Fátima Guedes

Fêmeas Memórias – Humanamente preciosa

Os cristais possuem saltos quânticos de amor e esperança; não podem ser vistos a olho nu, mas podem ser sentidos e acessados pela sua conformação primordial. Cada pedaço contém a informação do todo e não importa o quão […]

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Por Fátima Guedes Publicado em: 22/01/2018 às 18:03

Os cristais possuem saltos quânticos de amor e esperança; não podem ser vistos a olho nu, mas podem ser sentidos e acessados pela sua conformação primordial. Cada pedaço contém a informação do todo e não importa o quão pequeno este pedaço possa ser… Lianna de Castro Molinaro, Bióloga e Pesquisadora.

Segundo a cristalografia, ciência dos cristais, o vocábulo vem do grego – krustallos, e significa tanto gelo quanto quartzo. Na crença antiga, concebia-se o quartzo incolor como gelo supercongelado, resistente a altas temperaturas. As formas dos cristais são variadas. Cada um possui vários níveis de energia. Basicamente, seus níveis mais interiores, os núcleos, mantêm a integridade apesar das energias desarmônicas. Já os níveis secundários são relativamente sensíveis ao meio ambiente energético e, à medida em que as energias estáticas se acumulam, podem bloquear a emissão energética do mesmo. A força áurica de um cristal repelirá um percentual significativo de energia negativa. (A Era dos Cristais – Edgar Martins)

Em natureza e resistência a personagem que enriquece o debate em Fêmeas Memórias é a personificação de um cristal: apesar da aparente fragilidade e singular delicadeza impõe-se com altivez aos inevitáveis conflitos de sua cotidianidade… Sensível a afetações de natureza sistêmica, mantém permanentemente ativo seu campo de energias estáticas cujo poder bloqueiam interferências opressivas, marginalizantes. A força áurica de seu perfil é repelente significativo a energias misóginas.

Pois bem, a liberdade conquistada no exercício literário permite-me transgredir determinismos estruturantes e, com o peculiar atrevimento de nossa militância feminista, compartilhar nestas páginas memórias cedidas por Cristal – Fêmea de valor humano incontestável, essencialmente lapidada a partir dos enfrentamentos por autonomia e liberdade. Conheci Cristal numa dessas viagens ao interior do Amazonas. Atraí-me por seu perfil discreto e ao mesmo tempo irreverente às injúrias à vida digna a que gestores públicos submeteram a maioria dos municípios amazonenses. Cristal é uma anônima guerreira – raridade destes esquecidos pedaços de Brasil – nos desafios às sequelas da ambição, do autoritarismo reinantes nos sistemas patriarcais. Graduada em letras, atua como Policial Militar, no entanto, o valor de sua bagagem profissional concentra-se nas múltiplas experiências desenvolvidas em sua jornada histórica: vendedora ambulante, empregada doméstica, serviço geral, técnica de enfermagem…

Cristal em Formação

Foto: Floriano Lins

A formação de um cristal exige tempo e paciência. A harmonização entre as partículas carece de laços químicos – determinantes da lapidação, do valor e da posição espacial a ocupar. A Cristal de Fêmeas Memórias se forja valor humano similarmente…

Venho de uma família de origem humilde. Meu pai trabalhava numa empresa madeireira e minha mãe era empregada doméstica. Sou a 4^a. filha entre 8 irmãos. Fomos criados sob os cuidados dos avós maternos e paternos… De certa forma, eram muito severos, não admitiam nada de errado na família… Apesar do regime familiar, fui uma criança feliz, cheia de sonhos… Lembro que, em decorrência de nossa condição socioeconômica, meus pais só nos compravam roupas uma vez no ano e sempre no mês de outubro, quando ocorria na cidade o arraial da padroeira… Essa roupa tinha que durar os festejos de Natal, Ano Novo e o resto do ano seguinte até o novo festejo. Era assim, ano após ano. Um dia, reclamei, queria uma roupa nova para sair com as colegas. Afinal, elas tinham roupas novas e eu não. Meu pai me repreendeu bravamente: “Se quiser luxo, vá trabalhar”. No dia seguinte, minha mãe me levou à casa de uma madame para prestar serviços domésticos. Cheia de inocência, dediquei-me ao trabalho incansavelmente em troca de roupas, comida e uma ajuda simbólica para minha família…. Meu relacionamento com meus pais não era muito harmonioso. Eles viviam para o trabalho e, conforme relatei, eu e meus irmãos vivíamos sob os cuidados dos avós. Minha mãe tinha gênio forte, brigava com a família, com todo mundo e nós, os filhos, vivíamos na peia. Era uma espécie de ritual do cinto: começava logo cedo antes de irmos para a escola e se estendia pela noite, quando ela retornava do trabalho… Meu pai era mais tranquilo, o oposto… Pra ele não havia tempo ruim; só fazia uma exigência: queria todos os filhos sempre juntos na mesa para o café da manhã e no jantar. Preferia conversar e aconselhar… Só batia quando não havia outra saída… Sempre tinha uma piadinha para tirar um sorriso nosso. Porém, quando se aborrecia… Humm!!!… Só Deus pra dar jeito… Ainda assim, tinha a alma temente a Deus.

