Povos Indígenas

Educação indígena: inclusão requer valorização dos povos da Amazônia nas universidades

Por Jackeline Lima Publicado em: 09/12/2019 às 15:53

A professora Ivani Faria diz que é necessário criar cursos específicos nas instituições sem a visão colonial e aceitando as diferenças (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Há quase 30 anos, a educação para os povos indígenas brasileiros esteve submetida à imposição da colonização ocidental europeia, desvalorizando o conhecimento, a língua e as especificidades do conhecimento tradicional. No ano de 1990 foi garantida a implantação das escolas de ensino bilíngue, com processos próprios de aprendizagem indígena, assegurados pela Constituição Federal de 1988.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) começou a realizar convênios com as instituições públicas para viabilizar o que estava proposto na Constituição, e o acesso à universidade foi ampliado com a Convenção n° 169 e a Lei de Cotas para o Ensino Superior (n° 12.711 de 2012).

No âmbito do governo federal, outros benefícios conquistados foram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), para universidades públicas, e Programa Universidade para Todos (Prouni), com bolsas para instituições privadas.

Em 2017, o Censo da Educação Superior, realizado pelo Ministério da Educação (MEC), registrou 32.147 alunos matriculados no ano de 2015, e 49.026 em 2016. Nessa pesquisa, os alunos declararam a raça, o que não era obrigatório nos anos anteriores.

O acesso à educação superior, para os indígenas, possui significados diversos. Muitos almejam mais conhecimento para desenvolver novas habilidades e aprimorar outras, e também utilizar os conhecimentos para ajudar, de alguma forma, a sua comunidade.

Rucian da Silva Vilacio, do movimento estudantil Meiam
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O estudante Rucian da Silva Vilacio, cujo nome indígena é Hurú-Hurú’e (significa “Trovão” na língua Sateré-Mawé), cursa Engenharia de Produção na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Ele, que participa do Movimento de Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), conta que o motivo de procurar o ensino superior foi para, futuramente, apoiar e somar com movimento, que já faz parte do histórico da família há gerações, e também, para apoiar a causa indígena.

“Quando a gente entra na universidade pública, a gente não entra por nós mesmos. Não é um indivíduo, é um coletivo, é um povo. A gente está representando, além do ser individual, a família, o nosso clã, nossa etnia, o nosso povo, e o local de onde a gente veio. Então, eles esperam isso da gente, esperam esse retorno. A família apoia essa questão de ter um parente na universidade. É gratificante”, diz Rucian Sateré-Mawé.

O estudante Puré Juma Uru Eu Wau Wau estuda no município de Humaitá (AM)
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Puré Juma Uru Eu Wau Wau, de 17 anos, é estudante do primeiro ano do ensino médio. Ele diz que busca ingressar em uma graduação de Gestão Ambiental para contribuir com seus parentes e que a visão para o futuro é otimista. Sua comunidade está situada na Terra Indígena Juma, em Canutama, no sul do Amazonas. Para estudar, ele mora na cidade de Humaitá, que fica a 120 quilômetros da comunidade.

“Tenho que ter o conhecimento da faculdade, para que seja bom os direitos para mim e para os meus povos indígenas: para garantir os direitos, em nossa defesa. Em cinco anos quero ter muito aprendizado e sabedoria”, planeja o jovem.

Reconhecimento dos povos

Alunos indígenas do mestrado e doutorado da Ufam
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Na região Norte são, ao todo, 12.747 indígenas matriculados em universidades, sendo 4.383 na rede pública e 8.364 na rede privada. O Programa Bolsa Permanência (PBP), que beneficia os alunos com recursos, inscreveu 19.428 estudantes até o mês de setembro, segundo informou o MEC. Desse total, 2.400 indígenas. Eles recebem uma bolsa mensal no valor de R$ 900.

Segundo o Censo do IBGE de 2010, a região concentra a maior população de indígenas do país: são mais de 264 mil pessoas. Mas as organizações indígenas informam que existem mais de 306 mil pessoas. Apesar da população ser grande, os alunos ainda enfrentam dificuldade de reconhecimento de suas especificidades no dia-a-dia, e isso também se aplica no quesito educação. Isso acontece porque ainda não se estruturou um sistema nas universidades que atenda às necessidades educacionais dos povos indígenas. É o que ressalta a professora-doutora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ivani Ferreira de Faria, que trabalha com a educação indígena há 26 anos.

