Um vírus e duas guerras

Com a flexibilização, mulheres voltam a denunciar agressores no Tocantins

Estado registrou quatro casos de feminicídios de janeiro a março, mas não houve crimes de maio a agosto. No entanto, oito homicídios foram registrados na pandemia (Ilustração Deborah Erê) Era uma quarta-feira à noite, do mês de junho de 2020, […]

Um vírus, duas guerras (Ilustração: Déborah Erê)

Por Maria Fernanda Ribeiro Publicado em: 08/10/2020 às 08:08

Estado registrou quatro casos de feminicídios de janeiro a março, mas não houve crimes de maio a agosto. No entanto, oito homicídios foram registrados na pandemia (Ilustração Deborah Erê)

Era uma quarta-feira à noite, do mês de junho de 2020, quando a cabeleireira Vanessa (nome fictício), 33 anos, e os dois filhos pequenos foram até uma praça pública em Natividade, cidade de 10 mil habitantes no interior do Tocantins, para comer espetinhos. A ideia era jantar e voltar para casa, mas o passeio foi logo interrompido pela presença do ex-marido de Vanessa e pai das crianças, que saltou do carro munido de um facão e sem falar nada começou a desferir golpes na cabeça, barriga e mão da ex-mulher. Ele foi contido pelas pessoas que estavam na praça, mas conseguiu fugir. Três dias depois foi encontrado e preso pela tentativa de feminicídio.

Vanessa sobreviveu aos ferimentos, mas teve fratura exposta no braço, quase teve a mão decepada – membro fundamental para o exercício da profissão – e precisou ficar dias internada até se recuperar. Por pouco não se tornou mais um número nas estatísticas do Estado, que registrou este ano quatro feminicídios entre janeiro a agosto, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do Tocantins (SSP-TO). Foi o dobro de crimes em relação ao ano de 2019.

Infográfico Fernando Alvarus

Três mulheres que foram vítimas de feminicídios eram pardas e uma era branca, diz a SSP, que não recebeu informação sobre a escolaridade e profissão nos boletins de ocorrência, como a maioria da secretarias que enviaram dados para o segundo monitoramento da violência contra a mulher da série Um vírus e duas guerras.

O monitoramento da violência doméstica durante a pandemia nas cinco regiões do País é uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série Um vírus e duas guerras tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil.

O levantamento que centraliza os dados no período da pandemia do novo coronavírus analisou a situação em 19 estados e o Distrito Federal no segundo quadrimestre de 2020. Tocantins foi o estado que registrou menos crimes de feminicídios entre março a agosto, ficando com uma taxa de 0,13 feminicídios por 100 mil habitantes mulheres. De maio a agosto não foram registradas mortes.

Infográfico Fernando Alvarus

Apesar de setembro não estar nos números levantados pela Amazônia Real, já há ao menos dois feminicídios registrados no Estado. Os dois assassinatos foram cometidos por ex-companheiros que não aceitavam o término da relação.

Joadelson Rodrigues Albuquerque foi o delegado que cuidou das investigações do caso de Vanessa e também era o plantonista quando o autor do crime foi preso. “Lembro bem desse interrogatório e ele (o ex-marido) disse de forma descarada que não tinha intenção de matar, que a amava, que só queria dar um susto nela e o motivo foi por não aceitar o fim do relacionamento conjugal”, disse.

Segundo ele, Vanessa sofria violência havia cerca de dois anos, mas nunca registrou boletim de ocorrência, como a maioria das vítimas de feminicídio. Muitas vezes, apesar das ameaças, elas não acreditam que o agressor é capaz de matar.

Uma semana depois do crime que chocou Natividade, um homem ateou fogo na casa com a ex-mulher dentro, na mesma cidade. Ela também sobreviveu. De acordo com a SSP, de janeiro a maio 11 mulheres sofreram tentativas de feminicídio e quase morreram. No mesmo período de 2019 foram oito registros. Os dados de junho, julho e agosto não foram enviados pelo órgão.

A SSP informou que os dados de crimes de homicídios contra as mulheres subiu de oito para 13 de janeiro a agosto dos anos de 2019 e 2020 – um aumento de 62,5%. Oito mortes foram notificadas nos meses da pandemia: quatro em março, dois em maio e dois em junho. Neste ano, a secretaria registrou também 286 estupros contra mulheres, sendo 226 em meninas com até 14 anos.

