Fátima Guedes

Fêmeas Memórias – Coração de Leoa

A mãe leoa nasce quando seu filhote vem ao mundo. E, se por um lado, ela se sente frágil, por outro, percebe a força que surge lá dentro – e que ela não sabe dizer de onde vem. Nivea Salgado […]

Foto ilustração de Floriano Lins

Por Fátima Guedes Publicado em: 19/12/2017 às 23:46

A mãe leoa nasce quando seu filhote vem ao mundo. E, se por um lado, ela se sente frágil, por outro, percebe a força que surge lá dentro – e que ela não sabe dizer de onde vem.

Nivea Salgado – Odontóloga Amazonense

Os incessantes desafios cotidianos concretamente definem o perfil da Leoa que nos permite enriquecer o diálogo feminista, neste IX capítulo, de Fêmeas Memórias.

Leoas pertencem ao gênero e espécie Panthera leo. De natureza altiva, vigilante e protetora foram adotadas como símbolo de deusas Cretenses – Frígia, Síria, Mecenas, Trácia, Lícia e Esparta. Também na Índia e Tibete simbolizam a Terra e a Maternidade. Essas fêmeas singulares sobrevivem sem parceiros. Caçam, sustentam-se, defendem as crias, formam grupos e dividem tarefas. Além do cuidados com os filhotes, caçam e ainda trazem a janta do dia para toda a família… O cuidado com os filhotes é coletivizado. Apoiam-se no momento do parto e amamentam filhotes de outras fêmeas, quando em caso de morte da mãe ou se as companheiras estão em busca de caça para o sustento da família. Há situações em que as leoas são banidas da manada; em tais circunstâncias, unem-se a outras parceiras também banidas e criam a própria manada. Os machos interessam-se em garantir territórios e ter fêmeas para servi-los… Nesse sentido, matam os filhotes para as fêmeas entrarem o mais rápido no cio… (Wikipédia)

A Leoa em destaque, sem dúvida, reúne em sua fêmea natureza características similares a da espécie Panthera leo: altiva no enfrentamento às adversidades, vigilante a possíveis ameaças pessoal e familiar e, por fim, protetora da vida, de valores e princípios universalmente humanos…

Por tudo o que enfrentei pra me defender e proteger minhas crias, considero-me uma mulher de muita força interior – uma Leoa. A vida me ensinou observar atentamente quem se aproxima de mim e de minhas filhas. Coragem, autonomia e liberdade no uso das palavras são minhas garras na defesa e proteção a minhas filhas contra predadores de plantão. Aprendi também priorizar a mim, minhas filhas e meu território – minha casa.

Primeiros desafios

Quando a herança da opressão de séculos promovida pela sociedade capitalista, escravista, machista, patriarcal dirige-se a mulheres, alteram-se apenas personagens, classe social e enredos existenciais; suas vozes, entrecruzam-se em tons diferenciados de dor e incessantes desafios. E nunca, ou raramente, são ouvidas. Tudo começa no ensaio dos primeiros engatinhos… Em intervenções contra a feminização da pobreza, Luci Choinacki, Militante Feminista/SC, traz importante contribuição: “A pobreza assume várias formas e existe em todos os lugares. É irmã gêmea da desigualdade. Arranca das mulheres a autoestima e qualquer possibilidade de libertação”. Leoa testemunha em si mesma a denúncia de Luci…

