Uma Carta!

FÁTIMA GUEDES Com o avanço da domesticação virtual sobre nossa subjetividade colona, o final de 2015 extrapolou na mecanização de mensagens de feliz natal e próspero ano novo. Aquela espontaneidade natural recheada de poesia, de amorosidade que contagiava e aproximava […]

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Por Amazônia Real Publicado em: 07/01/2016 às 19:11

FÁTIMA GUEDES

Com o avanço da domesticação virtual sobre nossa subjetividade colona, o final de 2015 extrapolou na mecanização de mensagens de feliz natal e próspero ano novo. Aquela espontaneidade natural recheada de poesia, de amorosidade que contagiava e aproximava carinhosamente amigos e parentes, entra em fase de extinção e cede lugar aos “zapzaps e feicebuques”. Com sutileza e sem pedir licença os impérios sobrepõem-se estupidamente com a lógica da comunicação fria – copia, cola, compartilha e/ou envia.

Há uma cumplicidade quase que generalizada sobre a morte do diálogo fraterno, da troca de afetos e contatos entre as pessoas; como seres robotizados a massa é induzida em favor do emburrecimento, do embrutecimento do intelecto, da afetividade. Como prova material dos argumentos, o Tempo de Carlos Drummond de Andrade foi o texto que mais se copiou, colou, compartilhou e enviou, neste final de ano. E mais, sem quaisquer constrangimentos.

Em meio à melancolia e à desesperança trazidas por conta dos agravos políticos, sociais, ambientais e éticos durante 2015, inesperadamente, em forma de profecia, o carteiro me surpreende com uma carta endereçada com caneta esferográfica. Retomo a lucidez, aperto aquela relíquia de encontro ao peito absorvendo as energias, o calor das mãos que transformaram sentimentos em palavras, em pontes de empatia e solidariedade.

– Uma carta escrita à mão!… O impacto da surpresa desconsiderou a indiferença do mensageiro na entrega da missiva. Manchas sutis de tinta azul sobre o envelope levemente umedecido pela chuva fina, daquela manhã, selavam a cumplicidade da caneta com as mãos que teceram a mensagem. Mal acreditava! O manuscrito chegava para embalar utopias adormecidas, provar a fragilidade do determinismo tecnicista e, como em outros tempos, compartilhar notícias, falar de sentimentos e revitalizar hábitos e valores já mutilados.

Quanto tempo não experimentava um duplo prazer! A mecanização da “praticidade” virtual imposta à comunicação obstrui interlocuções menos técnicas, mais fraternas, mais humanas. A contaminação mercadológica é tamanha que nem nos apercebemos da trama persuasiva sobre nossa subjetividade e sobre os processos que permeiam a comunicação por mais simples que seja.

Mas sim, a carta?!… É verdade. Foi um presente da bruxinha Sílvia Schneider, residente em Rondinha, um vilarejo conquistado pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra, na luta pela reforma agrária, município de Joia, interior do Rio Grande do Sul. Sílvia tecera a carta com a delicadeza das mãos que conduzem ao letramento as futuras militâncias pelo direito a terra e reafirmava a autonomia da escrita enquanto valor político. A companheira foi precisa nos detalhes: com palavras criativas desenhou as belezas naturais de Rondinha, as novidades metodológicas no trabalho desenvolvido com as crianças do assentamento, as emoções vividas na luta, alegrias partilhadas com a família, com as amizades, enfim, construiu um diálogo vivo, empático e ao mesmo tempo político.

Dentre os assuntos, não faltaram curiosidades em relação aos “encantos” da Amazônia, em especial de Parintins, vislumbrados na televisão: imensas áreas desenhadas por águas e florestas… Cabocos sempre felizes… (Tela reproduzida em seu imaginário).

Em estímulo à carta da Amiga, retomo o diálogo com a caneta e o papel. Foram muitas as novidades… Fazia um tempão de saudades… Sobre as curiosidades amazônicas?… Achei por bem, não comentar… Agora, não! Sílvia quer nos visitar… É injusto quebrar a magia de quem sonha e ao mesmo tempo estragar o sabor de uma carta escrita à mão… Surpresas desse tipo viraram raridades.

Em verdade, a surpresa da carta tirou-me o sono na noite de 30 de dezembro de 2015… Apesar da gotícula d´água sobre nossos desertos sedentos, tenho dúvidas de que se chegue ao amanhã solidário, enquanto nos permitirmos reféns de uma navegação cujo viajante instala-se diante de uma máquina colonizadora, individualizante e semelhante a um pião, gira horas e horas em torno de si mesmo.

Sem mais para o momento, a carta de Sílvia é a mais bela provocação para mudar os rumos de nossa comunicação interpessoal em 2016.

E por esse caminho, seguimos Reino adentro.

Bruxinha – tratamento carinhoso em virtude dos conhecimentos tradicionais de saúde desenvolvidos por Sílvia.

A ilustração deste artigo é do Free Image on Pixabay

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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