“As universidades têm que abrir um pouco os horizontes em sentidos ideológicos e começar um processo de ex-colonização, pensando que nós temos que receber e aceitar as diferenças para preparar o curso, os professores e técnicos com essa visão. Porque aqui eles são formatados a pensar como não indígenas. Querem colocar de cima para baixo a nossa forma de pensar ocidental, sendo o nosso velho processo de colonização que começamos há 500 anos”, diz a professora Ivani Faria.

A Universidade Federal do Amazonas (Ufam) formou, entre os anos de 2013 a 2018, 263 alunos indígenas nas modalidades Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável e Formação de Professores Indígenas. Estão entre os graduados jovens dos povos Tukano, Baniwa e Sateré-Mawé.

Alunos da Escola Tukano Yupuri, em São Gabriel da Cachoeira (Acervo ISA)

A professora Ivani Faria enfatiza que a necessidade de criar cursos específicos para os povos originários não quer dizer que eles não possam ingressar em cursos convencionais, mas que isso é uma forma de valorizar os conhecimentos próprios, culturas e etimologia dessas pessoas. Não é questão de inteligência e sim de cultura, e que as universidades não estão preparadas para lidar com essa questão ainda. Quando questionada se esse sistema do ensino superior está perto de melhorar, a professora faz uma reflexão sobre a Ufam, com relação a essa temática.

“Falta muito, porque tem professores que não aceitam nem que eles falem dos próprios povos dizendo: ‘Esquece de onde você veio; você tem que pensar dessa forma’. No curso de antropologia, por sinal, não estamos preparados. Eu sempre cobrei dos nossos reitores, por ter cerca de 64 povos indígenas falantes e de quase 50 línguas e não fazemos quase nada. A Ufam não tem políticas para a população indígena. Já se tentou fazer quando estávamos mudando de estatuto da faculdade, mas não há, porque ainda tem muito preconceito”, criticou Ivani Faria.

A professora ressalta que essas populações “são inviabilizadas num estado onde temos quase a maior parte da população indígena e inúmeros povos indígenas do Brasil. É preocupante que se inviabilizem os conhecimentos desses povos e a própria importância deles fica menor O reflexo está na própria Ufam que, em 110 anos, nunca teve uma política para eles. Temos atividades, cursos, ações afirmativas e projetos, mas uma política específica para os povos indígenas, não temos. Nem em outra faculdade”.

Quebrando paradigmas

A estudante Vanda Ortega Witoto
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Somado a isso, muitas vezes o sistema adotado por universidades locais é abordado de forma de reflexiva e crítica pelos estudantes indígenas, presentes nesse ambiente, como forma de trocar ideias, experiências e procurar um caminho para evoluir e construir as mudanças almejadas. É o caso de Vanderlécia Ortega dos Santos, 32 anos, cujo nome indígena é Derikine, que significa formiga brava do clã de Saúva, na língua Witoto. Ela é uma das estudantes do 6º. Período de Pedagogia na Escola Normal Superior (ENS) da UEA.

Vanda Witoto, como é mais conhecida, tem a formação em técnica de enfermagem. Ela conta que o curso de pedagogia foi uma segunda opção, pois a primeira era enfermagem. Porém, por ser período integral e pelo fato dela precisar trabalhar para se sustentar, não conseguiu dar continuidade ao sonho na carreira profissional. Apesar disso, a estudante diz que essa foi a segunda melhor escolha da sua vida. Vanda reconhece a importância que a educação tem sobre a vida de qualquer pessoa, essencialmente para os indígenas. “Essa educação é que pode nos ajudar a quebrar vários paradigmas sabe? De todos os conceitos e preconceitos que foram construídos durante esses 519 anos que o nosso país”.