Nasci e vivi até os 15 anos em Barreirinha, no Amazonas. Não tenho boas lembranças da minha infância… Muitas dificuldades… Minha mãe foi embora quando eu tinha 1 ano de idade e fui criada por meu pai, vivendo na casa de estranhos. Não conheço a família de minha mãe. Meu pai bebia muito, acabou com o que a gente tinha e passamos a morar na casa de pessoas que nos abrigavam. Moramos em quase todas as casas; quando meu pai percebia que já estávamos incomodando, saíamos dali e pedíamos agasalho na casa de outros. Assim, a gente vivia. Ao todo, somos quatro: uma irmã a gente não conhece, porque meu pai deu quando tinha meses de vida. Meu pai trabalhava o dia todo, nós na casa dessas pessoas e minha irmã mais velha cuidava de mim, eu era a menor. A madrinha da minha irmã do meio viu a situação e pegou ela pra criar. Ficou só já eu com a irmã mais velha. Ela me protegia, me aconselhava… Quando as pessoas começavam a nos maltratar a gente se escondia o dia todo até meu pai chegar. Na maioria das vezes, ele chegava bêbado… Mesmo assim, a gente se sentia protegida, mas não contava nada. Foi assim até meus 12 anos. De lá, meu pai resolveu fazer uma casa pra nós, lá mesmo na comunidade. Foi nossa primeira casa; toda de palha e, antes mesmo da cobertura pronta, minha irmã mais velha nos levou pra lá. Passamos a noite: eu dormindo e ela acordada porque tinha muito carapanã… O tempo todo ela me protegendo. Essa irmã mais velha é minha referência de mãe: me protegeu, me fez muito medo das coisas ruins e tudo isso serviu muito pra eu me defender. Já adolescente, sofri tentativa de abuso sexual de um primo adulto. Quase não dormia, assustada. Aí, começava gritar, meu pai acordava ainda bêbado e o primo me soltava. Esse primo tentou várias vezes abusar de mim, mas sempre eu chamava meu pai que devido também a bebida e o cansaço do dia, dormia perdidamente. Esse primo me causa medo até hoje, quando vejo ele, parece que vem toda aquela história. Pra completar, ele mora bem perto da minha casa. Evito o máximo encontrar com ele, apesar de se dar com meu marido. Sempre nos convida pra ir na casa dele e me recuso, mas não digo o porquê – é assunto muito desagradável que a gente nunca esquece. Este tipo de violência nunca superei, é uma marca que ficou na minha vida. Minha irmã mais velha também enfrentou esses problemas, mas a gente era muito unida: ela me protegia, eu protegia ela.

Outro fato que marcou minha vida: um dia, apareceu uma mulher lá na comunidade se oferecendo pra cuidar dela, em Boa Vista do Ramos. Ela foi. Parece que o meu chão caiu. Ela queria me levar junto; eu disse não. A mulher convenceu meu pai, prometeu ajudar ele e dar uma boa vida pra minha irmã… Meu pai entregou e ela se foi. Senti uma coisa muito ruim naquela mulher… Passei o dia chorando. Nessa mesma noite, convidei um primo meu, pegamos a canoa e, escondidos, fomos atrás dela. Lá, pedimos ajuda de um pastor e da esposa dele. Era meia noite; a comunidade toda no escuro e nós com muito medo. O pastor mobilizou o pessoal da igreja e fomos ao encontro do barco que levava minha irmã. A mulher não deixou minha irmã sair do barco. Nisso, minha irmã já estava vestida com uma roupa muito estranha; a mulher já tinha mudado ela… Nisso, meu pai deu falta de mim e foi atrás. A mulher já tinha levado minha irmã para um hotel de Parintins e falava no telefone com um homem, acertando tudo: “- A moça é bonita”. Minha irmã se apavorou. Descobriu que estava trancada no hotel. O pessoal do apoio ao papai descobriu o paradeiro da minha irmã e trouxe ela de volta; a mulher fez o maior escândalo. Depois disso, eu e minha irmã nos unimos mais, até mesmo pra nos proteger. Fomos ficando moças e as pessoas já olhavam a gente com malícia… E nós sem proteção, sem mãe… Meu pai não era de conversar… Não sabia ler, não sabia se expressar… Às vezes, tentava… Era difícil pra ele… A única coisa que sempre dizia pra gente: “- Olha, vocês têm que lutar para ser pessoas boas com as pessoas que moram aqui, que olham pra vocês e dizem que vocês não vão se engravidar; não vão se prostituir… Vocês é pra fazer a diferença…”. Essas palavras foram nos fortalecendo e a gente lutou muito por isso. Comecei estudar na adolescência… Na comunidade, só tinha até a quarta série e o papai matriculava nós, todo ano, na mesma série pra gente continuar estudando. Nisso, repeti cinco anos a quarta série. A oitava série fiz numa comunidade próxima. Já era moça feita. O curso era a noite e voltámos andando, passando por duas comunidades atravessando o rio. Chegávamos em casa por volta de uma hora da madrugada e, dependendo do tempo, às vezes, até duas horas. Assim, conclui. De lá, fiz o EJA (Educação de Jovens e Adultos), aqui em Parintins, já casada.

