As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 1- A enchente na Amazônia

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 14/07/2021 às 17:01

O drama da enchente recorde na Amazônia e a seca no Sudeste brasileiro têm lições valiosas que precisam ser apreendidas [1]. Primeiramente, ambos esses eventos são consistentes com as previsões para mudanças climáticas associadas ao aquecimento global. Além da necessidade de evitar as grandes emissões que o desmatamento causa, assim ajudando na mitigação do aquecimento global, a floresta precisa ser mantida para manter diversos outros serviços ambientais, inclusive a reciclagem de água [2, 3].

O ano 2021 é de La Niña, que sempre leva a mais chuva na Amazônia. A “oscilação do sul” entre El Niño e La Niña está mais frequente desde 1976 ([4], p. 165), e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) atribui isto ao aquecimento global e projeta que esta tendência deve continuar ([5], p. 779). A variabilidade [6] e a severidade modificam os correntes de ar ao redor do planeta, o que provoca extremos de seca e de chuva em diferentes locais.

Para o efeito na Amazônia, este ano há o fator adicional de ter água quente no Oceano Atlântico e água fria no Pacífico (Figura 1). A água fria no Pacífico perto à costa do Peru é normal em anos de La Niña. A água quente no Atlântico é um fenômeno que está aumentando com frequência. Uma explicação é o efeito do aquecimento global [7] em fazer a corrente marinha em volta da Antártica se afastar da ponta da África, deixando água do Oceano Índico (onde a média da temperatura da água é mais quente do que no Atlântico Sul) vazar para o Atlântico (o “vazamento de Agulhas”, que sai da correnteza de Agulhas que desce de Moçambique até a ponta da África do Sul) [8-10].

A temperatura da superfície do Atlântico Sul tem aumentado continuamente desde os anos de 1960 [10]. A diferença de temperatura entre o Atlântico e o Pacífico aumenta o movimento de ar de leste para oeste (a circulação Walker), complementando o efeito que movimenta ar nesta direção devido à rotação da terra (que, diferente da circulação Walker, é constante de um ano para outro), levando ar com água que evaporou do Oceano para dentro da Amazônia, onde a água cai como chuva. A Figura 2 mostra os fluxos de vapor d’água, o comprimento das setas indicando a quantidade que está sendo transportada. As setas são pequenas no Atlântico perto da costa da África, e crescem na medida em que acumulam a água evaporada durante o trajeto até a Amazônia.

Os níveis máximos anuais da enchente em Manaus são positivamente correlacionados com a magnitude da diferença de temperatura entre a água quente do Atlântico e a água fria do Pacífico [11], reforçando a importância da circulação Walker nas enchentes. O Oceano Pacífico está atualmente na fase “negativa” da Oscilação Decadal do Pacífico (PDO), com a temperatura média ser mais fria da água perto a costa de Peru, assim aumentando a diferença com relação à temperatura do Atlântico e levando a mais chuva na Amazônia ocidental fortalecer a circulação Walker. Em 2021, a fase negativa intensificou, com valores mais negativos do Índice da Oscilação do Pacífico (POI) [12].

Figura 1. Anomalia (diferença da média) da temperatura da água da superfície do mar em Junho 2021. Fonte: CPTEC [13].

Figura 2. Transporte global da umidade – média 1999-2008 (proporcional ao comprimento das setas). Fonte: [14].

O desmatamento tem vários efeitos sobre a chuva e sobre o escoamento da água da paisagem, que dá origem às enchentes. Em uma pastagem limpa a água da chuva que escoa pela superfície e entre nos igarapés é até vinte vezes mais que em floresta intacta ao lado [15]. Isto é porque na floresta a água percola no solo, onde cerca da metade é chupada pelas raízes das árvores e devolvida ao ar através das folhas. O solo na floresta também retém parte da água não reciclada é a libera com uma demora (o fenômeno de histerese), assim minimizando as enchentes locais. Ao nível de bacia, o efeito pode ser visto na bacia do rio Tocantins, que já é bastante desmatada: há uma mudança documentada na vazão do rio, com maiores enchentes e com vazantes mais baixas [16].

