A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

Barcarena: lá atrás

Barcarena, a 50 quilômetros de Belém, abriga a maior fábrica de alumina (insumo industrial criado a partir do minério de bauxita) do mundo. Tem ainda a 8ª maior indústria de alumínio e a maior de caulim (uma argila especial) […]

Ocupação de moradores impactados em frente a sede da refinaria Hýdro Alunorte em Barcarena (Foto Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 23/07/2018 às 19:45

Barcarena, a 50 quilômetros de Belém, abriga a maior fábrica de alumina (insumo industrial criado a partir do minério de bauxita) do mundo. Tem ainda a 8ª maior indústria de alumínio e a maior de caulim (uma argila especial) do mundo. Possui o maior distrito industrial do Pará e é um dos principais portos de exportação do Brasil, especializado em minérios e seus derivados.

Seu PIB, de 5,5 bilhões de reais (para o qual a maior contribuição é da indústria), é o 5º maior do Estado e o 164º dentre os municípios brasileiros, superando o Produto Interno Bruto de Governador Valadares, em Minas Gerais, por exemplo. Embora tenha a 12ª população paraense (de 120 mil habitantes em mais de oito milhões), seu PIB per capita (a riqueza distribuída pela população) é o quarto, três vezes superior à média estadual.

No entanto, Barcarena tem o pior índice de saneamento do país. Ocupa o último lugar em coleta, tratamento e destinação final do lixo e do esgoto produzidos. O lixo é jogado ao ar livre, num lixão que é vizinho de povoações ribeirinhas. Apenas 10% do esgoto é coletado e despejado sem qualquer tratamento.

Entre os dois extremos, tudo é possível. As indústrias foram se instalando conforme as suas conveniências e as disponibilidades de áreas. Era inevitável a colisão com a população espalhada às proximidades e os numerosos cursos d’água, que convergem para um dos mais expressivos estuários do Brasil, numa área que drena a maior bacia fluvial do planeta, com 8% da sua água doce.

A tensão territorial pode ser percebida mesmo numa visita de poucas horas, como a que fez, em abril, uma comissão criada pela Casa Civil da Presidência da república, cujo relatório, de maio, foi divulgado nesta semana. Sua missão era fazer um levantamento sobre os efeitos de um acidente ocorrido dois meses antes e as medidas cabíveis para evitar sua repetição. Uma chuva intensa, entre os dias 16 e 17 de fevereiro, teria provocado o transbordamento de rejeitos químicos (principalmente soda cáustica) da lavagem de bauxita para a produção de alumina, contaminando as drenagens próximas.

Pelo menos 20 mil pessoas, classificadas como carentes, não puderam mais se servir da água dos poços que cavam na superfície para se abastecer. Desde então, toda água potável que consomem é fornecida pela Alunorte, a empresa acusada de ter causado o acidente. A poluição causada, que ocasionou doenças e incômodos, foi “de caráter profundo”, mas com tendência de retorno “às condições anteriores dias após os fatos”.

A intensidade do dano seria consequência do transbordamento do rejeito, afirmam os pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, órgão do Ministério da Saúde, que monitora as atividades na área desde 2009. Nesse ano, a Alunorte recebeu três multas do Ibama, no valor de R$ 17 milhões (R$ 28 milhões atualizados). O fato foi comprovado, mas a empresa não aceitou a autuação. Recorreu e até hoje não pagou a multa.

A Alunorte era controlada na época pela Companhia Vale do Rio Doce. A ex-estatal vendeu o controle acionário à Hydro, multinacional que tem participação majoritária do governo da Noruega. A Alunorte/Hydro admitiu ter cometido alguns erros no escoamento da água que utiliza e dos rejeitos, mas negou ter havido vazamento de lama vermelha. Prometeu investir R$ 100 milhões nos próximos 10 anos para corrigir esses erros, mas se recusa a assinar um Termo de Ajuste de Conduta com os ministérios públicos federal e estadual.

Foi novamente autuada e punida com a redução em 50% da sua produção, corte que afetou na mesma medida a extração de bauxita na jazida de Paragominas (uma das maiores do mundo), que lhe fornece a matéria prima, e a produção de alumínio metálico pela Albrás, que utiliza o insumo. A diminuição vai reduzir o lançamento de rejeito nos dois imensos depósitos, mas está prejudicando também a economia local e pode levar a demissões. O grupo é o maior empregador da região.

O “Evandro Chagas” promete para agosto um relatório completo do acidente, que comprovaria a sua conclusão preliminar de que houve vazamento de rejeito armazenado, circunstância agravada por procedimentos irregulares da empresa. A Hydro encomendou uma perícia internacional independente. Garante que a pesquisa atesta sua declaração de inocência, mas não divulgou o documento.

A comissão da Casa Civil repete o que já foi dito, diz obviedades, tem a marca da pressa e da superficialidade. Introduziu, porém, um componente novo: alertou para fatos, como o lixão, a desorganização espacial, a falta de cuidados com o meio ambiente e de atenção aos moradores, que constituem um contexto mais amplo do acidente, sem atribuí-lo a um único fator.

Os dois elementos, o da agressão repentina, decorrente de acidentes graves, aos quais a região está sempre sujeita, e o da agressão sistemática, sobretudo pela inépcia do poder público, no entanto, convivem há muito tempo em Barcarena, como realidades naturais e imutáveis.

Desde que o primeiro desses “grandes projetos” começou a operar, mais de 30 anos atrás, sua expansão avançou sobre o encolhimento dos direitos e garantias dos habitantes nativos. A proporção do aumento da produção da poluente Alunorte é um exemplo: de 1,1 milhão de toneladas ao ano, em duas décadas ela chegou a 6,4 milhões – de longe, é a primeira do ranking mundial. Barcarena é que ficou muito para trás.

Moradores em frente a refinaria Hýdro Alunorte, em Barcarena (Foto Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Veja outros artigos do autor.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.