Herança conflituosa

Foto ilustração de Floriano Lins

Traumas afetivos são cicatrizes para além dos tempos e circunstâncias. No sentido de encorajar outras tantas amordaçadas em seus medos e silêncios, Leoa compartilha a herança conflituosa que a acompanha…

Os traumas afetivos me impediam de namorar. Morria de medo de me aproximar de homens. Meu primeiro namoro aconteceu aos 15 anos. Foi um desespero. O rapaz se aproximou de mim e me beijou no rosto. Contei pra minha irmã e ela começou me orientar melhor. Mesmo assim, meus namoros eram breves, nunca me apaixonei por ninguém nem transei antes do casamento.

Pra chegar ao casamento: antes de vir pra Parintins, morava noutro município: a noite, trabalhava numa escola como monitora e de dia era doméstica em casas de famílias. Vim aqui visitar meu pai. Eu criava uma sobrinha que minha irmã rejeitou, quando enjoou do marido; cuidava dessa criança como minha filha. (Essa sobrinha, mais tarde, rejeitou também a filha. Eu e meu marido decidimos adotar. É um amor de gente). Quando cheguei em Parintins, não conhecia nada; andava sempre nas mesmas ruas. Um dia, fui visitar uma prima e a filha/sobrinha não queria andar de jeito nenhum. Nisso, passaram três taxistas e recusei. Até que passou um e ela chamou; hoje, é meu marido. No trajeto, ele puxou conversa, mas ela é quem respondia. Falava muito… Paguei a condução e ele queria saber a hora do meu retorno. Dei a hora errada e desencontramos. Depois, ele descobriu meu endereço e me procurou, mas não o reconheci: estava sem colete, todo arrumado… Conversamos, depois de um tempo, a gente começou namorar.

No princípio, não sentia nenhuma atração por ele. Não sabia nada dele… Já tinha 19 anos. Num outro dia, ele de novo se oferecendo pra me levar na casa da minha prima. Aceitei. Assim, me levando e me trazendo começamos um relacionamento. Até então, tinha colocado em cabeça: o primeiro homem com quem eu me relacionar, caso. Ele foi o primeiro homem com quem me relacionei e acabei ficando; eu já gostava dele, mas não era amor de marido e mulher… Casamos. Isso foi um impacto pra mim. Caí na real de vez: “- Meu Deus, agora eu tenho um marido!”. Depois, consegui uma casa pra gente e trouxe meu pai.

Meu marido saía pra trabalhar e eu ficava sozinha. Chorava muito… Sempre disfarçava, lavava o rosto pra ele não perceber e pensar que estava tudo normal… Pensei em ir embora. Aos poucos, foi me conquistando por ser muito legal comigo, muito bom e me compreender. Contei pra ele um pouco da minha vida e foi me entendendo melhor. Engravidei, mesmo sem planejamento; ficamos muito felizes. Na minha gravidez ele foi uma pessoa maravilhosa: me deu muita força, preocupava-se comigo e, assim, fui começando a amá-lo de verdade. Tive alguns problemas na gravidez e ele ali, sempre me apoiando… Planejamos muita coisa pra bebê: o quartinho, o enxoval, tudo arrumadinho… Só que deu tudo errado no hospital. Fui operada, já passando da hora e a criança nasceu com a pele amarelada. Recebi alta e ela ficou no hospital… Nessa lida toda, me esforcei muito e complicou a cirurgia, mesmo assim, o médico deu alta e me mandou pra casa. A cirurgia abriu, voltei pro hospital e fiquei mais um mês. A bebê em casa sob os cuidados do pai… Após uma ultrassom, o médico me disse: “- Só Deus na tua vida…”. Naquela mesma noite, fiz a segunda cirurgia… Durante a cirurgia, aconteceu um episódio impressionante. Fui dada como morta e desligaram todos os aparelhos, mas via tudo o que acontecia ao meu redor: vi a moça da limpeza ajeitando a sala, vi também o cirurgião saindo com os outros médicos e eu lá no leito com um pano branco sobre mim. Sem entender nada, fui acompanhando o cirurgião que estava muito triste. Ele foi até a cozinha, disse pra cozinheira que a cirurgia tinha dado errada… Aí, voltou pro centro cirúrgico, tirou o pano que cobria meu rosto e viu meus olhos abertos… Ele entrou em desespero e mandou eu apertar a mão dele… Apertei, mas não conseguia falar… Nisso, chamou a equipe de volta, me entubou e adormeci. Não lembro de mais nada. Acordei no outro dia e fui tirando tudo que foi tubo… Quando ele chegou eu já estava bem. Queria sentar, falar e ele admirado… Acho que toda essa situação aconteceu por negligência… Era uma gravidez de risco e não deram atenção. Também não permitiram acompanhante pra criança… Eu operada tinha que cuidar dela doente… Até hoje não provaram o que realmente aconteceu. O laudo não esclarece nada. O cirurgião chegou a me dizer que em todos esses anos como médico, nunca acompanhou um caso parecido. Depois da alta, fui pra casa e comecei viver com minha filha, embora sem conseguir me livrar das lembranças ruins, desses rejeitos indesejáveis. Fui recuperando e, aos poucos, superando… Compramos, enfim, nossa casa onde moramos até hoje. Meu pai veio conosco. Sei lá, era uma coisa atrás da outra: quando pensava que ia superar as marcas ruins, vinham outras…