Mulheres lésbicas estão vulneráveis

Ensaio fotográfico sobre a violência contra a mulher
(Foto de Nay Jinknss/Amazônia Real/2020)

M.S, 50, é restauradora, artesã, educadora, feminista, ativista e lésbica. Teme ser vítima da violência e do machismo que permeia o seu cotidiano há décadas. E durante a pandemia não foi diferente. Sem ter conseguido receber o benefício do auxílio emergencial e sem renda, não conseguiu manter o pagamento do aluguel e buscou ajuda em uma comunidade da igreja que frequenta. A ideia era trabalhar em troca de um lugar para se hospedar. Os comentários machistas e com mensagens racistas e preconceituosas não demoraram a chegar. A acolhida logo se transformou – mais uma vez – em medo.

Distante a 15 quilômetros da capital Palmas, em uma chácara localizada em uma mata, veio o medo em M.S. de não ter como e nem para onde fugir caso sofresse algum tipo de ataque por lesbofobia. O alerta estava aceso e ela precisava sair dali. “Algumas falas verbais detectei que tinha um teor de violência e comecei a sentir medo. Todas nós, mulheres lésbicas, sofremos e as com estereótipo masculinizado estão ainda mais vulneráveis.” Foi na Casa 8 de Março, em Palmas, que ela conseguiu o abrigo que precisava.

Fundada pela educadora social e pedagoga Bernadete da Silva Ferreira, há 20 anos, a Casa 8 de Março é uma organização feminista que não só acolhe mulheres vítimas de violência (desde que não estejam ameaçadas de morte) como também atua na luta pelos seus direitos.

De acordo com Bernadete, Tocantins apresenta deficiências em relação à construção de políticas públicas voltadas ao enfrentamento contra a mulher vítima de violência. Dos 139 municípios, ela afirma, apenas 12 deles têm uma delegacia especializada. Apenas uma delas, a da capital, oferece atendimento 24 horas. Outro exemplo da ineficácia é a unidade da Casa da Mulher Brasileira, que nunca saiu do papel.. Em 2015, o governo estadual anunciou a sua construção e garantia que o local reuniria todos os serviços necessários para atender a mulher vítima de violência.

“Não existe política estadual de enfrentamento à violência contra a mulher, o que existe é uma rede sucinta dos órgãos públicos de praxe. Está muito difícil até se discutir política. Muda governo, fecham coisas e não colocam nada no lugar”, disse Bernadete.

Uma dessas redes formada pelos órgãos públicos de praxe, conforme mencionou Bernadete, é o Núcleo de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes, Promoção da Saúde e Cultura da Paz (Nupav). Ele foi criado para fortalecer a rede de proteção à mulher e é formado por diversas instituições, como as delegacias especializadas, Ministério Público, Polícia Militar, Corpo de Bombeiro, secretarias estaduais da Saúde e da Cidadania e Justiça, Defensoria Pública, Universidade Federal do Tocantins, Ordem dos Advogados do Brasil e Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica.

Violência potencializada

Franciana de Fátima Cardoso Costa, defensora pública em Palmas e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem), afirma que os números de atendimentos realizados pela Defensoria de casos de violência doméstica crescem ano a ano, mesmo havendo sub-notificação. Isso porque os dados são gerados a partir de quatro defensorias especializadas, que estão espalhadas pelo estado: Araguaína, Palmas, Gurupi e Porto Nacional. Os outros municípios estão desassistidos.

O Nudem é uma das portas de entrada que a mulher vítima de violência pode procurar, seja em busca de assistência jurídica ou para pedir medidas de proteção. “Não tenho dúvidas em afirmar que o período de pandemia agravou a violência contra a mulher, inclusive em relação ao feminicídio, mas o sistema para identificar esses crimes em termos nacionais, é ruim”, afirma.

Franciana disse ainda que observou que o grau de violência durante os meses de pandemia se intensificou. “As ocorrências passaram a ficar mais graves e os crimes mais violentos. Estamos numa crescente e o estado tem uma origem patriarcal e machista muito forte e a mulher é vista como objeto. Temos uma necessidade muito grande de desconstruir essa cultura.”

Depois da queda, alta nos números

Além disso, ela conta, os atendimentos em março e abril caíram “estrondosamente”. Eles só voltaram a crescer depois de uma campanha promovida pela rede de proteção, indicando quais os canais para realizar as denúncias. Isso significa que muitas mulheres, no começo da pandemia, não buscaram ajuda e permaneceram trancadas em casa com seus agressores, não encontrando brechas para sair de casa e pedir ajuda.

De 2016 a 2019 foram realizados por essas defensorias 10.047 atendimentos relacionados à violência doméstica. Em 2016 foram 1.974 e em 2019 o número chegou a 3.014. Em 2020, somente foram enviados dados referentes ao período das três primeiras semanas do mês de julho, com 162 atendimentos relacionados à violência doméstica.

