Povos Indígenas

STF cancela despejos da PF para evitar violência contra os índios Guarani Kaiowá

Por Amazônia Real Publicado em: 09/04/2018 às 19:20

A ministra Carmen Lúcia lembrou na decisão o “clima de extrema conflagração” decorrente do conflito fundiário no Mato Grosso do Sul. Na imagem a comunidade Tekoha Guapo’y Guasu (Foto: Tiago Miotto/Cimi)

Izabela Sanches, especial para a Amazônia Real

Campo Grande (MS) – Agentes da Polícia Federal, apoiados pela Polícia Militar e pelo Corpo de Bombeiros, já estavam prontos para iniciar, por volta das 6 horas (horário de Brasília) desta segunda-feira (09), a retirada de famílias Guarani Kaiowá de fazendas retomadas, chamadas de Tekohas (território tradicional) Jeroky Guasu e Guapo´y Guasu, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, quando foi comunicada à força policial a suspensão de duas reintegrações de posse em liminares concedidas pela ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela atendeu recurso impetrado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no fim de semana na Corte contra ações de dois fazendeiros, que têm propriedades sobrepostas ou nos limites da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1.

Nas decisões, a ministra Cármen Lúcia destacou que o contexto em que se discute a titularidade da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1 “parece demonstrar risco de acirramento dos ânimos das partes em conflito e consequente agravamento do quadro de violência na região, o que me conduz a reconhecer a plausibilidade do alegado risco à ordem e à segurança pública”.

“A comunidade está mais tranquila agora, está respirando um pouquinho. Fizemos uma reunião com o Aty Guasu (assembleia Guarani Kaiowá), para avaliar a nossa resistência”, declarou à agência Amazônia Real uma das lideranças Guarani Kaiowá, Norivaldo Mendes, de 41 anos.

As reintegrações de posse suspensas atendiam as duas ações: uma movida pelo fazendeiro Jose Odonel Vieira da Silva, que reclama a posse do Sítio Santa Helena, área retomada pelo povo Guarani Kaiowá em 15 de junho de 2016, reconhecida pelos índios como o Tekoha Jeroky Guasu (também chamado de Nhamoi Guavirarí); outra pela empresa Penteado Participações e Investimentos Ltda, responsável pela fazenda Santa Maria, área retomada pelos indígenas em 13 de fevereiro de 2017 e denominada por eles como Tekoha Guapo´y Guasu.

Segundo a Funai, o Sítio Santa Helena “está inserido na área identificada e delimitada pela Funai como de ocupação tradicional Guarani-Kaiowá pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I, publicado pela Presidência do órgão em 13 de maio de 2016“.

O clima de apreensão entre os indígenas Guarani Kaiowá aumentou desde o dia 16 de março, quando a Polícia Federal os notificou que cumpriria as duas ordens de despejos, sendo uma do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região – ação contra o Tekoha Jeroky Guasu – e outra da 1ª. Vara da Justiça Federal de Dourados (MS) – processo do Tekoha Guapo´y Guasu. Os índios passaram a fazer vigília e prometeram reunir 8 mil índios para enfrentar a força policial.

No sábado (07), conforme publicou a agência Amazônia Real, a Funai confirmou que as reintegrações seriam às 6h desta segunda-feira (09). A data consta na decisão da ministra Cármen Lúcia, na qual ela ressalva que a fundação pediu urgência para a concessão das liminares.

Em nota publicada em seu site, o Conselho Indígena Missionário (Cimi), que tem representantes em Caarapó, disse que mais de 200 policiais estavam a postos, nas bordas da reserva indígena Dourados Amambaipeguá 1 para retirar as famílias dos Guarani Kaiowá.

“O voo rasante de um helicóptero da PF provocou muita apreensão entre os indígenas, que acreditaram que o ataque das forças policiais já estava iniciando. Na mesma hora, ambulâncias e caminhões do Corpo de Bombeiros se aproximavam do local, acirrando o clima de tensão”, relatou o Cimi.

Segundo nota do STF, ao analisar os pedidos da Funai nas duas ações referentes aos Tekohas Jeroky Guasu e Guapo´y Guasu, a presidente do STF observou que, mesmo ainda não finalizado o processo de demarcação das terras indígenas, os estudos de identificação e delimitação já foram concluídos com a aprovação de relatório antropológico, inclusive com publicação no Diário Oficial da União (DOU). Na decisão, a ministra trata as retomadas de “ocupações” e “invasões de terra”.