No enfrentamento a predadores

Coragem, determinação, ousadia são componentes indissociáveis na construção da autonomia e libertação das mulheres. No enfrentamento a elementos predatórios à dignidade e ao respeito à cria, Leoa se impõe ao corporativismo machista naturalizado nas relações familiares. Livre de culpas e medos, revela-se o potencial da Felina em sua função materno-protetora…

Meu pai era aposentado; estava bem idoso, debilitado… Como disse, ele sempre me deu muita força… Até então era meu herói. Apesar do fez mais tarde, foi um guerreiro pra nos criar… O sonho dele era morar só, ter as próprias coisas… A princípio, morava conosco na mesma casa. Depois, construímos uma suíte na parte detrás pra ele morar só e fazer as coisas dele. Depois de casada, nunca trabalhei fora. Fazia coisas pra vender – dindin, farinha, gelo… Tudo pra não deixar minha filha sozinha. Era dedicação total. Nunca deixei ela com ninguém até os nove anos; foi quando consegui trabalho como caixa num comércio. Aparentemente, estava tudo bem: o pai dela levava e buscava na escola. Ela ficava das cinco da tarde até oito da noite com meu pai, a hora que eu saía do trabalho.

Numa tarde, comecei me sentir mal e voltei às seis horas. Falei pra minha colega, a dona do comércio, que alguma coisa errada estava acontecendo… Meu coração me dizia… Sem ter certeza de nada, comecei observar o comportamento dela… Estranhei também a mudança do meu pai: antes, quando eu chegava do trabalho, estava no portão me esperando; só ia deitar depois de saber se eu estava bem. Deste dia em diante, já encontrava ele trancado na suíte. Batia na porta, perguntava se estava bem… Dizia que sim. Mudou completamente: não me esperava mais, não deixava nada pra eu merendar. Na minha mente, ele estava doente e não queria falar. Até que uma tarde, meu marido deixou nossa filha em casa e esqueceu o celular. Voltou pra pegar e surpreendeu meu pai no quarto dela. Ela correu pro banheiro e ficou embaixo do chuveiro. Meu marido questionou e ele respondeu que estava esticando a costa. Atordoado, meu marido foi no meu trabalho e me falou que encontrou meu pai deitado, sem camisa, na cama da nossa menina. Percebi que algo grave estava acontecendo…

