Sobre as Cunhantãs da Ilha de Parintins

FÁTIMA GUEDES Não a encontrava há mais de 20 anos. Leuda envelhecera bastante: os cabelos mesclados de brancos, a pele desidratada, maçãs caídas, dava-lhe a aparência de uma septuagenária, quando, na verdade, não teria mais que 60. Nosso encontro foi […]

Por Amazônia Real Publicado em: 08/08/2014 às 09:27

FÁTIMA GUEDES

Não a encontrava há mais de 20 anos. Leuda envelhecera bastante: os cabelos mesclados de brancos, a pele desidratada, maçãs caídas, dava-lhe a aparência de uma septuagenária, quando, na verdade, não teria mais que 60.

Nosso encontro foi caloroso, apesar de melancólico. Lembranças da infância em Vila Amazônia (comunidade a 20min de distância de viagem de barco da sede de Parintins), os folguedos no casarão de nossos padrinhos Neuza e J.G. Araújo, os “pula n’água” na caudalosa e mítica “Boca do Paraná do Ramos”, as sabatinas da Professora Iracema Ferreira, enfim, um acervo mantido intacto, apesar das invasões e agressividades de todo o processo colonialista dos últimos 60 anos.

Entre outras lembranças, perguntei por Leninha, a filha parida em plena adolescência. Encarou-me silenciosa… Duas grossas lágrimas foram amparadas pelo dorso da mão…

– Mana, faz mais de 04 anos sem notícia. Desde os 15 foi pra Manaus trabalhar como babá e nunca mais… Soube que ela tinha ido pra fora, não sei pra onde… Daí, pronto…

E continuou:

– Sabe, mana, de gitinha já era ladina. Com 06 anos, foi boneca viva. Desfilava que era uma beleza! Daí, foi pra cidade estudar na casa da madrinha… Foi como filha. Chegou a sair nos bois mirins… Queria ser cunhã-poranga (moça mais bonita do Boi bumbá). Onde já!… Sem ter o que um periquito roa!… De lá que foi pra Manaus… (soluça). É isso!… Perdi minha cunhantã!

A perplexidade me permitira apenas ouvir a companheira de tantas cumplicidades lúdicas… As limitações, a impotência, bloquearam o diálogo… Admiti quão frágil eram meu consolo e o que chamamos de solidariedade… Qualquer ação de nossa parte no sentido do retorno de Leninha era uma possibilidade tardia. Não há contatos. É provável que o caso, como tantos, se dê por encerrado.

É bem verdade que nossas limitações e fragilidades diante da monstruosa realidade, por convicção e comprometimento, nos colocam numa posição semelhante a de João Batista, o Profeta – indignar-se e clamar contra a insensibilidade e o descompromisso dos desertos instalados no seio do Estado Dominante.

Outras tantas Leudas, certamente, envelhecem precocemente com histórias semelhantes… Leninhas jamais serão cunhã-poranga…

Nota:

Leuda e Leninha são nomes fictícios de personagens reais.

Gitinha siginifica pequena menina

Cunhã-poranga signifca mulher bela da tribo

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

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Amazônia Real

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