Belém jogou pertences de venezuelanos Warao em caminhão de entulho

Por Vivianny Matos Publicado em: 25/12/2019 às 20:01

A cena chocou uma criança brasileira de cinco anos de idade. MPF faz nova recomendação no Pará para o acolhimento humanitário dos migrantes. Imagem dos indígenas na Praça Felipe Patroni no mês de outubro deste ano (Foto divulgação)

Belém (PA) – A Agência da Organizações das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) lançaram neste mês o Plano Regional de Resposta Humanitária para Refugiados e Migrantes da Venezuela (RMRP) nas Américas. O objetivo do plano operacional é responder às necessidades dos venezuelanos em deslocamento e garantir a inclusão social e econômica deles nas comunidades que os acolhem.

Segundo a ONU, desde o ano de 2015 até o momento mais 4,7 milhões de venezuelanos deixaram o país, devido à crise política, econômica e social. No Brasil, segundo o governo federal, 224 mil venezuelanos estão vivendo nas ruas ou em abrigos de cidades brasileiras, sendo que a maioria está dos estados de Roraima, Amazonas e Pará.

O acolhimento humanitário aos migrantes e refugiados venezuelanos ainda é o grande desafio dos governos e prefeituras, em especial com os indígenas Warao, que têm nos deslocamentos do Delta do Orinoco, lugar de origem dessa etnia na Venezuela, um aspecto marcante da cultura. No Pará, o Ministério Público Federal (MPF) enviou na sexta-feira (20) uma recomendação às autoridades do poder executivo para que sejam tomadas medidas de garantia do abrigamento e assistência humanitária a refugiados indígenas venezuelanos em todo o Pará. O governo Helder Barbalho (MDB) terá dez dias para informar ao MPF quais providências foram adotadas.

Em Belém as cenas de violações de direitos humanos contra os indígenas Warao se repetem quase todos os dias. Quem as ver não aceita informar o nome por medo de represálias das autoridades. À reportagem da Amazônia Real uma mulher, que não quis se identificar, disse que ela e o filho de 5 anos de idade presenciaram o momento em que funcionários da Prefeitura de Belém colocaram objetos pessoais de 120 indígenas Warao dentro de caminhões de entulhos. Segundo a mulher, a cena, que contraria os direitos humanos, ocorreu na Praça Felipe Patroni no mês de outubro, na semana do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores manifestações católica, considerada o Natal dos paraenses porque é um período de celebração à santa como o nascimento de Jesus.

“Eu vinha passando com o meu filho, quando eu avistei os caminhões da Sesan de entulho. Foi quando ele [o filho de cinco anos] viu todos os brinquedos das crianças, bicicletas, dentro do caminhão e me questionou: ‘mãe, mas por que estão colocando os brinquedos das crianças no lixo?’ E aí você via que tudo deles estava sendo jogado dentro do caminhão para transportar mesmo, sem cuidado nenhum. Deu muita tristeza, um sentimento de que aquilo para eles não tem sentido nenhum”, disse a mulher.

Pertences dos Warao sendo retirados, em outubro, por funcionários da Prefeitura de Belém
na Praça Felipe Patroni (Foto divulgação)

A Prefeitura de Belém foi procurada pela reportagem para explicar por que recolheu os pertences dos indígenas Warao em caminhões de entulho, mas o órgão não respondeu às perguntas enviadas por e-mail como solicitou a assessoria de imprensa.

Crianças vulneráveis

Desde o ano de 2014, famílias de indígenas Warao buscam refúgio nas cidades brasileiras da Amazônia para uma nova oportunidade de vida, pois fogem da fome, da falta de medicamentos e insegurança na Venezuela.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma), atualmente 548 indígenas da etnia estão vivendo na capital paraense. A situação dos refugiados indígenas é muito vulnerável na cidade, principalmente as crianças. A Sesma informou que seis crianças morreram, mas não disse em que datas ocorreram os óbitos.