Voltei às pressas com aquele sentimento ruim e encontrei ele novamente trancado. Meu marido me deixou em casa e saiu. Chamei minha filha pro quarto e ela confessou tudo. Resolvi examiná-la. O que vi não era normal. Forcei ela a me contar tudo. Começou a chorar. Disse que não falou porque estava com medo do que ia acontecer. Jamais imaginei que meu pai fosse capaz de um ato desses… Sempre me ajudou a cuidar dela… Eu temia os abusadores de fora… Na minha cabeça, os de casa só protegiam… Choramos juntas. Estrategicamente, acho como prova, ela tinha gravado tudo no celular… As imagens me chocaram muito. Em seguida, ela entrava no banheiro e falava no celular mostrando o rosto: “- Mãe, olha o que está acontecendo aqui em casa… Eu não tenho coragem de falar… Faz alguma coisa, mãe!”. Senti nojo de tudo isso… Disse que já fazia dias que ele abusava dela; a primeira vez aconteceu quando a energia foi embora. Depois disso, era todos os dias. Entrei em desespero. Vários sentimentos tomaram conta de mim: revolta e ao mesmo tempo piedade. O que poderia acontecer com ele, se meu marido chegasse, naquele momento, e descobrisse; pensava nas minhas irmãs… Era uma mistura de sentimentos: era a mãe, a irmã, a filha, a esposa… Era uma briga interior sem controle… Fui até o quarto dele, abri a porta e falei muita coisa pra ele; estava tomada de raiva… Ele me pedia perdão, desculpa, dizendo que estava arrependido. Disse que alguma coisa tinha possuído ele, que alguma coisa induzia ele a fazer o que fez… Assumia que eu tinha sido uma boa filha e, assim mesmo, me traiu e que estava muito triste.

Nesse momento liguei pra minha prima levar ele lá de casa, antes do meu marido chegar, pois ele não tinha certeza de nada. Quando chegou, estava em desespero. Não tinha noção do que poderia acontecer… Ele me acalmou e não falou nada. Minha filha em pânico, sentindo-se culpada e preocupada se o pai ia matar o avô… Tentei acalmá-la, oferecendo colo e segurança: “- Minha filha, nós vamos resolver; acreditamos em você; estamos aqui pra lhe proteger…”. Ao mesmo tempo, vinha aquele sentimento ruim… “- Será que ela contribui pra isso?…”. Eu olhava pra ela e via ali uma criança, uma vítima indefesa e lembrava do que tinha acontecido comigo… Em meio ao desespero, liguei pro meu cunhado… É uma pessoa de bem… Ele me aconselhou denunciar. Outro conflito interior… Sentia medo, vergonha… Ele insistiu: “- Faça o BO, denuncie… É seu direito. Você é mãe, você é vítima, sua filha é mais vítima ainda…”. Meu marido colocou em minhas mãos a decisão. Não foi fácil… Meu marido aparentava calma, mas estava revoltado. Diante do meu desespero, já não se preocupava com ele. Meu pai tinha morrido pra mim… Era um sentimento de dor, amargura, revolta… No outro dia, denunciei na delegacia. Ele foi chamado, assumiu o erro e disse que estava muito arrependido… Minhas irmãs vieram pra Parintins. A mais velha, sempre do meu lado. A outra irmã ficou contra mim… Mas, minha consciência dizia que fiz a coisa certa. Perguntei a ela se fosse com a filha dela. Ela respondeu: “- Já aconteceu, foi meu cunhado e nem por isso eu denunciei; muito menos denunciaria meu pai”. E justificou que não queria escândalo na família. Revoltei-me e disse que tinha dó das filhas dela. Não retirei a queixa. Nisso, meu pai pedia pra falar comigo, mas eu não tinha coragem de olhar na cara dele. Na delegacia, o nosso advogado pediu pra não divulgarem o caso na mídia, para evitar desgastes psicológicos.

Após a denúncia, minha filha foi ouvida e encaminhada para exame. Foi um horror. Nunca mais quero passar por isso. O machismo do médico foi outra violência. Ela resistia ao exame e eu chorava junto com ela… O médico falava para ela: “- Por que não quer abrir as pernas agora, se tu abriste pra ele?”. Enfurecida, tirei minha filha da maca e não deixei mais que ela fizesse o exame. O médico monstro ainda se voltou pra mim: “Você, mãe, é culpada… Não cuidou da sua filha; não orientou…”. Respondi: “- Você não sabe nada da minha vida… Sabem por que ela recusa o exame? Por que vocês estão violentando ela… Vocês não são profissionais…”. Chorando, tirei ela de lá. Ele me enfrentou: “- Então, não vou fazer mais nada. Vou colocar no laudo que não houve nada…”. Fui pra cima: “Não vai colocar nada, porque você não examinou ela…”. Aí, não escreveu nada.