Há pouco desmatamento nas bacias dos rios Solimões e Negro, que afetam a enchente em Manaus, e os efeitos de desmatamento ao nível local, tanto o efeito aumentativo sobre a percentagem de escoamento superficial quanto o efeito negativo da diminuição da evapotranspiração, ainda não seriam significantes. No entanto, simulações indicam que futuramente o efeito de desmatamento pode aumentar enchentes, sobretudo no rio Madeira [17]. Estudos de modelagem também mostram que o desmatamento na Amazônia oriental pode diminuir a precipitação na Amazônia ocidental devido à diminuição a reciclagem de água nas áreas desmatadas, mesmo sendo em locais distantes [18].

A tendência prevista por modelos climáticos globais indicam menos chuva na Amazônia oriental e mais chuva na Amazônia ocidental, e implicam maiores enchentes [19, 20]. Isto também é o padrão já observado nas últimas décadas [21, 22]. O ciclo hidrológico vem intensificando na Amazônia desde o início dos anos 1990, contribuindo ao aumento de chuva na Amazônia ocidental [23]. A vazão média dos rios na Amazônia ocidental está aumentando desde 1980 [24]. É claro que aumentos na precipitação média e na vazão dos rios na Amazônia ocidental implicam aumentar as inundações quando ocorrem.

As lições são claras. Enchentes maiores representa apenas uma das mudanças esperadas que fazem com que a Amazônia brasileira seja um dos lugares no mundo com impactos mais severos do aquecimento global que ocorreria sem grandes cortes nas emissões [25, 26]. O governo brasileiro precisa acordar para isto e mudar as suas posições tanto internamente como nas negociações internacionais, radicalmente reduzindo as emissões nacionais e assumindo um papel de liderança no combate ao efeito estufa globalmente [27].

A imagem que ilustra este artigo mostra a população nas ruas alagadas do centro histórico de Manaus em junho de 2021 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Notas

[1] Greenpeace Brasil. 2021. Cheias no Norte e seca no Centro-Sul: precisamos falar sobre os eventos climáticos extremos. Greenpeace Brasil, 19 de maio de 2021.

[2] Fearnside, P.M. 1997. Serviços ambientais como estratégia para o desenvolvimento sustentável na Amazônia rural. p. 314-344 In: C. Cavalcanti (ed.) Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. Editora Cortez, São Paulo, Brazil. 436 p.

[3] Fearnside, P.M.2008. Amazon forest maintenance as a source of environmental services. Anais da Academia Brasileira de Ciências 80(1): 101-114.

[4] Nicholls, N., G.V. Gruza, J. Jouzel, T.R. Karl, L.A. Ogallo, D.E. Parker et al. 1996. Observed climate variability and change. p. 133–192. In J.T. Houghton, L.G. Meira Filho, B.A. Callander, N. Harris, A. Kattenberg & K. Maskell (eds.), Climate Change 1995: The Science of Climate Change. Contribution of Working Group I to the Second Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido.

[5] Meehl, G.A., T.F. Stocker, W.D. Collins, P. Friedlingstein, A.T. Gaye, J.M. Gregory et al. 2007. Global climate projections. p. 747-845. In: S. Solomon, D. Qin, M. Manning, Z. Chen, M. Marquis, K.B. Averyt, M. Tignor & H.L. Miller (eds.). Climate change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido.

[6] Cai, W., G. Wang, B. Dewitte, L. Wu , A. Santoso, K. Takahashi, Y. Yang, A. Carréric & M.J. McPhaden. 2018. Increased variability of eastern Pacific El Niño under greenhouse warming. Nature 564: 201–206.

[7] Biastoch, A. & C.W. Boning. 2013. Anthropogenic impact on Agulhas leakage. Geophysical Research Letters 40: 1138–1143.

[8] Barichivich, J., E. Gloor, P. Peylin, R.J.W. Brienen, J. Schöngart, J.C. Espinoza & K.C. Pattnayak. 2018. Recent intensification of Amazon flooding extremes driven by strengthened Walker circulation. Science Advances 4: art. eaat8785.

[9] Biastoch, A., C.W. Boning, F.U. Schwarzkopf & J. Lutjeharms. 2009. Increase in Agulhas leakage due to poleward shift of Southern Hemisphere westerlies. Nature 462: 495–498.

[10] Lubbecke, J.F., J.V. Durgadoo & A. Biastoch. 2015. Contribution of increased Agulhas leakage to tropical Atlantic warming. Journal of Climate 28: 9697–9706.