“Duas foram relacionados ao sarampo e as demais a pneumonia grave, destacando que a desnutrição e a condição na qual as crianças chegam a Belém, as deixam mais vulneráveis às doenças infecciosas”, disse a Sesma, que também não informou em quais abrigos essas crianças morreram e quem são os pais delas.

Abrigo para os indígenas Warao em Belém (Foto divulgação MPF)

A reportagem da Amazônia Real visitou os abrigos do Núcleo de Atendimento ao Migrante e Refugiado (NAMR) da Fundação Papa João XXIII (Funpapa), instituição coordenada pela Prefeitura de Belém, que fica na Avenida João Paulo II, no bairro do Marco. O lugar está lotado e insalubre. Um outro abrigo está instalado no antigo Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), no bairro da Terra Firme, na Região Metropolitana de Belém. Embora tivesse um número menor de imigrantes acolhidos, tinha até um rato morto próximo a uma das barracas que abrigava uma família. Mas poucos querem falar sobre os problemas no acolhimento humanitário.

O indígena Píkua Gonçalves, de 30 anos – que aparenta ter mais idade fisicamente – chegou em Belém com a esposa e os três filhos há cerca de seis meses. Ele disse que conseguiu comprar sua passagem de ônibus interestadual para viajar à Região Sudeste do Brasil. “Vou para São Paulo para conseguir trabalho e ter uma vida melhor”, contou o refugiado à reportagem.

“Aqui é perigoso. Não tem controle de quem chega. Não tem comida para todos. Por isso vamos para as ruas, pedir alimentos”, afirmou Gonçalves, que está junto com a sua família no abrigo da João Paulo, de responsabilidade da Funpapa.

A Funpapa não comentou sobre a situação do abrigo, mas informou que, desde 2018, o município realiza o cadastramento de migrantes e refugiados no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e, posteriormente, realiza a inserção das famílias no Programa Bolsa Família. No total, segundo a instituição, foram atendidas 211 famílias cadastradas no CadÚnico. Dessas, 107 estão recebendo o programa social.

Segundo estudos antropológicos do Ministério Público Federal do Amazonas, os indígenas Warao formam a segunda maior população indígena da Venezuela. Suas comunidades estão concentradas, sobretudo, na região do Delta do Orinoco, além da Guiana e do Suriname. Esse povo tem se deslocado desde o período pré-colonial, pois poucos grupos Warao se submeteram ao regime das missões religiosas coloniais. No século 20, com a construção de grandes empreendimentos, os Warao intensificaram seu perfil migratório no país vizinho.

Sem comida

Indígenas Warao são recolhidos em ônibus do governo em Belém (Foto divulgação)

Instituições e movimentos sociais que, dentro de suas possibilidades financeiras e de voluntariado, tentam prestar assistência aos imigrantes, em especial aos indígenas venezuelanos Warao, denunciam as péssimas condições nos abrigos públicos de Belém.

Para Thyago Rezende, 39 anos, voluntário do projeto social Venezuelanos Belém, esses espaços públicos não possuem estrutura alguma de abrigo de acolhimento. “Alugaram casas, um terreno, amontoaram os Warao lá. Não é dada a quantidade de alimentação suficiente, não tem distribuição de quartos, não existe controle de entrada e saída de quem chega lá. Não tem base alguma de abrigamento. Esse fato fez se tornar o caos que está presente até hoje, com a morte de crianças, com a falta de qualidade de vida”, disse o voluntário.

Segundo Rezende, o projeto Venezuelanos Belém solicitou audiências e fez cobranças de melhoria de acolhimento humanitário ao Ministério Público Federal, à Defensoria Pública, ao Ministério Público da União, entre outros órgãos, “porém, a situação permanece a mesma”, diz o voluntário.

A Sesma disse à Amazônia Real que, no mês de setembro, a equipe do Consultório na Rua iniciou um inquérito para levantar casos de tuberculose entre os venezuelanos nos locais considerados sintomáticos com a realização da Testagem de Baar (exame de baciloscopia) em abrigos municipais e estaduais, além das pessoas em situação de rua. “Foram notificados quatro casos da doença em adultos, sendo três importados e um autóctone (originado no município). Todos estão em tratamento”, disse a Secretaria.