Saí arrasada; ela mais traumatizada. Voltei à delegacia com ela pra conversar com as psicólogas. Elas não me queriam por perto. Me impus e acabaram deixando. Começaram as perguntas: “- Por que tu deixou ele fazer isso?”. Ela chorando respondia: “- Eu não deixei…”. Insistiam, criminalizando minha pequena: “Mas, deixou ele ficar no teu quarto… Você tinha como se proteger. Por que não fechava a casa, quando chegava da escola? Por que não se trancava no quarto?”. Não aguentei tamanha humilhação e enfrentei: “- Vocês querem ajudar ou piorar a situação? Ela está ficando nervosa…”. Uma delas, falou que eu estava atrapalhando. Retruquei: “- Vocês é que não estão fazendo o correto… Vocês estão condenando…”. Nisso, entrou minha irmã mais velha e repreendeu elas pela falta de preparo profissional. Uma delas tentou se defender: “- Estamos fazendo nosso trabalho e vocês estão atrapalhando…”. Aí, minha filha disse que não falava mais nada e não falou mesmo.

Nessa situação toda, meu pai pagou um advogado com ajuda da minha irmã pra não ser preso… Pesou a idade e se livrou. Desdaí, ele ficou com problema, nunca mais foi o mesmo, não se dirigia mais sozinho. Já tinha 80 anos. Minha irmã levou ele; só que a relação com o genro já não foi mais a mesma: meu cunhado temia pela filha deles. Minha irmã trouxe ele pra casa da outra irmã, no interior. A saúde dele piorava. Entrou em depressão e abandonaram ele numa outra casa. Já muito debilitado, ela me ligou, pedindo pra eu ver ele. Fui. Chorei muito quando vi ele naquela situação. Entendam: foi uma pessoa que eu amei muito, alguém que eu cuidei… Ele chorou muito, pediu perdão…Aí trouxe ele pra Parintins e deixei na casa da minha prima… Lá, ele começou a contar das torturas psicológicas que vinha sofrendo… Suplicava a Deus pra perdoar ele e que lhe desse descanso… Perdeu a vontade de viver. Todo dia, ia na casa da minha prima cuidar dele. Apesar de tudo, sentia compaixão. Foi meu pai, minha mãe, meu tudo… Em casa, começaram os conflitos com meu marido e resolvi levar ele pra minha irmã num outro município.

Na viagem, ele falava muitas coisas, insistindo meu perdão. Queria descansar em paz: “- Minha filha, o que eu fiz foi muito grave, preferia ter sido preso pra pagar todo o mal que te fiz. Sei que eu te machuquei muito e agora é contigo que me acho… Conversa com a minha neta pra me perdoar também; pede perdão ao teu marido…”. Fiquei com ele uns dias… Faleceu no ano seguinte. Ainda nos falamos por telefone. Insistia no meu perdão. Disse a ele que partisse em paz, que já tinha perdoado: “- Estamos bem, vou cuidar bem da minha menina… (ele se preocupava muito com ela)”. Naquela mesma noite, foi hospitalizado e faleceu de manhã.

Hoje, não sinto mais raiva nem ressentimento. Naquele momento, sim. Também nunca vou esquecer… Por outro lado, guardo as referências boas. Na minha infância, adolescência, juventude posso dizer que foi guerreiro. Sempre me ajudando. Se não tivesse acontecido essa tragédia, hoje, ele seria um herói pra mim.

Arquivos Indeléveis

A vida segue alternando-se… Eventos de maior ou menor proporção interpõem-se à memória, de cujas brechas, vez por outra, escapam sussurros dolorosos. Leoa vive esse tempo memória…

Depois do acontecido com nossa filha, meu marido nunca mais se aproximou nem falou com meu pai. Embora contrariado por eu cuidar do velho, compreendeu meu sentimento de filha e ficou com as meninas, enquanto estive fora. Lá em casa, as coisas mudaram um pouco. Eu e minha filha ficamos mais unidas. Ela só não gosta de tocar no assunto. No começo, passei uns quatro meses dormindo com ela. De dia, ia pra escola normal, mas a noite era a pior parte. Nunca namorou e diz que nem quer. Acho que é trauma; acredito que assim como aconteceu comigo, com ela não será diferente. O pai ficou um pouco arredio: não toca no assunto; nunca tocou. Eu que converso, oriento… Afinal, sou a mãe. No começo, ele chorava muito, não na frente dela. Ela ama essa filha. Uma vez, ele tentou culpar ela. Refleti com ele… É um pouco rude nessas coisas. Ela se tornou muito desconfiada: não gosta de abraçar tio, agarrar na mão, essas coisas… Com o pai é diferente: abraça ele; ele abraça ela, se dão carinho…

