Cultura

Keila Serruya lança performances que mergulham na ancestralidade da terra e planta

Os novos trabalhos de performances audiovisuais são resultados da troca com artistas mulheres e negras na residência Obírin, na Bahia (Foto de João Machado/Amazônia Real) Manaus (AM) – Há quase um ano, a artista amazonense Keila Serruya participou […]

Performance Ancestralidade de Keila Serruya (Foto: João Machado/Amazônia Real)

Por Kátia Brasil Publicado em: 02/05/2019 às 18:58

Os novos trabalhos de performances audiovisuais são resultados da troca com artistas mulheres e negras na residência Obírin, na Bahia (Foto de João Machado/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Há quase um ano, a artista amazonense Keila Serruya participou da residência Obírin, oferecida exclusivamente para artistas mulheres e negras da América Latina e Caribe, em Salvador, na Bahia. A imersão foi realizada entre os meses de maio e junho de 2018, no Espaço Cultural da Barroquinha, berço do candomblé de nação Ketu. Nesta entrevista à agência Amazônia Real, Keila fala sobre como a residência impactou sua produção artística, principalmente em relação às performances audiovisuais “Ancestralidade de Terra e Planta” e a mais recente, “Sem Nome/Sem (Cem) Mortos”, esta com lançamento previsto para o próximo mês.

“Minhas obras são cinema, performance, artes visuais. Achava isso um problema, mas não: era apenas minha ancestralidade existindo em mim”, afirma a artista. Ela disse que essa ancestralidade ficou ainda mais evidenciada depois da residência artística.

Keila conta que durante a residência Obírin conheceu mulheres de vários lugares diferentes: da República Dominicana a São Paulo. “Foi um encontro das mulheres negras de diversas nações. E pensando nessa experiência, não há como ficar imune; não tem como voltar com a mesma visão, já que ela foi ampliada pela troca de experiências entre mulheres gigantes, que vocês ainda irão ouvir falar e muito, inclusive”, disse.

“Lá eu aprendi muitas coisas que não seriam apenas para o meu trabalho, e sim, para a vida. Mas tudo é a mesma coisa mesmo [risos]. Aprendi sobre afeto real, sobre guerrear sem se afetar, sobre paciência, sobre diversidade. Eu aprendi que a Deusa que eu tanto venero, em mim vive”, diz Keila. Leia, abaixo a entrevista exclusiva que ela concedeu à reportagem.

Amazônia Real – Como foi a sua participação na residência Obìnrin, na Bahia?

Keila Serruya – Foi algo mágico e potente: um espaço de descobrimento de minhas possibilidades. Tudo isso foi possível, devido aos três meses de convivência em um estado que tem muitas verdades históricas desse país. Conhecer mulheres negras diversas, foi algo que mexeu comigo. Tantas idades, histórias, potências que me fizeram refletir sobre minha existência e a necessidade de produzir arte.

Dandara Baldez, Maria Dolorez, Yasmin Nogueira, Inaê Moreira, Ana Musidora, Makeda Dyese, Aline Brune e Marily Mallardo são os nomes das residentes do projeto Obírin. Sendo ele idealizado pela atriz e performer Laís Machado e tendo como coordenadoras Sanara Rocha e Tina Melo.

Foram essas mulheres negras que, juntas ou separadamente, me fizeram avistar mais caminhos para meu trilhar pessoal e profissional. Agradecida eu sou por essa oportunidade.

Amazônia Real – Como você enxerga a influência da residência no seu trabalho?

Keila – Entender que meu corpo também pode comunicar como obra artística foi uma das coisas mais importantes que aprendi na residência. Ser de diversas linguagens é algo possível; a maioria dos artistas negros atravessam várias linguagens e isso não é um problema: é autoconhecimento. Alarinjó é um termo em Yorubá que conheci na residência através da Laís Machado. Esse termo é utilizado para falar daquele que canta, dança, toca enquanto caminha: são múltiplos os fazeres.

Minha obras são cinema, performance, artes visuais. Achava isso um problema, mas não: era apenas a minha ancestralidade existindo em mim.

A divisão da arte é algo eurocêntrico e isso não me interessa há tempos. O processo ancestral de africanos e diaspóricos na arte envolve comunicação ritual, cor, vestimenta, dança, representação, música, performance e mais muitas coisas. Nós, negros, somos naturalmente multilinguagens. E isso é um poder.

Amazônia Real – Houve mais mudanças no seu processo criativo ou nos temas que explora, depois da residência?