Na convivência com a família para quem trabalhei na adolescência, experimentei realidades diferentes das vividas na minha família, mas, confesso que gostei… Nesse meio tempo, conheci um rapaz que me fez muitas promessas e acabei acreditando. Sabendo da severidade de meus pais, fiz ele pedir consentimento para namorarmos… Veio meio receoso… Meu pai, meio de banda… Acabou permitindo. Um belo dia, cedendo às cantadas, transamos. Ele sumiu no mundo, deixando-me grávida de uma menina, hoje, adulta… Após o incidente, a mulher com quem eu trabalhava não me aceitou mais e tive que voltar para a casa de meu pais, agora, com o agravante da gravidez… Meu pai se opôs me aceitar… Através da insistência de minha mãe ele permitiu, mas não falava comigo. E minha avó paterna insistia que me jogassem na rua, alegando que eu havia virado “puta”. Enfim…Para sobreviver vendia calcinhas e doces na escola e na rua. Era como a família do então pai da minha filha me ajudava. Enfim, ia levando a vida até nascer a bebê… Apesar dos conflitos e dificuldades, continuei estudando. Entendia que somente com estudo conseguiria emancipação… Meu sonho era ser professora cujo espelho era ‘tia’ Elizete, um encanto de professora. Sobre a gravidez, tive sérios problemas; fui forçada parar de trabalhar, de estudar até o momento da cesariana… Nesse mesmo tempo, meu pai fez as pazes comigo. Acreditava que eu fosse morrer e não queria perder mais um filho…

Translúcidas memórias

Impossível eliminar traumas afetivos. São vestígios latentes que reagem, quando se alteram as posições ou se mexem nas cicatrizes… Com sensibilidade poética a geógrafa Edna Frigato, reafirma, “Lágrimas e amor não secam; transformam-se em cristais translúcidos de memórias vivas”. Cristal é memória viva no processo íntimo de autotransformação…