O caso da minha filha complicou um pouco o relacionamento íntimo com o meu marido… Tudo aquilo vinha na minha mente e a gente quebrou ali um pouco a relação: passei a dormir com ela e ele ficou sozinho no quarto. Mas, a gente conversa sempre e abertamente sobre nossos problemas tentando resolver da melhor forma. Por todos os traumas afetivos que trago na alma, nossa intimidade sempre foi difícil… E todos os dias, agradeço a Deus: meu marido é um grande companheiro; sempre compreensivo… Às vezes, até parece abuso de minha parte, quando me nego pra ele… Acreditem, é muito ruim pra mim não corresponder à altura.

Num outro momento, minha filha leu uns livros sobre abuso sexual e apresentou o trabalho na escola. Ela compartilhou comigo muito feliz. A professora dela me parabenizou; disse que houve alunas que choraram, já passaram por isso. Na escola, porém, ninguém soube da vida dela. Em nossas conversas sempre digo a ela que os acontecimentos da vida são lições pra gente amadurecer. Dou exemplo da minha vida: antes, foi terrível quando minha mãe nos abandonou. Hoje, superei, vejo que todas as dificuldades serviram pra eu ser a mulher que sou. E quando minha mãe vem em casa, trato ela bem. Sinto compaixão dela. Aliás, vida de mulher tem dessas coisas.

Fêmea em rebeldia

Fotografia do painel de autoria da artista Paola Paixão, no muro das ruínas da Casa de Cultura, em Parintins (Foto: Floriano Lins)

Nas regras do escravismo patriarcal, reproduzir é predestinação de todas as fêmeas, indistintamente. Tal princípio, envolve aspectos econômicos, sexuais e desconsidera o livre arbítrio da presa. Na obra – Mulheres educadas na Colônia, (2000), Arilda Inês Miranda Ribeiro traz ao debate o conceito tradicionalista opressivo de família: “[…] todos deviam obediência ao senhor patriarcal, sua esposa, filhas e filhos. Por conseguinte, fundamentou-se a predominância da família patriarcal, cabendo à mulher conformar-se à vida doméstica, particularmente no exercício cultural dos papéis de mãe e dona de casa”. A mãe de Leoa rebela-se…

Conheci minha mãe faz três anos. Apareceu de surpresa em casa… Aparenta uns cinquenta anos. Sempre tive vontade de conhecer ela, falar com ela e saber por que tinha ido embora, abandonado nós. Se abriu comigo, contou que tinha casado cedo porque era muito presa; não aguentou e se rebelou.

Contou que foi passear com uma amiga no interior, lá conheceu meu pai, bem mais velho que ela e se envolveram. Meu pai não sabia ler; era trabalhador rural. Ela foi mãe com 12 anos. Pra casarem, meu pai mudou a idade dele. Desse relacionamento, nasceram quatro filhas e começaram os conflitos; ela não aguentou e fugiu com meu tio, cunhado do meu pai, sem os filhos, pois não tinha como levar nem como cuidar. Minha tia ficou com as crianças dela e o papai com nós. Aí, nos juntaram todos. Ela cuidava de nós e ele trabalhava. Sinto por tudo o que aconteceu, apesar de não ter aquele sentimento de filha e mãe, não condeno ela. É mais uma vítima da história que carrega na alma.

