Das minhas espiritualidades na Amazônia

RENAN ALBUQUERQUE Foto acima é de Mirna Monte Verde (NEPAA/UFAM) Já há muito tempo me desvinculei de tradições judaico-cristãs em função das quais fui criado, em um bairro de periferia de Manaus, nos anos 1980 e 1990, para tentar aprender um […]

Por Amazônia Real Publicado em: 05/04/2016 às 17:35

RENAN ALBUQUERQUE

Foto acima é de Mirna Monte Verde (NEPAA/UFAM)

Já há muito tempo me desvinculei de tradições judaico-cristãs em função das quais fui criado, em um bairro de periferia de Manaus, nos anos 1980 e 1990, para tentar aprender um pouco mais acerca da imensa diversidade espiritual que tanto, acredito eu, agrega valor potencial e sentido não-linear às amazonidades. São espiritualidade diferentes, que se sentem no corpo, na alma e na teia fritjofcapriana da existência.

Hoje, penso que muito do que me levou a deixar minha vida razoavelmente confortável (emocional e financeiramente) em Manaus e realizar estudos em regiões de acesso restrito no bioma foi a ideia de que deve existir muito mais entre o céu, a terra e as coisas que animam a vida biológica e metafísica. Trata-se de uma ideia simples de verter, mas que pode agir positivamente no contexto da sociocultura de localidades inteiras – como se dá no âmbito da Amazônia.

Nesse longo distanciamento do catolicismo pueril da infância, conheci religiosidades em torno da ayuasca, dentro de três diferentes versões de ritos onde se toma a bebida; do mahikari e do budismo, nos quais a percepção sensorial e a intencionalidade do psicofísico é elevada; do candomblé e da umbanda, onde vi e vivi o perdão supremo; e experimentei kambô, rapé, caxiri, tarubá, cumaru e çapó, todos no contexto de indianidade e da amplitude das percepções anímicas do universo; mesmo sem iniciação, pratiquei a luva da Tucandeira depois de mastigar formiga e beber chá de raiz de mariri; também inalei paricá, mastiguei folhas de epadu, de tabaco nativo e fumei dirijo no fim da tarde em beiras de rios. Em certo momento, minha mente parecia um laboratório de cores e sons.

Não sei se por simples anarquismo de temperamento ou pela objetiva raiva que nutro atualmente pela força destruidora do Estado na Amazônia, gostei mais de saborear as concepções perspectivistas e anímicas das religiosidades dos povos do bioma do que de decorar passagens bíblicas em ambientes sacros de cunho europeu. Tratou-se de uma escolha, concernente à prática da ancestralidade dos povos dos quais descendo, os indígenas. Portanto, se pude pensar hoje em espiritualidades, foi necessário que o fizesse com a imensa liberdade para se experienciar tudo o que fosse possível e permitido em situações controladas e de cunho tradicional.

Um grande ensinamento referente a essas práticas diz respeito à espiritualidade intrínseca contida nelas – seja indígena ou cabocla, ou ainda europeia ou asiática: todas instrumentalizam situações para que pessoas sejam compreendidas a partir de estruturações simbólicas e subjetivas. São modelos sagrados de identidade, marcados por caráter pedagógico e doutrinador, identificados por conhecimentos obtidos segundo atividades de cura, benzimento, adivinhação ou premonição, definidas por comunicações intermodais e construídas segundo visões cosmológicas.

Todavia, enquanto prática, as espiritualidades amazônicas, creio eu, estabelecem-se muito mais como meios para se expandir a atenção, a percepção, a cognição e a consciência no transcorrer de ligações extraterrenas com o universo do que outras, visando-se dispor de dados com significado amplo e concernente tanto a coisas do mundo quanto de referências fora dele. São práticas sublimes, de vida e de morte. Porquanto, na Amazônia, para além das materialidades, há as imaterialidades. E a partir destas também nos definimos.

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Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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