Keila – Os temas são os mesmos. Na verdade, me interessei pela residência, por ser com mulheres negras. Sabia que ali minhas ideias amadureceriam junto com a minha relação com as plantas, com a terra, ao corpo performático e a experiência ancestral que tanto busco com minhas obras. E foi o que aconteceu.

Performance Ancestralidade de Keila Serruya (Foto: João Machado/Amazônia Real)

Amazônia Real – A residência era composta unicamente por artistas mulheres negras. O quão importante você considera a convivência com diferentes visões do feminino para o seu trabalho?

Keila – Nós, mulheres negras, somos diversas. Reforçar essa questão é trazer subjetividade para corpos que não foram pensados como pertencentes a esse lugar, e sim que foram exotificados. Essa é uma sociedade que exclui, porque é racista e machista, não há como negar.

Não somos um padrão estético e nossa produção de conhecimento, muitas vezes, é questionada nas universidades, galerias e espaços privilegiados em geral.

A residência Obírin foi ocupada por mulheres de muitos lugares e muitos fazeres, da República Dominicana a São Paulo, de atriz, artista visual, professora, performance, mestre e capoeira, realizadora audiovisual. Foi um encontro das mulheres negras diversas. E pensando nessa experiência, não há como ficar imune; não tem como voltar com a mesma visão, já que ela foi ampliada pela troca de experiências entre mulheres gigantes, que vocês ainda irão ouvir falar e muito, inclusive.

Lá, eu aprendi muitas coisas que não seriam apenas para o meu trabalho, e sim, para a vida. Mas tudo é a mesma coisa mesmo, risos. Aprendi sobre afeto real, sobre guerrear sem se afetar, sobre paciência, sobre diversidade. Eu aprendi que a Deusa que eu tanto venero, em mim vive.

Amazônia Real – Qual foi a experiência/momento mais marcante de sua passagem pela Bahia?

Keila – Foram incontáveis experiências….

Quando cheguei, conheci uma artista chamada Annie Ganzalla (procurem o trabalho dessa rainha). Fomos à Feira de São Joaquim para comprar frutas e verduras e lá comprei uma planta que foi um guia nessa passagem pela Bahia. O poder do peregum e a companhia de Annie foram importantes para o caminho que eu estava traçando. Chorei abraçada com um maço de planta no meio da feira; foi um rompimento. Não me dava direito de chorar em público, mas ainda bem que tudo muda, e a arte sempre é uma ferramenta de bem-estar e mudança.

Outro momento [marcante] foi quando me banhei no mar. Estava com uma mãe rainha: ela me lavou a cabeça, me fez flutuar, me batizou nas água salgadas, me falou sobre o poder do feminino, sobre corpo negro, me falou sobre o mar. Essa mulher é Marylli Gallardo, da Escola Kalalú Dança Artes Cênicas de São Domingos. Ela me ensinou muito sobre dança e o poder que em meu corpo existe.

Também participei de um oficina ministrada pela percussionista Mônica Millet. Tudo aconteceu no Centro Cultural da Barroquinha, no qual tinha muitas mulheres. Mônica fez uma roda de tambor e começou a ensinar. Foi ajustando os toques, dizendo como bater no tambor, foi ensinando a cada uma ali presente. Duas horas depois, éramos um grupo musical de Ayan (Orixá dos tambores). Inacreditável! Eu estava tocando, não sei como, mas fiz, foi emocionante.

Eu conheci a Dona Dalva do Samba, eu conheci a cidade de Cachoeira. Fui em uma festa de Xangô (Orixá da Justiça) bem no meio da rua: ocupação com religião, resistência e conhecimento ancestral. Foram muitas experiências, mas a principal são as mulheres parceiras que ficaram no meu caminhar.

Performance Ancestralidade de Keila Serruya (Foto: João Machado/Amazônia Real)

Amazônia Real – Um dos resultados da residência foi a performance “Ancestralidade de Terra e Planta”, feita em espaços públicos. Como foi seu processo de criação? Como é a recepção das pessoas ao assisti-la?

Keila – Eu redescobri as plantas no começo de 2017. Estava feliz pelo pouco conhecimento que tinha, mas pude experimentar o corpo como suporte de mensagem. Isso foi novo. Eu sei que tenho expressividade e presença, mas ocupar mais esse lugar me deixava um pouco assustada, confusa mesmo.