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Caminho de Superação

Autonomia econômica é parceira de libertações. Em se tratando de mulheres, a conquista ganha dimensões incalculáveis, imprevisíveis, transformadoras… Com determinação e ousadia Leoa quebra as amarras domésticas, inventa sonhos e descobre-se valorosa artesã…

O surgimento da artesã foi engraçado. Queria muito fazer computação, mas não tinha como pagar. Fiz a matrícula, assim mesmo, e disse pra mim mesma: “- No final do mês pago a mensalidade”. As coisas apertaram e me vi no aperto para pagar, mas eu queria terminar o curso. Resolvi fazer uns ursinhos de tecido pra vender na escola, sem nunca ter feito curso de artesanato. Arrisquei. Lá, eles amaram. Meu professor – não sei se pra me incentivar – me encomendou quatro. Cada um custava dez reais. No outro dia, levei os ursinhos. Ele arrumou todos na mesa dele e começou fazer comercial. As vendas cresceram e, assim, paguei o curso. Não parei mais e peguei gosto. Hoje, o artesanato é o grande aliado das minhas conquistas; da minha libertação.

Entre manas

Os anúncios de Conceição Evaristo, Escritora e Ensaísta, ecoam destemidos em celebração a conquistas de mulheres por libertação e autonomia: “Em nossa fala, há muito fazer-dizer; há muito de palavra-ação. […] E não há mais quem arranque nossa língua; o nosso verbo solto conjugou antes o tempo de todas as dores”. Calar é impossível. Leoa provoca outras Manas…

Nunca fechem os olhos nem temam abrir a boca pra fugir de problemas. Muitas vezes, por medo de machucar outros/as escondemos a verdade, até mesmo nos machucando. Antes de pensar nos outros, antes de cuidar dos outros, cuidemos de nós, de nossas coisas, temos que correr atrás de nossos objetivos… Como cuidar dos outros se não sabemos cuidar de nós?… Nós, mulheres, precisamos aprender a nos defender, a nos proteger e proteger nossas crias indefesas; dar prioridade àquilo que faz bem pra nós, pra nossa família, porque se estivermos bem, nossos filhos também vão estar. O mundo pode ser contagiado e ficar bem melhor.

Imprevisíveis

O universo feminino é território insondável, imprevisível… Conjugação de dor/alegria; ódio/compaixão; desespero/esperança; fraqueza/força; medo/coragem; treva/luz; frio/calor; fim/começo/recomeços…

Em cada fêmea – não importa a natureza – um mistério em comum. Incorporam-se em Fridas, Giocondas, Margaridas, Rosas, Violetas, Gabrielas, Dorothys, Dorcelinas, Olgas, Bertolinas, Simones, Izabelas, Loivas, Anastácias, Dandaras… Nesse mistério incógnito, intercruzam-se também onipresenças – Gaia, Afrodite, Atena, Bast, Cerridwen, Deméter, Durga, Inana, Iansã, Isis, Kuan Yin, La Loba, Lilith, Nanã, Maria… Além das nobres espécies – Castanhas, Mungubas, Andirobas, Copaíbas, Itaúbas, Preciosas, Sucupira, Ucuúbas… Deusas e Revolucionárias em natureza e tempos diversos/adversos…

O Ser Fêmea clama por libertação de padrões, conceitos e de passados opressivos. Clama por revolução aqui, agora, sempre… Um vir-a-ser de resistências, lutas e conquistas.

Notas:

Carapanã – muriçoca;

Manas – forma de tratamento entre as mulheres, na Amazônia brasileira;

Gaia, Afrodite, Atena, Bast, Cerridwen, Deméter, Durga, Inana, Iansã, Isis, Kuan Yin, La Loba, Lilith. Nanã, Maria – Deusas cultuadas na ancestralidade matriarcal;

Castanhas, Mungubas, Andirobas, Copaíbas, Itaúbas, Preciosas, Sucupira, Ucuúbas – Espécies nativas da Amazônia.

Os artigos de autoria de Fátima Guedes fazem parte do Projeto – Fêmeas Memórias: Trajetórias de Mulheres Violentadas sexualmente, presas da Justiça e ex-presidiárias no município de Parintins, no Amazonas.

Leia os outros artigos da série:

Fêmeas Memórias – Algemas silenciadas

Fêmeas Memórias – Álquia Esquenta o Debate

Fêmeas Memórias – Utopias de uma Borboleta

Fêmeas Memórias – Esperança Aprisionada

Fêmeas Memórias – Mensageira de Silêncios

Fêmeas Memórias – Sob o voo da Águia

Fêmeas Memórias – Estrela Cadente

Fêmeas Memórias – Mãe Esperança

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). Foi fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Fátima Guedes

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.