Política

Militante dos direitos indígenas na Bolívia revela como o povo Takana foi enganado pela indústria petrolífera chinesa

Tarapoto (Peru) – Em entrevista exclusiva, o militante dos direitos dos povos indígenas e ambientais da Bolívia, Adamo Americo Diego Cusi, de Santa Cruz, contou ao jornalista e antropólogo Fábio Zuker, durante o VIII Fórum Social Panamazônica (Fospa), como foi […]

Adamo Americo Diego Cusi, militante dos direitos dos povos indígenas e ambientais da Bolívia (Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Por Fábio Zuker Publicado em: 22/05/2017 às 18:13

Tarapoto (Peru) – Em entrevista exclusiva, o militante dos direitos dos povos indígenas e ambientais da Bolívia, Adamo Americo Diego Cusi, de Santa Cruz, contou ao jornalista e antropólogo Fábio Zuker, durante o VIII Fórum Social Panamazônica (Fospa), como foi a luta do povo Takana, da região de Cobija, contra um megaempreendimento de prospecção petróleo no território tradicional e seu impacto socioambiental. De 2013 a 2016, o complexo petroleiro Madre de Dios, Área Nueva Esperanza, um negócio que envolveu o governo de Evo Morales e empresas do Equador e da China, fez estudos de prospecção em terras sagradas, inclusive com a presença de indígenas isolados. Houve desmatamentos, destruição de castanheiras centenárias, lagos e rios. Inicialmente, o projeto previa a distribuição de água potável às comunidades e os Takana assinaram o documento permitindo o projeto. “Na realidade eles assinaram os estudos sísmicos de exploração de petróleo em seu território. Os Takana se sentiram absolutamente enganados. E aí começa todo o problema.” Infelizmente esta é a realidade atual da Panamazônia.

O depoimento de Adamo Cusi é o último da série de entrevistas feitas por Fábio Zuker, que acompanhou as plenárias do Fospa entre os dias 28 de abril e 1º de maio, em Tarapoto. Para agência Amazônia Real ele entrevistou personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.

Depoimento de Adamo Americo Diego Cusi

Em dezembro de 2012, autoridades bolivianas foram ao Território Indígena Takana II, em Cobija (Bolívia), oferecer projetos relacionados à água para a comunidade da referida área protegida. Trata-se de Mi Agua, mais precisamente, um programa para extrair e distribuir água às comunidades. Foi com esse objetivo que as autoridades chegaram e começaram as conversas.

A Terra Takana II está localizada entre duas áreas protegidas, às margens do Rio Madre de Dios. Trata-se da primeira população civil em território boliviano, logo após a fronteira com o Peru. Os Takana viram o projeto, conversaram com certas secretarias, debateram internamente e ficaram entusiasmados com a proposta de uso da água.

Bom… o fato é que no ano seguinte, em 2013, vieram lhes apresentar que eles tinham, na realidade, assinado a base para os estudos sísmicos de exploração de petróleo em seu território. O complexo petroleiro se chama Madre de Dios, Área Nueva Esperanza, em concessão à China National Petroleum Corporation, tendo como operador a BGP, uma empresa sino-equatoriana, cuja subsidiária é a BGP Bolívia SRL.

Os Takana se sentiram absolutamente enganados. E aí começa todo o problema. E a busca por apoio da parte deles, na qual me envolvi profissional e pessoalmente. [Adamo tem um tom narrativo contagiante e perspicaz, quase hipnotizante no modo como concatena os acontecimentos]

2013 [Adamo enumera os anos, em tom crescente e determinado] os indígenas se viraram sozinhos diante dessa situação. Durante todo esse tempo. Mas não se pode contra o Estado, contra o sistema, sozinhos. 2014, 2015. Aí começa o apoio da instituição em que trabalho, relacionada a direitos indígenas e à terra. Quando nos contataram, a BGP estava tentando impor o consentimento dos comunitários quanto ao projeto.

As comunidades, ao perceber que foram enganadas, tomam a primeira decisão estratégica: que nenhuma reunião aconteceria mais fora de seu território. Nenhuma! Todas dentro. Assim os representantes da empresa tinham que vir pessoalmente assinar os papéis… Fora do território, nada tinha validade.

