A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

O Armagedom da Vale

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 07/02/2019 às 20:33

A Vale criou a versão mais impressionante do Armagedom, na sua versão contemporânea, da batalha final. Só que, no drama real produzido pela incúria da mineradora, o combate não é contra a iniquidade. A própria iniquidade é a autora da destruição derradeira, que tem por vítima inocentes.

Essa deve ter sido a reação dominante entre as pessoas que viram o vídeo que as emissoras de televisão exibiram cinco dias depois do acidente. Foi o registro do momento exato do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, às 12,28 horas do dia 25.

O vídeo tem apenas um minuto e 20 segundos de duração. As imagens foram gravadas por uma câmera colocada no alto de um guindaste, que operava sobre uma pilha de minério de ferro.

Vi e revi o vídeo, chocado, atônito, indignado. Nem os mais poderosos recursos de montagem eletrônica poderiam criar cena semelhante para um filme-catástrofe. A lama aparece um pouco distante do guindaste. Só se percebe que algo está se movimentando atrás de um trem, que também segue na mesma direção, por uma rota distinta, provavelmente levando minério em seus vagões.

Subitamente, a massa ciclópica e enfurecida se alteia e assume o protagonismo na cena. É uma massa de semitons do mais escuro, pela presença do minério, ao mais claro, devido à argila vermelha. Os dois materiais vão se integrando numa massa densa da cor de chocolate. Ela avança arrasadora sobre o pátio de operação.

A composição estaciona. Os pesados vagões são arrastados como se fossem de papel e não de aço. Logo somem. Dois motoristas, em um utilitário e um caminhão, tentam escapar, procurando uma brecha de fuga. Não encontram. A lama os cobre e eles desaparecem. Tudo desaparece. É o pior dos tsunamis, porque produzido pelo homem com componentes da natureza (água, solo e rocha), que geram um produto diabólico de devastação da natureza e dos próprios homens.

Ainda não se sabe a causa (ou causas) do rompimento da barragem e de eventual conexão entre o acidente e a imperícia, imprudência ou negligência dos que podem ter contribuído para o acontecimento. O vídeo, contudo, prova a culpa da Vale, com dolo eventual no crime de homicídio coletivo.
Em 2015, com o desastre de Mariana, a empresa aposentou uma das 13 estruturas ligadas à lavra de minério no complexo de Paraopeba. Foi a barragem 1, que acumulava 1,2 milhão de metros cúbicos de rejeitos. As demais estruturas continuaram em uso. E continuou serra abaixo o núcleo administrativo da empresa e toda vida ao seu redor.

Com essa atitude, a mineradora fez a sua opção pela produção, o lucro e os dividendos, colocando-os acima da vida humana. Quem comanda a poderosa empresa sabia disso. Se há autores nas estruturas inferiores da hierarquia da organização, eles devem ser investigados e se também culpados, punidos exemplarmente. Pessoal subordinado já está preso, mesmo sem culpa formada. Os maiores culpados, por esse mesmo critério, estão soltos – e assim deverão continuar.

Que paguem pelo Armagedom que produziram.

Ouvidos de minerador

Depois de quatro reuniões seguidas com as autoridades locais e moradores de um bairro de Brumadinho, a Vale continua a rejeitar suas reivindicações. Atingidos pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, no dia 25, com 150 mortos confirmados e 182 desaparecidos, eles querem um salário mínimo para cada morador do bairro, meio salário mínimo para cada adolescente local e um quarto de salário para cada criança. Esses valores seriam pagos mensalmente.

Em resposta, os representantes da empresa alegaram não ter informações suficientes sobre o número de famílias e pessoas atingidas para conceder esses recursos.

A resposta deixou os moradores exaltados. Eles passaram a exigir uma resposta imediata. As reuniões, iniciadas no dia 31 de janeiro, não resultaram ainda em qualquer providência por parte da empresa.

O bairro é um dos mais atingidos pelo acidente com a barragem, que destruiu quase 50 casas. A lama permanece no entorno do bairro. A população sustenta que os danos são mais amplos. Incluem nos cálculos o fato de terem sido demitidos ou sofrido queda na receita dos seus comércios.

Sem acordo, a questão irá para a 6ª vara da Fazenda Pública para negociar as demandas emergenciais do bairro. A negociação será extrajudicial. Com a negociação, os membros do judiciário esperam ter acesso a parte de um bilhão de reais da mineradora, bloqueados pela justiça para o pagamento de gastos emergenciais.

O desdobramento dessa negociação revela um ânimo muito diferente daquele com o qual a Vale reagiu de imediato ao desastre que provocou com sua anacrônica e perigosa barragem. É ultrajante e abusiva a desculpa que a empresa apresentou, da falta de informações sobre os beneficiários em potencial dos recursos.

Na origem das desgraças coletivas e individuais, deveria pagar de imediato enquanto providencia os cadastros. Suspenderia a concessões indevidas e lançaria a despesa nos custos da remissão dos seus pecados, literalmente mortais.

Os “Redescobridores”

Pouco tempo atrás, a Vale retomou uma gigantesca – e cara – campanha publicitária em todo país, sob o título “Redescobridores”. O mote dava continuidade à campanha anterior, “Descobridores”.

A nova série pretendia demonstrar que a mineradora avançara entre uma e outra campanha, redescobrindo as etapas do seu percurso para uma atividade sustentável economicamente, socialmente e ambientalmente. Projetava imagens dos seus funcionários, sempre satisfeitos e confiantes. A empresa garantia esse estado de espírito. Seria um privilégio trabalhar na Vale. “A” empresa.

Tudo isso desmoronou com a repetição, em Brumadinho, agravada, do desastre de Mariana, três anos antes. Novamente tendo por palco o Estado de Minas Gerais, onde a antiga estatal começou a sua carreira, 77 anos atrás, por iniciativa de Getúlio Vargas, ainda ditador e estadista.

A rica propaganda se desvaneceu no ar. A palavra correta veio dos versos do mineiro Carlos Drummond de Andrade, que lamentou a desfiguração da sua Itabira, a primeira vítima de uma lavra mineira predatória, que subsiste até hoje. desafiando as lições do tempo e renovando o claro enigma decifrado pelo poeta de versos luminosos.

A Vale, astutamente, faz propaganda como se fosse uma empresa de varejo e não uma mineradora com dimensão mundial, que vende mais para fora, para um grupo reduzido de compradores, através de contratos de longo prazo, um produto que se mede em milhões de toneladas. Por que gasta tanto em publicidade sem objetivo comercial?

Claro: para comprar parceria e simpatia, fazer amigos e influenciar pessoas. Parte da mídia retribuiu à gentileza com noticiário vago e restrito, se credenciando para continuar na folha de pagamento da companhia ou até conseguindo dela um compromisso maior, no caso de veículos de comunicação de propriedade de políticos, como, no Pará, é o caso do senador Jader Barbalho e do seu filho, o governador Helder Barbalho.

Mas a maioria da mídia teve que se submeter às imposições da realidade, principalmente depois das imagens brutais das mortes causadas pelo rompimento da barragem, que retinha 1,2 milhão de metros cúbicos de rejeitos da extração de minério de ferro.

Agora, a Vale vai ter que provar de verdade que reúne os “redescobridores”. Com atos concretos e não com propaganda.

A foto que abre este artigo, mostra carro arrastado pela lama tóxica no rio Paraopeba, em Brumadinho. (Foto: Fernanda Ligabue/Greenpeace)

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.