Conforme o STF, nos dois casos de reintegrações de posse, a ministra Carmen Lúcia salientou que a Funai tem o dever de preservar os interesses dos indígenas e deve usar os meios possíveis para alcançar uma solução pacífica e evitar o emprego de violência contra os indígenas. Ela explicou que a questão jurídica examinada na região não é nova no STF e lembrou “do clima de extrema conflagração” decorrente do conflito fundiário em Mato Grosso do Sul, especialmente na região de Caarapó.

“As decisões que a reintegração de posse dos imóveis em questão, aliada ao estágio avançado do processo de identificação e delimitação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, cujo relatório de antropológico foi aprovado pelo presidente da Funai e publicado no Diário Oficial da União, pode se traduzir em elemento encorajador da resistência pelos indígenas, potencializando o clima de hostilidade e possibilitando o uso da força para o cumprimento da ordem judicial, do que poderiam redundar consequências socialmente graves e inaceitáveis”, afirmou a presidente do STF ao deferir medida liminar nas duas ações.

Procurada pela reportagem, a Polícia Federal em Dourados (MS) comunicou ainda na manhã desta segunda-feira que havia suspendido a ação após o deferimento do STF ao recurso da Funai.

Luta e vitória

Índios Guarani Kaiowá foram atacados por fazendeiros em 2016 (Foto: Ana Mendes/Amazônia Real)

Professor na aldeia Tei´y Kue, Eliel Benites disse que a decisão do STF é uma vitória, mas que as ameaças à comunidade ainda não chegaram ao fim. “É uma grande vitória para a comunidade indígena, mas também é uma parte de uma grande luta que os Guarani Kaiowá vêm enfrentando ao longo do tempo. Existem inúmeras possibilidades de reintegração de posse que vai ser decretada. O que os Guarani vivem hoje em Mato Grosso do Sul é a resistência a partir da sua tradicionalidade”, disse Benites à Amazônia Real.

Os Guarani Kaiowá possuem um histórico de resistência a violações de direitos e violência. Em 2016, o local foi palco do assassinato do agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza na fazenda Yvu. Os cinco acusados pelo crime estão soltos. Os indígenas relatam também ameaças e envenenamento das lavouras e mananciais pela pulverização de agrotóxicos através de aviões.

O antropólogo Diógenes Cariaga, que mora em Dourados e atua e desenvolve pesquisa entre os Guarani Kaiowá, diz que os conflitos na região são provocados pela morosidade do processo de demarcação de terras, além do loteamento feito pelo Estado das terras dos indígenas.

“Essa situação de tensão se deve à demora do Estado de reconhecer esse processo de identificação das terras indígenas. Já passou mais de uma década desde que a Funai assinou o TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] junto ao MPF, de 2007, e essa questão vem se arrastando e criando, a cada ano que passa, mais situações de violência absurda, como a gente viu em 2016 com o assassinato do Clodiodi. O que aconteceu no Mato Grosso do Sul é que o Estado considerou devolutas as terras no início do século 20 e privatizou”, disse o antropólogo.

Ameaça continua

Índios Guarani Kaiowá em frente ao Supremo Tribunal Federal em 2016 (Foto: Ana Mendes/Amazônia Real)

Apesar da decisão da ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, mais duas ações tramitam na Justiça Federal contra os índios Guarani Kaiowá. Uma é a ação (0000646-70.2013.4.03.6002) movido pelo fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalves, que questiona a retomada Pindo Roky na fazenda Santa Helena. Ele é réu confesso do assassinado a tiros de Denilson Barbosa Guarani-Kaiowá, de 15 anos, em 2013.

A outra é a ação (0003475-19.2016.4.03.6002) que pede a anulação do processo de demarcação da TI Dourados Amambaipeguá 1, onde vive uma população de sete mil indígenas Guarani-Kaiowá. Essa ação foi movida pelo fazendeiro Antônio Carlos Gimenez Bertipaglia. A Funai ingressou também com ações para suspender os dois processos, que ainda não foram julgados pela Justiça.

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Reportagem Noticiosa

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