Sobre a pajelança Sateré-Mawé e Hixkaryana

RENAN ALBUQUERQUE A pajelança é um dos atos mais humanos que a indianidade amazônica tem conseguido manter incorporada e legar ao universo ocidental amazônico, paupérrimo e até intelectualmente controverso nesse aspecto. Na cidade, não existe em variados sentidos a veia […]

Por Amazônia Real Publicado em: 22/06/2015 às 09:50

RENAN ALBUQUERQUE

A pajelança é um dos atos mais humanos que a indianidade amazônica tem conseguido manter incorporada e legar ao universo ocidental amazônico, paupérrimo e até intelectualmente controverso nesse aspecto. Na cidade, não existe em variados sentidos a veia transcendental pela qual poderia correr a naturalidade de aceitação de preceitos espirituais para a cura étnica de males extraterrenos.

Mas o modo de ser das coisas e das pessoas é visto de modo aprofundado por um líder espiritual indígena. A característica da pajelança por ele emanada provém de representações ensinadas durante a preparação para viver como mantenedor da conjuntura imaterial de aldeamentos. Entre Sateré-Mawé e Hixkaryana, povos da mesorregião do Baixo Amazonas, na fronteira do Estado do Amazonas com o Pará, elementos da natureza compartilham ambientes, espaços geográficos, clima, intempéries e tensões do habitat.

Tudo o que se pode sentir convive em um mesmo plano. O que está fora na Terra é aquilo que as divindades deixam que seja eclipsado ou escondido dos sentidos. E o que se escode ou eclipsa, nesse aspecto, são vestígios de tudo o que provoca a crise humana. Assim, se os xamãs são aquilo que seus deuses mitológicos permitem que eles possam ser, a potência para curar eventos extremos atrelados a doenças não se deposita em ambientes específicos de TIs e nem em qualquer rincão físico determinado do bioma Amazônia.

É indefinido e impessoal o poder de manifestação dos iniciados junto a seus pares. Porque muitas podem ser as visões induzidas que auxiliam no apontamento de sabedorias para lidar com enfermidades; variáveis são as identidades assumidas durante transes e enlevos; incontáveis são os estados intensivos em que a sabedoria para desfazer e fazer judiarias os domina. Tudo provém da interlocução que os xamãs conseguem manter com seus curadores e predadores espirituais.

De modo que simplesmente por existirem tal como são, os conhecimentos xamânicos armam confronto e se contrapõem ao estado parcimonioso de catatonia no qual alta parcela da sociedade urbana amazônica vive atualmente, mesmo sem se dar conta disso. Nas urbes pequenas e médias da Amazônia mimetizou-se o discurso da indiferença ao sistema como algo cativante e fortuito. Mas doar-se a alguém ou a alguma causa em busca de um bem comum, de um destino comum, é pressuposto que permeia a vida de líderes espirituais Sateré-Mawé e Hixkaryana.

Doar-se a alguém é também condição na preparação durante o percurso dos ensinamentos, onde se aprende a ser portador da dimensão do profundo e a dominar a viscosidade das palavras e dos atos. No Baixo Amazonas, o conjunto abstrato de fatores que explicam o universo indígena e os acontecimentos nele inseridos e entrecruzados sintetiza faceta incognoscível da natureza dos tradicionais. Sobretudo porque materialidade e espiritualidade não participam de planos diferentes, distantes. Situam-se na mesma esfera. Afetar aos deuses, afetar-se, afetar à comunidade, por meio de trabalhos de xamanismo, é mexer na teia por entre a qual a vida se interconecta.

O aspecto construtivo da saúde e da doença mental entre Sateré-Mawé e Hixkaryana depende dessa noção. Para estar são ou enfermo, no aspecto psicossociológico, impõe-se dependência a uma dinâmica pessoal, outra coletiva e uma terceira cosmológica, rizomática no melhor estilo deleuziano.

O ponto de vista dos pajés do Baixo Amazonas norteia a construção identitária. Para eles, parece existir um corpo unitário, um corpo conjuntural e um corpo cósmico perfazendo caminhos espaço-temporais paralelos e definindo a autoconsciência. A ideia a embasar a tríade se assenta na concepção da natureza das pessoas, fundamentalmente animada pela relação com animais, plantas e divindades. De modo que ser pajé Sateré-Mawé ou Hixkaryana é estar afetado pelas coisas, por contingências e pela terra onde se vive e se envolve com o mundo. Nessa conjuntura de entendimento, os povos ameríndios modelam a maneira de interpretar as formas de vida e se relacionar com elas.

* Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária

Reportagem Noticiosa

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