[11] Chikamoto, Y., A. Timmermann, J.-J. Luo, T. Mochizuki, M. Kimoto, M. Watanabe, M. Ishii, S.-P. Xie & F.-F. Jin, 2015. Skilful multi-year predictions of tropical trans-basin climate variability. Nature Communications 6(1): art. 6869.

[12] Climate Action Company. 2021. Cool phase of the Pacific Decadal Oscillation. strengthens. Climate Action Company, 16 de abril de 2021.

[13] CPTEC (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos). 2021. Monitoramento global. CPTEC, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

[14] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.

[15] Fearnside, P.M. 1989. Ocupação Humana de Rondônia: Impactos, Limites e Planejamento. Relatórios de Pesquisa No. 5, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasília, DF, 76 p.

[16] Costa, M.H., A. Botta & J.A. Cardille. 2003. Effects of large-scale changes of land cover on the discharge of the Tocantins. Journal of Hydrology 283: 206-217.

[17] Guimberteau, M., P. Ciais, A. Ducharne, J.P. Boisier, A.P.D. Aguiar, H. Biemans, H. De Deurwaerder, D. Galbraith, B. Kruijt, F. Langerwisch, G. Poveda, A. Rammig, D.A. Rodriguez, G. Tejada, K. Thonicke, C. Von Randow, R.C.S. Von Randow, K. Zhang & H. Verbeeck. 2017. Impacts of future deforestation and climate change on the hydrology of the Amazon Basin: A multi-model analysis with a new set of land-cover change scenarios. Hydrology and Earth System Sciences 21(3): 1455-1475.

[18] Coe, M. T., M.H. Costa & B.S. Soares-Filho. 2009. The influence of historical and potential future deforestation on the stream flow of the Amazon River—Land surface processes and atmospheric feedbacks. Journal of Hydrology 369: 165–174.

[19] Guimberteau, M., J. Ronchail, J.C. Espinoza, M. Lengaigne, B. Sultan, J. Polcher, G. Drapeau, J-L. Guyot, A. Ducharne & P. Ciais. 2013. Future changes in precipitation and impacts on extreme streamflow over Amazonian sub-basins. Environmental Research Letters 8(1): art. 014035.

[20] Sorribas, M.V., R.C.D. Paiva, J.M. Melack, J.M. Bravo, C. Jones, L. Carvalho, E. Beighley, B. Forsberg & M.H. Costa. 2016. Projections of climate change effects on discharge and inundation in the Amazon basin. Climatic Change 136: 555-570.

[21] Espinoza, J.C., J. Ronchail, J.L. Guyot, G. Cochonneau, F. Naziano, W. Lavado, E. de Oliveira, R. Pombosa & P. Vauchel. 2009. Spatio-temporal rainfall variability in the Amazon basin countries (Brazil, Peru, Bolivia, Colombia, and Ecuador). International Journal of Climatology 29(11): 1574–1594.

[22] Marengo, J.A. & J.C. Espinoza. 2015. Extreme seasonal droughts and floods in Amazonia: Causes, trends and impacts. International Journal of Climatology 36: 1033–1050.

[23] Gloor, M., R.J.W. Brienen, D. Galbraith, T.R. Feldpausch, J. Schöngart, J.-L. Guyot, J.C. Espinoza, J. Lloyd & O.L. Phillips. 2013. Intensification of the Amazon hydrological cycle over the last two decades. Geophysical Research Letters 40(9): 1729-1733.

[24] Heerspink, B.P., A.D. Kendall, M.T. Coe & D.W. Hyndman. 2020. Trends in streamflow, evapotranspiration, and groundwater storage across the Amazon Basin linked to changing precipitation and land cover. Journal of Hydrology: Regional Studies 32: art. 100755.

[25] Fearnside, P.M. 2019. Amazônia e o aquecimento global. Amazônia Real.

[26] Sampaio, G., L.S. Borma, M. Cardoso, L.M. Alves, C. von Randow, D.A. Rodriguez, C.A. Nobre & F.F. Alexandre. 2018. Assessing the Possible Impacts of a 4 °C or Higher Warming in Amazonia. p. 201-218. In: C.A. Nobre, J.A. Marengo & W.R. Soares (eds.), Climate Change Risks in Brazil. Springer, Amsterdam, Países Baixos.

[27] Fearnside, P.M. 2019a. Bolsonaro e o Acordo de Paris. Amazônia Real.

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Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br