Não dei muita sorte no amor. Poucos relacionamentos e experiências traumatizantes. Achava que tinha dedo podre para escolher homem; resolvi me aquietar. No primeiro relacionamento, promessas bonitas, gravidez e abandono. O cara sumiu no mundo… Conheci o segundo na escola, durante o ensino médio. Nessa época, estudava à noite, trabalhava durante o dia e ainda cuidava da minha filha. A regra dos meus pais era assim, “Arranjou, dê seu jeito…”. Minha mãe repetia diariamente, “Se quisesse estudar, não teria arranjado filho”. Assim, vivi por um bom tempo: trabalhava durante o dia e estudava à noite. Não nego, foi muito difícil… Muitas vezes pensei em desistir, mas a responsabilidade me cobrava garantir um futuro melhor pra mim e minha filha… Cursei o antigo curso de Contabilidade… Só aguentei o 1° ano, não me enquadrava. Iniciei o Magistério e aí conheci meu primeiro marido, um militar do exército. Casamos. A família dele não aprovou pelo fato dele ter assumido minha filha que não dele; também não desistia de perturbar nosso casamento. Com o volume de interferências, ele começou a dar ouvidos. Passou a beber, ficava os finais de semana na rua com os amigos… Nosso casamento virou um inferno. Depois de quatro anos, engravidei. Ele deu uma melhorada. Tornou-se mais carinhoso… Nisso, desenvolvi enjoos, inclusive por ele. Não conseguia sequer ouvir-lhe a voz. Mas, continuávamos juntos. Essa gravidez foi pior que a primeira: placenta prévia… Parei de vez de trabalhar e tornei-me dependente exclusivamente dele. Até então era bom marido. Inesperadamente, começou a rejeitar minha filha mais velha… Posteriormente retornei ao antigo emprego e começaram as brigas em casa… Nesse tempo, ele foi transferido para outro estado… Decidi não acompanhar… Tive medo do que poderia acontecer comigo longe da família… Por fim, separamos… Nesses desencontros já havia perdido muito tempo nos estudos … Então optei em fazer o EJA (ensino médio), mas continuei trabalhando… Enfrentei o vestibular e passei no curso de licenciatura. No mesmo período, submeti-me a concurso público para serviços gerais. Fiquei entre as dez primeiras colocadas. Como era nova demais (19 anos) e sem experiência profissional, caí para o décimo segundo lugar na prova de títulos. O desespero foi maior quando me mandaram para a zona rural do município. Fiquei entre a cruz e a espada: “Como vou continuar a faculdade? Quem vai cuidar das minhas filhas?” Chorei muito… Procurei a coordenadora, expliquei minha situação, mas foi irredutível: “Ou vai para o interior ou renuncia ao cargo…”. Voltei desolada; orei bastante… Nisso, toca o orelhão em frente à minha casa… Atendi. Era uma mulher desconhecida dizendo que me tinha uma proposta. Era uma outra que iria comigo para o interior: “Mana, eu te ajudo… Conversa com alguém da tua família pra cuidar das tuas filhas; você paga… Meu amigo vai te lotar na comunidade mais próxima e podes voltar todos os dias. Conversa com teu chefe e pede as contas… Ainda vais ficar com dinheiro pra sustentar as meninas até tu receber novamente”. Fiz exatamente. Iniciei a licenciatura e três meses depois comecei a trabalhar… No período seguinte, passei para técnica de enfermagem pelo CETAM. As coisas se complicaram um pouco: queria fazer o curso, mas o horário conflitava com a faculdade. Mergulhei numa rotina exaustiva: saía de casa às quatro da manhã para o trabalho, voltava às 13hs e já ficava na faculdade. No primeiro horário assistia às aulas na faculdade e no segundo horário corria para o CETAM. Durante o estágio, apaixonei-me pela enfermagem… Tranquei a faculdade e continuei no técnico – o emprego já garantido. Minha irmã caçula cuidava de minhas filhas… Só as via à noite e, na época de estágio, somente de madrugada… Foi assim um bom tempo…

Um ano depois, conheci no meu trabalho um professor bonito e solteiro: começamos a namorar. Concluí o técnico e iniciei uma especialização também na área de enfermagem. Enfrentei novamente o vestibular, dessa vez, para enfermagem, na cidade de origem desse meu namorado… Ele me incentivara fazer o concurso público, vender meus bens e mudarmos pra cidade dele. Era começo de namoro… A partir daí começa o grande inferno na minha vida… Costumo dizer que fui do inferno ao céu em nove meses. Só aí me dei conta do que havia feito: passou a morar dentro da minha casa junto com minhas filhas e minha irmã; já mandava em mim e em minhas coisas. Tomou conta do meu cartão de crédito, apossou-se da minha moto… Já não saía de casa sem o consentimento dele… Fez eu brigar com toda a minha família e passou a maltratar minhas filhas, ameaçando-as de morte, caso eu me separasse dele. Aí vendi a casa deixada pelo meu ex-marido e fui morar de aluguel com ele e minhas filhas. A irmã caçula que me ajudava não aguentou, foi embora e convenceu meu ex-marido tirar de mim a guarda das meninas… Nisso, passei no concurso da prefeitura para enfermagem na cidade desse marido… A princípio, não vi problema algum trabalhar em outro município, no entanto, vivia literalmente no inferno: apanhava desse homem com toalha molhada… Não deixava dinheiro pra eu comer… Não me dava nada. Vivia trancada dentro de casa. Só saía se fosse com ele, e ainda me ameaçava de matar meus pais e minhas filhas…