Vanda Witoto avalia e critica os métodos adotados pelas instituições de ensino superior. Entre as observações feitas, está a invisibilidade da cultura indígena e um currículo circular e tradicional que, desde sempre, norteia a educação brasileira.

“Quando você entra na universidade, ela nos torna invisíveis; ela não tem um currículo transversal, que dialogue com os nossos saberes. E na UEA especificamente, na qual eu estudo, você tem uma disciplina com 60 horas, falando da questão indígena no estado, que tem a maior população indígena, mas não tem esse olhar dos nossos conhecimentos. Então, estar dentro desses espaços é você se apartar dos seus conhecimentos, dos seus valores, dos seus costumes”, afirma Vanda.

A indígena da etnia Witoto continua ressaltando que, aos poucos, os parentes indígenas estão ocupando esses espaços; porém, eles ainda não têm oportunidades para serem vistos e reconhecidos dentro desse ambiente. Visto isso, propõe uma alternativa para a situação, que é assumir a responsabilidade e refletir, de forma crítica, sobre o papel dos povos originários, do poder que eles têm para lutar pela mudança.

“Se nós assumirmos o compromisso com o nosso povo, a gente pode transformar esse espaço como um lugar de fala, como um lugar de reflexão que a universidade tem que ser, com um olhar diferente. Hoje, nós temos referências dentro da UEA para falar sobre acadêmicos, sobre políticas afirmativas, para falar sobre cotas, sobre perspectivas dentro do nível superior, porque a gente construiu, desde 2016, isso”, enfatiza Vanda Ortega Witoto.

Fundada em 2001, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) é considerada a maior instituição multicampi do país, pois possui cinco unidades acadêmicas em Manaus, seis Centros de Estudos Superiores e 12 Núcleos de Ensino Superior no interior do Amazonas. Atualmente a UEA tem 162 alunos diplomados e cadastrados pela categoria “grupo indígena”, conforme os editais do Vestibular e Sistema de Ingresso Seriado (SIS), no período de 2016 a 2019. Ainda de acordo com os dados, a Escola Superior de Ciências da Saúde (ESA) concentra o maior número de indígenas matriculados: são 168 alunos; todos estudando na capital amazonense.

*Esta reportagem foi atualizada para incluir novos dados das matrículas dos estudantes na UEA.

Jackeline Lima é estudante de jornalismo da Faculdades Martha Falcão e desde o mês de junho participa do 4º. Treinamento em Jornalismo Independente e Investigativo da agência Amazônia Real.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Jackeline Lima

2 Comentários

Jorge Carlos de Oliveira disse:

27/07/2020 às 17:23

Prezados,

Escrevi um livro com o título: A tribo sem Pajé, no link abaixo. Trata-se de um conto romanceado abordando a imposição predatória e expansionista do modo de vida do homem branco à cultura holística do que ainda resta das nações indígenas e povos da floresta.
A narrativa envolve conceitos de criatividade, liderança, diversidade e poder, além de abordar as contradições fundamentais entre o comportamento criativo do homem branco e a criatividade presente na cultura dos povos indígenas.
https://clubedeautores.com.br/livro/a-tribo-sem-paje
Sou Engenheiro, escritor, professor e palestrante de Criatividade e Responsabilidade Social, com mais de 30 anos voltados para Educação e Recursos Humanos. Passei grande parte de minha infância em Óbidos/Pará, na Região Amazônica, onde tive contato com as histórias, lendas e modos de vida das pessoas daquela região. Adquiri, com isso, forte identidade com a cultura indígena e dos povos da floresta, consolidando-a com a leitura da obra de Darcy Ribeiro.
Gostaria que meu livro fosse divulgado por essa instituição, contribuindo para difundir a luta pela vida digna e elevação da autoestima dos povos indígenas e a sobrevivência cultural de nossa ancestralidade.

Muito grato!

Jorge Carlos de Oliveira
Tel. 071 999651464
[email protected]
https://sites.google.com/view/jorgecoliveira/

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- Amazônia Real disse:
  
  29/07/2020 às 10:55
  
  Prezado Jorge, obrigada pela sugestão. Vamos avaliar.
  Equipe da Amazônia Real
  
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