiam a própria identidade, mantendo em segredo até mesmo crenças e costumes, agora os descendentes do angolano Bernardino Rodrigues da Costa tinham razões para se afirmarem quilombolas. “Tenho orgulho de ser negra e agradeço a Deus porque o povo escolheu a mim para representa-lo”, ressalta Dona Lourdes.

Mas a luta não poderia parar aí. Ainda era preciso garantir o direito à terra. Após muita insistência da FOQMB, o Incra forma uma comissão mista, para fazer um relatório técnico para demarcar e delimitar a área de vida e uso dos quilombolas.

Um levantamento indicou que boa parte desse território reivindicado pelos quilombolas era formado por ilhas, que legalmente pertencem ao governo federal.

Embora tenham sido excluídas da demarcação, a expectativa é que as áreas do governo federal possam ser utilizadas pela população tradicional. E o mais importante, para eles, é que os posseiros terão de sair.

Encontro com os quilombolas na comunidade de Santa Tereza do Matupiri (Foto: Alex Xamango/Acervo/2015)

Barreirinha, Amazonas, reuniu com quilombolas do Baixo Amazonas (Foto: Alex Xamango/Acervo/2015)

Barco carrega argila retirada ilegalmente das terras quilombolas (Foto: Amazônia Real)

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2 Comentários

Isabella Faria disse:

17/09/2023 às 07:48

Estou fazendo um trabalho de história sobre a comunidade Trindade, a sua matéria é muito boa, me ajudou demais, obrigada por contar tão bem a história deste povo.

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Philippe Waldhoff disse:

19/10/2020 às 21:21

Gostei da matéria sobre os quilombolas do rio Andirá. Uma conquista legítima desse povo dos quilombos.

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