Equipe menor, espera maior

Célia Pereira da Mata é assistente social do Instituto Médico Legal de Palmas e integra a equipe psicossocial que faz atendimento às vítimas de violência. Os relatórios produzidos por essa equipe irão compor e subsidiar os inquéritos policiais. Com a pandemia houve a redução no quadro de profissionais e os atendimentos, que antes eram espontâneos, passaram a ser agendados, o que tem lotado as consultas do mês. A Amazônia Real entrevistou Célia em meados de setembro e ela afirmou que todos os dias até o fim do mês estavam cheios, mesmo com a equipe trabalhando aos finais de semana e feriados. São cerca de cinco atendimentos por dia. “O ideal seria o dobro disso”, afirma.

“Chega mulher com a cara quebrada, o nariz quebrado, sem enxergar do olho, cara roxa, toda machucada. Sempre tivemos uma demanda alta, mas no início da pandemia deu uma sumida, mas descobrimos que as violências por conta dos isolamentos aumentou, principalmente em relação à criança e ao adolescente. Tem aparecido mais crianças e adolescentes vítimas de violência. Antes era meio a meio, agora elas são maioria. Já chegou criança de 11 anos grávida nesse período da pandemia. A nossa realidade é muito triste”, disse Célia.

Rompimento do ciclo

Ensaio fotográfico sobre a violência contra a mulher
(Foto de Nay Jinknss/Amazônia Real/2020)

Fernanda Barreira Brito é psicóloga do Centro de Referência Flor de Lis, em Palmas. Ela afirma que não observou mudanças no padrão da violência durante a pandemia. “Essa mulher já vivenciava a violência por muito tempo, muitos anos, e agora se sentiu confortável em fazer a denúncia.” O Flor de Lis é uma das portas de entrada que a mulher no Tocantins tem para buscar ajuda até romper de fato com o ciclo da violência. E isso é feito suprindo necessidades de emprego e renda, de vaga em creches, problemas habitacionais, de atendimento na saúde.

“É um trabalho psicossocial para que a mulher compreenda que o que ela está vivendo é violência e que ela consiga romper com isso antes que se potencialize e possa terminar com feminicídio”, afirma Fernanda. A média é de seis meses de acompanhamento. No segundo quadrimestre deste ano surgiram 31 novos casos para acompanhamento. De janeiro a abril foram 32. Não foi possível comparar com os números de 2019, pois os dados só estão disponíveis a partir de julho.

Lorena Oyama, titular da primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Palmas, disse que nos primeiros meses da pandemia houve a subnotificação devido à dificuldade de acesso aos serviços, mas que de maio em diante, com a flexibilização, as denúncias voltaram a crescer. “Percebemos também que aqui em Palmas, desde 2017 não tinha feminicídio, mas no começo do ano tivemos três feminicídios tentados.”

Segundo ela, é raro que uma mulher procure a delegacia na primeira agressão e que a grande maioria das mulheres que morrem não tem registrado boletim de ocorrência. “Os ciclos de violência começa com a agressão verbal, depois vem o empurrão, o soco. Para qualquer pessoa que conheça uma mulher que é vítima, denuncie”, diz a delegada.

Leia a primeira reportagem da série Um vírus e duas guerras

Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid

Leia as reportagens do segundo monitoramento:

Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil

“É a gente que dá um basta na violência”, diz vítima do Amazonas

Acre é o que segundo estado com mais feminicídios

No Amapá, os dados de feminicídios só saem por meio da Lei de Acesso à Informação

Feminicídios podem estar com subnotificação em Rondônia

Em Roraima, governantes ignoram o tema da violência doméstica

Pará é líder em feminicídios durante o isolamento da pandemia

A agência Amazônia Real participa do segundo monitoramento Um vírus e duas guerras com a seguinte equipe: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor); Alícia Lobato (repórter), Bruna Mello (repórter), Roberta Brandão (repórter), Nicoly Ambrózio (repórter), Maria Fernanda Ribeiro (repórter); Deborah Erê (ilustrações); Nay Jinknss (ensaio fotográfico), Ana Mendes (produção do ensaio fotográfico), Fernando Alvarus (infográfico) e Alberto César Araújo (editor de fotografia)

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda Ribeiro é jornalista multimídia com foco nos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Documento e compartilho histórias em reportagens, crônicas e vídeos. Viajei dois anos pela floresta amazônica munida apenas da minha mochila, uma câmera e um gravador para conhecer quem são as pessoas que habitam a floresta. Rodei por oito estados (só faltou o Tocantins entre os que compõe a Amazônia Legal), de barco, de carro e de avião. Isso foi entre 2016 e 2018 e, de lá para cá, reportar as vidas, os conflitos e os movimentos que permeiam as histórias dessas pessoas é o meu caminhar como jornalista. ([email protected])