Este ano, as Defensorias Públicas da União e do Pará, assim como o Ministério Público Federal, já tinham ingressado com uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o governo estadual, a Prefeitura de Belém e a Fundação Papa João XXIII (Funpapa). Um acordo entre as partes foi realizado.

O Ministério Público Federal divulgou um vídeo em novembro que mostra a negligência com a ação humanitária em um abrigo de Belém. Na recomendação ao governo do estado, o órgão recomendou que seja garantido o financiamento federal por meio do Ministério da Cidadania ou qualquer outra pasta, enquanto houver demanda de migrantes e refugiados em qualquer dos municípios do estado do Pará, para fazer frente às despesas relativas a abrigamento (alimentação, contratação de equipes, estrutura física dos espaços de acolhimento, etc.) e resposta humanitária.

Em entrevista à Amazônia Real, o procurador da República Felipe de Moura Palha e Silva disse que o Ministério Público Federal ingressou com um pedido de execução do acordo homologado na Justiça Federal para obrigar o Município de Belém e o Governo do Pará a abrigarem dignamente os refugiados venezuelanos. O órgão fez, segundo o procurador, uma vistoria que gerou um relatório, inclusive, com imagens em vídeo.

“O MPF se opõe a qualquer atitude que possa violar direitos dos migrantes/refugiados e está desde 2017, quando iniciou o fluxo migratório em Belém, atuando judicialmente e extrajudicialmente para cobrar das autoridades responsáveis do município, do estado e da união, atitudes concretas para amenizar o sofrimento dessa população indígena que chega à capital paraense em situação precária e indigna, exigindo-se uma resposta eficiente de atenção humanitária pelo poder público, fato que não tem acontecido de maneira satisfatória em Belém do Pará”, afirma Palha e Silva.

O que dizem as autoridades?

Warao em praça de Belém (Foto MPF)

A Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma) falou sobre as ações de prevenção das doenças e vacinação contra sarampo, caxumba, rubéola, febre amarela, gripe e hepatite B. “As crianças seguem calendário vacinal recomendado nas unidades de saúde e são acompanhadas pela equipe do Consultório na Rua. Também são tomadas todas as medidas de controle para doenças, inclusive com atendimentos técnicos e encaminhamento à rede de saúde. Os funcionários da Sesma também recebem orientações, assim como as vacinas que também são disponíveis aos servidores”, disse a Sesma.

Também procurada, a Secretaria Municipal de Educação (Semec), por meio da Diretoria de Educação (Died) e da Coordenação de Educação Indígena (Coedi), informou que desenvolve, desde outubro de 2018, o atendimento educacional especializado às crianças refugiadas indígenas, nos ensinos da Educação Infantil e Fundamento nos seguintes abrigos: Domingos Zahluth, Provisório da João Paulo II e na Casa de Autogestão Monitorada do Município. Esses pontos de acolhimento atendem cerca de 80 crianças com idades de 6 meses a 12 anos.

“A rede municipal disponibiliza, também, materiais didáticos (livros, cadernos, lápis, borrachas, uniformes, etc.), transporte escolar, mobiliário, atividades extraclasse em espaços culturais, participações em projetos educativos, como a semana do bebê, desfile escolar e feira cultural”, informou a Semec.

A Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda (Seaster) disse, por meio de nota, que não foi informada oficialmente sobre as mortes das crianças venezuelanas nos abrigos gerenciados pela Funpapa.

“Enquanto órgão estadual de assistência social temos a competência de fiscalizar e monitorar a política de abrigamento, e por este motivo estivemos solicitando o monitoramento à todas as unidades da Fundação, entretanto durante o processo e por ato unilateral da Funpapa, esta ação foi suspensa, fato com que nós solicitássemos por vários meios a retomada deste monitoramento, seja por e-mail ou por ofício e até o dado momento não tivemos retorno”, afirmou a Secretaria.

