A percepção do sobrenatural e os mitos de Parintins

Por Amazônia Real Publicado em: 01/02/2016 às 17:56

RENAN ALBUQUERQUE

“Recentemente, aqui em casa, nós estávamos tentando dormir. Mas eu estava inquieta e ficava andando de um lado para o outro. Minha mãe percebeu e perguntou o que eu tinha. Então eu disse a ela que não estava conseguindo dormir e que alguma coisa ia acontecer ou estava acontecendo. Eu queria ligar para meus irmãos, mas minha mãe não deixou. Ela pediu para que eu ajoelhasse e rezasse, pedindo a Deus que ele protegesse meus irmãos. Quando eu fui limpar o meu pé pra subir na cama eu senti um medo, que quando eu deitei do lado do meu filho e de minha filha do nada o espelho virou. Um espelho enorme que não tinha como cair”.

“Uma parte dele ainda pegou na perna da minha filha. O espelho ficou em caquinhos e o meu filho viu aquele espírito indo pra baixo da cama. Ele dizia: ‘ele tá em baixo da cama mãe, a senhora viu’? Então eu dizia pra ele que eu estava sentindo [o espírito]. Eu senti muito medo, eu gritava muito, parecia que estava vivendo em um filme de terror. Minha mãe veio e, quando ela ligou a luz, antes de entrar no quarto, ela se arrepiou todinha. Eu dizia pra ela que aquele ‘negócio’ estava debaixo da cama, e nem ela, que é uma senhora muito religiosa, não conseguiu olhar debaixo da cama”.

“Essa do espelho foi muito aterrorizante, nós fomos de manhã à dona Maria (mãe de santo) e ela disse que eram coisas malignas, mas graças a Deus que ela bateu no espelho, não pegou em mim. Comigo é mais essas coisas de objeto. Às vezes a gente põe um objeto num lugar e quando vamos ver não esta mais lá, a gente ouve estarem arrumando, mas quando vamos ver está do jeitinho que a gente deixou. E acontece muito, e olha que aqui em casa é pequenininho, imagina quando for maior, ninguém vai querer morar aqui com a gente. Na hora que acontece dá muito medo!” (1).

O relato concernente à percepção de visagens foi coletado em Parintins, município a leste da capital amazonense, na divisa com o Estado do Pará, cerca de dois meses atrás, dando conta do que comumente ocorre na urbe parintinense, junto a famílias locais. A aparição de almas – santificadas ou não – enquanto fenômeno social no caso relatado, exemplifica a tensão que existe entre realidade e imaginário, além de mostrar o forte componente de correlação entre o real e o ilusório.

Uma tensão que existe primeiro por causa da concepção histórica das pessoas do Baixo Amazonas, a qual é intensamente povoada de mitos e bastante presente no cotidiano popular; e depois porque a natureza valorativa ameríndia (componente da formação identitária) e o contato com figuras anímicas ajudaram a formar a sociocultura do lugar.

Foi impressionante verificar que a manutenção, em parte, da sobriedade da mulher ante a visagem se apossando do quarto, derrubando espelhos e zunindo para se comunicar foi algo essencial. Serviu para que o relato fosse um tanto mais apurado e referenciado por imagens mentais claras. Ajudou, ainda, a lembrar das palavras de Torquato, grande curandeiro urbano, morto ano retrasado, quando ele ponderava que “às almas damos o que temos, somente, para que elas nos deixem viver”.

Além de Torquato, incorporador de santos e visagens (vide Eduardo Galvão) que ajudavam ele a curar doentes, há outras 252 pessoas benzedeiras, rezadeiras, erveiras, tiradoras de desmentidura, sacacas e iluminados de ventre em Parintins. Recente levantamento do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Ufam (PPGAS) mostrou esse número, o que nos remeteu a projetar que a Ilha Tupinambarana é um centro de rezadores nativos do Baixo Amazonas, rivalizando naturalmente com o município de Faro, extremo oeste do Pará.

Mas, voltando ao caso da visagem do espelho partido, importa por fim destacar que o sobrenatural guia e orienta sobre caminhos a serem tomados, aplaca dores, acalma angústias e tonifica pálidas alegrias fragmentadas. O fato de visagens assustarem humanos é, simplesmente, uma variante da atividade arteira intrínseca às pessoas desencarnadas. Simples assim.

Nota:

(1). Moradora de Parintins. Mulher, trabalhadora do lar. Pesquisa de Campo, Dez/2015.

* Colaboraram com a coleta de dados Gilson Piedade e Suzielaine Carvalho

A ilustração deste artigo é de autoria de Alberto César Araújo.

Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.

Reportagem Noticiosa

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