Percebi que meu fazer era essencial e natural, pois produzi uma obra audiovisual, uma instalação e performance que trouxe como eixo a investigação, o reconhecimento da terra como território retentor de saberes ancestrais e das plantas, como recursos de cura espiritual e de enfermidades. As cinco vezes que esse trabalho aconteceu na Bahia – sendo duas vezes na exposição Obírin, duas vezes nas ruas e uma no Sarau Afro Ameríndio na cidade de Cachoeira –, me senti subindo escadas, descobrindo mais caminhos infinitos para minhas narrativas. Essas outras narrativas ainda [são] negadas, mas estamos aqui reforçando nossa presença.

Além da Etapa 2 e 3 da Exposição Coletiva do projeto Obírin, que aconteceu no Espaço Cultural Barroquinha – Salvador BA, esse projeto também já participou do SESC Amazonas das Artes, Exposição Dentro do Brasil Cabe o Mundo – Festival de Inverno Rio de Janeiro e do Encrespa Geral, Edição Manaus. Já ganhou força, circulou como vídeo, como performance e ainda há muitos caminhos a serem traçados. Atualmente, eu realizo o “Ancestralidade de Terra e Planta”, distribuindo mudas, distribuindo bem-estar, distribuindo arte em cada apresentação.

Amazônia Real – Desde a sua ida para a residência, o cenário político brasileiro sofreu muitas mudanças. Como você enxerga o seu trabalho em meio ao contexto do governo Bolsonaro?

Keila – Estamos em um pesadelo, principalmente por entender que esse homem foi eleito pelos brasileiros, refletindo o geral de suas falas grosseiras, sem sentido e que são contempladas por muitos cidadãos deste país.

Acredito na arte como ferramenta que reflete, modifica. Por isso, o tema da minha mais nova produção audiovisual é sobre o extermínio da população negra. Meu trabalho fala sobre aquilo que amo, que busco, ou que quero diferente. Enxergo não só meu trabalho, mas muitos trabalhos de artistas negros e negras, como ferramenta de resistência, em um governo racista, machista, homofóbico e completamente perverso em sua branquitude.

Performance Ancestralidade de Keila Serruya (Foto: João Machado/Amazônia Real)

Amazônia Real – Como foi sua participação na exposição “Atlas Momosyne”, que retratava a ascensão da direita no Brasil com a performance “Sem Nome/Sem (Cem) Mortos”?

Keila – O debate sobre o extermínio da população negra deve estar em todos os lugares: nas galerias, ruas, praças, internet. Me senti pressionada por toda essa carga de ignorância que nos avassala atualmente. É discurso sem noção, perverso cheio de julgamento. Falas emburrecidas, criadas a partir de informações enviadas através de aplicativo de mensagens instantâneas. É um caos na perda de direitos tão importantes, como nosso principal direito à vida (Artigo 5º da Constituição Federal Brasileira).

Já que informações como essas chegam deturpadas propositalmente, me sinto no dever de falar sobre isso por mais que machuque muito. Vou usar minha arma, meu trabalho artístico. A arte comunica, reflete e modifica. Meu processo de concepção parte de uma necessidade urgente.

Esse vídeo instalação é terrivelmente importante. Sua execução poderia ser desnecessária, mas não é. Negros representam 71% de todos os homicídios no país: enquanto esse número diminui 12% para brancos, cresce 18% para negros. E o encarceramento em massa? Os negros são 61,7% da população carcerária no país. Isso não é coincidência; são muitos fatos, muitos números e muita gente negando o racismo. Meu movimento é uma obrigação.

Os textos, fotos e vídeos publicados no website da Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia com os créditos dos autores e da agência.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Kátia Brasil

Kátia Brasil é co-fundadora e editora executiva da agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real, com sede em Manaus (AM). Recém formada pela Faculdade Hélio Alonso, no Rio de Janeiro, foi morar na Amazônia no início do ano de 1990. Trabalhou nas TVs Educativa e Cultura e nos jornais O Globo, A Gazeta de Roraima, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Entre os prêmios que ganhou estão o Esso Regional Norte 1991 e Women Journo Heroes (#JournoHeroes), da International Women’s Media Foundation (IWMF), em 2019, Prêmio Abraji, em 2020, Vladimir Herzog e Comunique-se, ambos em 2021. É uma das jornalistas brasileiras +Admiradas Negras da Imprensa Brasileira, em 2024. É diretora editorial do Projor/Observatório da Imprensa. Conselheira do Tornavoz e RBJA, e membra da Comissão da ABI Ambiental. Foi eleita em 1o. lugar Região Norte do Prêmio TOP 100 +Admirados Jornalistas Brasileiros. Integra o forbiddenstories.org, o Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM) e o Coletivo Mães Pela Diversidade em defesa das pessoas LGBTQIAPN+. ([email protected])

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