O pai da minha filha mais nova veio buscá-la e a levou para Manaus. O medo me fez entregá-la na hora. Minha filha mais velha ficou com meus pais para consolo de minha irmã caçula. Meu pai tentou me tirar da casa, mas esse marido ameaçou matar meu pai. Vivia acuada e com muito medo. Não conformado, obrigou-me fazer um empréstimo no valor de dez mil reais, dizendo que era pra comprar nossa casa. Na época era muito dinheiro… Na verdade, com a mudança para a cidade dele, as coisas só pioraram… Fomos morar com os pais dele. Estudava de dia. À noite trabalhávamos juntos na mesma escola. Fazia questão de me deixar na faculdade e me vigiava na escola onde eu trabalhava como SERVIÇO GERAL… Pediu para lecionar nesta escola só para me vigiar… As agressões viraram rotina: toda noite me batia, me ameaçava, me ofendia… Ao final do primeiro período o pai da minha filha caçula foi deixá-la comigo. Ela sentia minha falta… Meu medo era que esse homem tentasse alguma maldade contra ela. Apesar de todo esse medo, não sabia como fazer para me livrar dele; não tinha forças para deixá-lo. Na minha mente, eu já não tinha mais nada; ninguém mais me quereria; considerava-me velha, feia, gorda e o pior, já sem meus bens… Sentia-me a pior das criaturas… Um dia, tinha trabalhos pendentes na faculdade e demorei a sair. Nisso, ele invadiu o prédio, arrastou-me pelos cabelos, esmurrando-me, chutando… Ninguém conseguia me tirar das mãos dele. Fui mal para o hospital. Quase vou a óbito… Fiquei internada durante quinze dias. A única preocupação era minha filha que ficou com a mãe dele. Ela me consolava dizendo que a menina estava bem e ele não chegava perto dela. Saí do hospital decidida em deixá-lo e acabar de vez com aquele sofrimento… Nesta noite, ele me tratou muito bem… No dia seguinte, volta tudo novamente. Passou a ter ciúmes de mim com o pai dele… Numa noite, cortou minha costa com estilete… Foi a gota d’água para atiçar minha coragem, minha força interior… Revidei às agressões: joguei álcool nele, mas não encontrei o fósforo… Passei a noite em claro… Na época, quase perco o emprego devido a quantidade de faltas… A faculdade já havia até esquecido… Uma semana depois, comuniquei ao pai dele que iria fugir. Fui à SEDUC pedir meu retorno para o meu município de origem… Qualquer lugar servia, desde que reconquistasse minha paz… Por sorte, meu antigo gestor precisava de minhas experiências em informática. Trabalharia na secretaria da escola com desvio de função. Por fim, retornei ao meu município com as roupas do corpo e algumas roupas da minha filha, acondicionadas numa sacola de plástico… Fui morar na casa de uma amiga… Nova rotina: ia para o trabalho e levava a filha junto. Descobri depois que ainda veio me procurar, mas não me encontrou. Minha família ignorava que eu havia voltado. Na escola não falava a respeito desse assunto.

Depois disso, ainda tive dois outros relacionamentos também frustrantes. Não conseguia gostar. O trauma das violências me acompanhava e sentia medo. Um deles, até gostei, mas descobri que era casado. Outra decepção. Separamos. Voltei a encontrá-lo dois anos depois e acabei engravidando. Esta gravidez foi bem mais conturbada, haja vista que, há 8 anos, havia feito laqueadura. Ledo engano. Uma série de complicações foram aparecendo no meu corpo e afetando minha saúde. Fui ao médico e a surpresa foi impactante: estava grávida de 5 meses. Fiquei muito triste e ainda chamei o médico de mentiroso: “Como estar grávida? Fiz laqueadura!” Conclusão: foi uma gravidez ectópica, delicadíssima. Fiquei de cama sem poder trabalhar, e mantive a gravidez em segredo. O pai podia pensar que engravidei propositadamente. Nesta mesma época, passei no concurso da polícia militar.

Força Áurica

Foto: Floriano Lins

Quando atingem a plenitude, os cristais revestem-se de força áurica imunizando-se de influências ou circunstâncias desarmônicas. O processo de transmutação proporciona-lhes brilho, magnitude e valor. As experiências conflitantes trazidas nos relatos de nossa Cristal fluem como resistência às adversidades, simultaneamente abrem possibilidades de superações e conquista de valor humano…

Em agosto de 2008, a polícia militar chama a 1° turma de novos policiais, e eu entre eles. Havia acabado de receber a notícia da gravidez… “O que iria fazer na polícia a essa altura?”. Procurei um advogado que me orientou informar oficialmente à seção de concursos sobre meu estado; também a possibilidade de me submeter aos testes físicos e ao curso, após o período de lactação do recém-nascido… O tempo passou, a menina nasceu. No ano seguinte, fui chamada na 2° turma do concurso.

