Herança Cruenta

FÁTIMA GUEDES Muitos dos ruídos que poluem nossos ouvidos apropriaram-se do tempo, ensurdeceram espaços, por fim, emudeceram uma grande parcela da humanidade. Alguns desses ruídos até causam arrepios tal a amplitude da carga ideológica como, por exemplo, “mistério é para […]

Por Amazônia Real Publicado em: 06/04/2015 às 14:25

Comunidade rural São João Laguinho, em Parintins (Foto: Floriano Lins)

FÁTIMA GUEDES

Muitos dos ruídos que poluem nossos ouvidos apropriaram-se do tempo, ensurdeceram espaços, por fim, emudeceram uma grande parcela da humanidade. Alguns desses ruídos até causam arrepios tal a amplitude da carga ideológica como, por exemplo, “mistério é para ser vivido e não entendido”. De concreto, a intensidade dessa barulheira toda vem determinando calvários existenciais onde seres humanos excluídos nos campos, beiradões e periferias são transformados em fantoches sem as condições objetivas para desvendar códigos secretos ou quebrar muralhas que bloqueiam o acesso à claridão, à libertação. Em consequência, a cada momento, surge um crucificado gerando outros e outras cujos destinos sustentam a indústria religiosista.

A presente reflexão surge de nosso testemunho presencial a um desses ignorados calvários da Amazônia rural produzidos a partir da inoperância dos serviços púbicos, dos descasos aos direitos sociais e da ausência de políticas públicas equitativas cujas sequelas se justificam como manifestações da vontade de deus aos seus escolhidos.

O fato em questão desenrolara-se numa sexta-feira santa, na comunidade rural São João Laguinho, 40 km da cidade de Parintins/AM. Da colônia onde nos encontrávamos, ouvia-se ao longe, por toda a noite, um gemido pausado que se misturava à ventania, contrastava-se com a orquestra dos sapos, com o piado das corujas, com o fervilhado dos insetos, sobrepondo-se à manhosidade da chuva que encharcava o solo e o vazio da região.

O dia seguinte trouxe nas mãos ainda molhadas um sol acanhado e morno sincronizado a todos os signos que, naquele momento, envolviam os mistérios insondáveis proibidos à decodificação. Estávamos ali em busca de sossego. O feriado longo num trecho de selva esquecida traria o equilíbrio de que precisávamos; no entanto, os gemidos sequenciados daquela noite perturbaram nosso sono, tirando-nos a quietude a que aspirávamos. A umidade que envolvia o ambiente, o isolamento da região e nossa cultural covardia para o enfrentamento ao desconhecido, confirmaram em nós a evidente condição de espectadores quando circunstâncias adversas exigem atitudes radicais ou ousadas.

As horas passavam lentas. Ninguém aparecia para decodificar aquele mistério doloroso. Finalmente, por volta das dez horas, percebemos a aproximação dos gemidos na estrada deserta, acompanhados por um fuxicado rápido de vozes adultas, grunhidos de cães, tosses e choros de criança.

Mergulhados na ansiedade por notícias, divisamos o cortejo que, impiedosamente, desmontou nosso íntimo territoriozinho. Era uma via-crúcis de trabalhadores braçais carregando uma rede puída onde uma jovem em estado de debilidade se contorcia num martirizante trabalho de parto.

Rompemos as distâncias, exercitamos uma tênue solidariedade, reconhecendo nossa insignificância e impotência diante dos graves problemas estruturais do tal Estado Democrático que separam seres humanos de seus direitos elementares e fundamentais… Ali, éramos apenas discursos de consolo… A ausência de um posto de saúde na comunidade polo, a distância até a cidade, assim como a falta de transporte adequado para o traslado de pacientes em estado grave, mediam a fragilidade de nossa Utopia militante para um enfrentamento eficaz ao combate às injustiças sociais que afetam sobremaneira a dignidade e a qualidade de vida de populações marginalizadas.

Sem recursos, sem perspectivas, assentada a três quilômetros de nós, Madá, mãe solteira, sofria as dores de um parto de risco, há três dias. Com as esperanças esgotadas, somada à omissão da Atenção Básica de Saúde e às limitações da medicina caseira naquelas circunstâncias adversas, restava o apoio de cirineus, seus companheiros, na dura tarefa de enfrentar o calvário de uma política rural insustentável.

Aquela via-crúcis adentrou mais alguns quilômetros de estrada. Os cirineus perceberam que Madá desmaiara. Reanimaram-na e, ali mesmo, sob a proteção de um centenário angelim-pedra, à vista de todos, o parto forçosamente aconteceu. O feto já estava morto. Madá resistiu, mas, por não ter o direito de desvendar os mistérios das várias dores já naturalizadas em sua lógica existencial, certamente, fabricará outros e outras que servirão indubitavelmente à mística do “santo” sofrimento concebido como vontade de Deus.

Madá – Nome fictício da personagem.

Angelim-pedra – Madeira de lei leguminosa da Amazônia.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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