A Seaster destacou que oferece acolhimento aos migrantes Warao através da Casa de Passagem Estadual Domingos Zahluth em duas unidades: Chaco e Cametá. Atualmente, 103 indígenas da etnia são atendidos em Belém.

“O acolhimento prevê ambiente físico adequado à moradia, alimentação acompanhada por nutricionista, oferta de serviços e equipamentos públicos, viabilidade de acesso e mobilidade pública, condições de repouso dos acolhidos, espaço de estar e convívio, guarda de pertences, lavagem e secagem de roupas, banho e higiene pessoal, vestuário e pertences. Além de uma rede de serviços públicos integrada, para garantia de atendimento das diversas demandas”, comunicou a Secretaria.

Chegar ao Sul do Brasil

Abrigo em Belém que foi vistoriado pelo Ministério Público Federal (Foto: MPF)

A ONU estima que 4,6 milhões de venezuelanos deixaram o país de origem após a grave crise econômica e política. Para o ano de 2020 estima-se que esse número de migrantes chegue a 6,5 milhões de pessoas. No Brasil, muitos dos venezuelanos já se deslocaram de Roraima para cidades do Nordeste, Sudeste e Sul do país.

Essa é a situação de Carlos Xavier, 28 anos. Ele é venezuelano não indígena e quer partir para o estado de Santa Catarina. Xavier diz que chegou ao Brasil pelo estado de Roraima com a esposa e a filha, em abril de 2018, em busca de melhorias nas áreas da educação, saúde, trabalho e segurança. Ao três foram acolhidos pelo Movimento Religioso Missão Belém, no município Benevides – que fica na região metropolitana da capital.

“A Venezuela, como todos sabem, está passando por uma crise muito forte nas questões política, econômica e social. Então, eu e minha esposa decidimos vir para o Brasil, na condição de refugiados. Há uma grande quantidade de venezuelanos que estão fugindo dessa crise. Pelo fato do meu país ser muito rico em petróleo, mineração… têm muitos conflitos”, explicou Xavier.

O refugiado contou que, ao chegar no Brasil, foi roubado, perdendo toda a documentação da família. Ficou na rua, mas foi acolhido pelo movimento voluntário. “Na Missão de Belém, trabalho no escritório, com as papeladas. Estou há seis meses e aqui estou tendo uma experiência nova em ajudar os irmãos, descobrindo uma nova experiência no âmbito espiritual”, disse.

Carlos Xavier revelou seus desejos para o novo ano que se aproxima, entre eles, o de reencontrar a família no Brasil. “A gente tem esperanças de que tudo melhore e que essa crise política possa acabar em algum momento. Não é fácil se afastar dos seus irmãos, pai, mãe, de toda a família”, enfatiza. “Estamos lutando, estamos nas ruas, estamos trabalhando, buscando uma vida melhor. Em 2020, meu desejo é viajar para Santa Catarina para ficar perto da minha filha e da esposa, que já conseguiu um trabalho por lá”. (Colaborou Kátia Brasil)

Apoie o jornalismo independente da Amazônia Real

Para garantir a defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, a agência não recebe recursos públicos, não recebe recursos de pessoas físicas ou jurídicas envolvidas com crime ambiental, trabalho escravo, violação dos direitos humanos e violência contra a mulher. É uma questão de coerência. Por isso, é muito importante as doações das leitoras e dos leitores para produzirmos mais reportagens sobre a realidade da Amazônia. Agradecemos o apoio de todas e todos.

Os textos, fotografias e vídeos produzidos pela equipe da agência Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia, em livros didáticos e de literatura com o crédito do autor e da agência Amazônia Real. Fotografias cedidas ou produzidas por outros veículos e organizações não atendem a essa licença.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Vivianny Matos

É paraense, filha das periferias belenenses. Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Também concluiu um MBA em Gestão Estratégica de Marketing e Comunicação Digital. Atuou como assessora de comunicação no terceiro setor na Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e da UNIPOP (Instituto Universidade Popular), entre os anos de 2015 a 2020, no Estado do Pará. Faz reportagens que abordam diversas temáticas indígenas.