Minha vida na caserna não é nada fácil… Tenho muitos colegas, mas poucos amigos. Sou julgada por me comportar diferentemente das demais policiais… Os anos de violência reprimida, de certa forma, me provocam botar pra fora o que me faz mal… Falo o que penso. Já fui punida muitas vezes; ameaçada por colegas e por civis… No geral, a polícia é taxada de bandida, é subjugada… A maioria da população não sabe o quanto é difícil ser policial militar, 24h por dia. E sendo mulher a situação é pior… Temos que provar a todo instante que somos tão eficientes quanto os homens, e ainda agir sem perder a sensibilidade diante das atrocidades vivenciadas em nosso cotidiano… Ser polícia é ver a morte todos os dias, e viver como se fosse o último momento; é esquecer as próprias dores para sanar a dor do outro, da outra que apela ao telefone no meio da noite por ter sido roubado, ameaçando, humilhado, agredido… É isso… São pedidos de socorro a alguém a quem a população acredita que vai atender, independentemente de local, clima ou circunstância… Em termos figurativos é como se fôssemos o bálsamo para feridas latentes, doloridas e necessário a processos de cicatrização.

Atualmente, componho a equipe do Projeto Ronda Maria da Penha. O Projeto atua na fiscalização das Medidas Protetivas de Urgência, contidas na Lei 11.340/06. Fazemos visitas periódicas às vítimas numa rotina de até 3 ou 4 vezes ao dia, dependendo do grau de vulnerabilidade da vítima. A princípio, tive que me despir de todo tipo de sentimento ruim… Tipo preconceito. Aprendi nas vivências diárias a importância de ser gentil, amável, de respeitar e entender as limitações de cada mulher vitimizada… Às vezes, dependendo da circunstância, aparento ser dura, mas me policio no momento de indagá-las para não as ferir ainda mais, principalmente evito sondar o porquê da aceitação e sujeição a uma vida de torturas e enclausuramentos vivenciada diuturnamente. Entender suas fragilidades, medos, escravidões interiores é fundamental nesse trabalho de proteção e ao mesmo tempo de libertação de algemas invisíveis. Respaldada no meu conturbado histórico feminino, tento me colocar no lugar de cada uma e ao mesmo tempo mostrar a elas que nosso futuro depende de nossas escolhas. Insisto que elas precisam se amar antes de amar o outro. Enfim, trago meus exemplos de motivação e determinação usando metodologias compatíveis a princípios, valores e à natureza de cada uma, no sentido de provocá-las a mudanças libertárias. Para efeito de resultados positivos, necessariamente, a condução do diálogo requer respeito a crenças, à fase da vida, ideais de beleza e interesse por novas relações amorosas… Insisto também na busca pelo conhecimento – componente mais importante na construção de nossa autonomia e liberdade.

Vir-a-Ser

A conquista da plenitude exige desafios… Em se tratando de Cristal o horizonte é teimoso vir-a-ser…

Minha história não se encerrará numa farda militar. Tenho convicção de que vou além… Cultivo sonhos e desafios no sentido de meu aprimoramento humano e profissional… O mundo precisa de mim e, em especial, as mulheres. Apesar de todo um histórico de submissão, agressões vivenciadas nas relações mulher/homem ainda penso encontrar um companheiro amigo, sensível, afetuoso com objetivos e ideais semelhantes aos meus para compartilhar minha vida, meus sentimentos… Esse amor autêntico que em mim lateja, e até hoje não correspondido nos relacionamentos anteriores.

No campo intelectual, já vislumbro mestrado ou doutorado em segurança pública visando sempre o lado das mulheres… Não apenas as que necessitam, também contribuir numa formação humanizada dos serviços entre as policiais femininas, no sentido da não sujeição a superiores hierárquicos e sem medo a possíveis punições. Considero o curso de Direito um instrumento para nosso empoderamento. Pretendo passar em outro concurso ou me tornar oficial PM/AM – perspectiva para ter voz, e construir caminhos em direção a mudanças no regime interno da polícia, muitas vezes amordaçante, escravizador. Tal modelo nos torna seres humanos desumanizados, desprovidos de sentimentos… Uma outra questão é a vulnerabilidade a que enfrentamos como policiais. A sociedade em geral endureceu os corações, tornou-se agressiva. Literalmente convivemos num fogo cruzado entre a vida e a morte. Seres humanos tornaram-se frios – matam, roubam, estupram, prostituem, destroem as próprias vidas no tráfico de drogas, além de viciarem vulneráveis, destroem famílias… Nesse enfrentamento, já perdemos entes queridos. Um trabalho humanizado no próprio sistema é capaz de sensibilizar a sociedade e mostrar que dentro da farda policial há um ser humano que tem família – pai, mãe, filhos… E há sempre alguém ansioso, em algum lugar, esperando retorno, de preferência, com vida…

Entre outros desafios: assumir simultaneamente as funções – mãe e pai o que não é tão fácil… Converso abertamente com minhas filhas; digo a elas que há tempo para tudo. O importante é traçar metas que nos elevem enquanto seres humanos, enquanto mulheres… Ter um objetivo geral e, a cada dia, vencendo um específico. Digo-lhes também que na vida há momentos de desânimo, frieza, dor, mas existe também alegria, amor, carinho… Que as adversidades são necessárias para nos lapidar, nos fortalecer para que no futuro exalemos um bom perfume, que possamos brilhar e atrair coisas boas… Que busquemos a Deus antes de tudo… O resto vem paulatinamente… Ensino-lhes o que são valores, como cultivá-los e como nos tornar seres humanos melhores.

As mulheres também são meu alvo nesse desafio por superação a todo tipo de humilhações… Que Deus seja prioridade em nossas vidas e que perseveremos na conquista da liberdade. Hoje, coloco meu trabalho a serviço desse compromisso. As mulheres do meu município, hoje, têm uma referência de acolhimento, escuta e companheirismo. O que enfrentei na vida, os momentos difíceis foram aprendizados para compartilhar com quem precisa… O importante é olhar para frente e seguir; acreditar, arriscar-se… Sem riscos não há conquistas. Apesar de todas as atrocidades, de todos os problemas que nos afetam diariamente, priorizemos nossos sonhos por dignidade, por qualidade de vida. Precisamos entender que nada vem fácil e nada acontece por acaso. Arbitrariedades são testes de resistência, de fortalecimento no processo de lapidação. Só quem experimentou algemas sabe o valor da liberdade. E reafirmo a todas: se eu consegui, todas conseguirão. Nosso empoderamento vem a partir de determinação, coragem e ousadia; vem do enfrentamento a prisões de ordens diversas: físicas, espirituais, emocionais. Minha vida é meu testemunho. Por fim, cada degrau conquistado nos sirva de instigação na ampliação da solidariedade entre as que sonham com libertação de todo tipo de encarceramento.

Somos Nós…

Somos Nós em um mesmo novelo. Ambiguidade fraterna configurada em matizes, perfis, funções, ritmos e movimentos universalmente diversos… Nós – coletivização do eu; singular pluralização de mim… Célula mãe, conjugação de Nós e nós: embaraçadas/embaraçados; entrelaçadas/entrelaçados harmonicamente ou não… Outras vezes ainda perdidas/perdidos em conflitantes tessituras… Entre Nós e tantos nós aconchega-se o ser Mulher e sua altiva complexidade: auge da transgressão ao poder patriarcal dominante, escravizador… Na sequência, esvaem-se limites, desfazem-se algemas… A vida entoa acordes de liberdade… Faz do sonho o motor da história, movimento das possibilidades e de alternativas a partir de atos criativos[1]… Entre Nós, nós são transformados em abraços, colos, rodas de afetos… Por fim, nosso teçume (do mais rude e simples ao mais elaborado) define-se em obra poética – Somos Nós…

CETAM – Centro de Educação Tecnológica do Amazonas

[1] Inédito viável – Dicionário Paulo Freire, 2^a edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2010

Com a publicação deste artigo, a colunista Fátima Guedes encerra a série do Projeto – Fêmeas Memórias: Trajetórias de Mulheres Violentadas sexualmente, presas da Justiça e ex-presidiárias no município de Parintins, no Amazonas. Em breve, ela publicará um livro sobre a trajetória.

Fêmeas Memórias Diamante (Foto: Floriano Lins)

Leia os outros nove artigos da série:

Fêmeas Memórias – Algemas silenciadas

Fêmeas Memórias – Álquia Esquenta o Debate

Fêmeas Memórias – Utopias de uma Borboleta

Fêmeas Memórias – Esperança Aprisionada

Fêmeas Memórias – Mensageira de Silêncios

Fêmeas Memórias – Sob o voo da Águia

Fêmeas Memórias – Estrela Cadente

Fêmeas Memórias – Mãe Esperança

Fêmeas Memórias – Coração de Leoa

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Guararema (SP). Foi fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, e atua como Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Fátima Guedes

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.