Takana II vive da fauna e da floresta, principalmente da colheita da castanha. E essa proposta de análise sísmica para prospecção de petróleo sobre os bosques de castanha não agradou ninguém. Então, já que os estudos eram uma realidade, os Takana estabeleceram uma série de parâmetros ambientais para o uso de explosivos na análise. Ninguém imaginou que árvores de cem anos, de cinquenta metros de altura, cinco, seis toneladas cada uma, seriam ameaçadas… Ninguém imaginou que, de fato, a empresa faria as perfurações e estudos junto aos castanhais. Que ameaçaria derrubá-los.

A empresa (BGP) afirmou que fariam as perfurações entre nove e quinze metros de profundidade. Cada perfuração carregaria mais de três quilos de explosivos. E Takana II diz não. Que vão colocar no máximo três quilos em cada buraco, pois assim diz a legislação no tocante a áreas sensíveis, e esta é uma zona frágil, delicada. A empresa consentiu e assinou.

Também foi pleiteado pelos membros da comunidade que os explosivos estivessem no mínimo a 40 metros de distância de cada castanheira. Um assessor peruano foi contratado para fazer a análise dos impactos das explosões e chegou à conclusão que a explosão deveria ser, no mínimo, a 65 metros de distância de cada castanheira. Então a empresa aceitou e assinou o documento estipulando a distância mínima de 65 metros. Outro ponto dizia respeito aos postos de trabalho. A empresa dizia que ia gerar 800 empregos. ”Vamos ter trabalho para todos, vocês vão ganhar dinheiro”, falavam. E os Takana disseram: não [fala em um tom seco e determinado]. Pois já estavam fartos das mentiras da empresa.

Para entender a Amazônia, temos que entender com quem estamos falando. E os povos amazônicos vêm da história da borracha. Os Takana foram escravizados durante a época da borracha, e então disseram não aos empregos propostos. “Não queremos os seus trabalhos. Pois sabemos que vocês vão nos obrigar a fazer coisas que não queremos fazer com a montanha”, diziam. “Melhor é nos dar trabalho enquanto monitores socioambientais indígenas, para nós mesmos podermos controlar as atividades em nosso território”. E a empresa também assinou isso? Claro que assinou.

Outro ponto delicado nas negociações foi quando os Takana afirmaram que convivem em seu território com povos em isolamento voluntário.

A partir dos indícios que tinham, indicaram as áreas onde esses povos estavam, para protegê-los. “Quando vemos essas marcas na selva, nós voltamos. Assim é melhor”, dizem os Takana.

Inclusive há uma série de histórias relacionadas a esses povos. Dizem que há não muito tempo levaram o finado Pablo ou Luís Pablo, algo assim. Os filhos e a família tranquilamente contam essa história, com algo de receio, obviamente, mas dizem que ele viveu dois anos entre os isolados. No início, quando eu ouvia essa história, a considerava mentira… Não queria acreditar… Mas contam que ele escapou, depois de dois anos, voltou a sua aldeia e contou o que viveu. Ou seja, todos ali sabem que existem populações em isolamento voluntário. Mas na Bolívia inteira, ninguém tem ideia disso.

Então, no documento, também assinado por ambas as partes, se decide: há populações em isolamento voluntário, e caso as encontremos durante os estudos de prospecção, cumpramos as leis referentes a esse tema, e não as incomodemos. Feito. Também o assinaram. O mesmo tocante à monitoria socioambiental…

Se nos damos conta, o ponto em que os representantes da empresa foram mais inteligentes foi durante as negociações. No poder de negociação. Fecharam todos os caminhos. Era muito trabalho… Não eram reuniões de duas horas, mas de cinco dias, das 7h às 19h. Uma vez, determinadas as condições, assinaram todos os papéis junto a representantes do próprio Ministério do Meio Ambiente. Estava presente inclusive o vice-ministro.

Tão logo assinado o documento, começaram: “Ó, vejam bem… acabamos de nos dar conta de que 65 metros de distância de cada castanheira é muito!”, “vamos discutir aqui com as autoridades…”. E então decidiu-se fazer a 40 metros de cada castanheira. A partir desse momento, começaram a mudar todos os pontos, um a um… E claro, nada de monitoria socioambiental. A nós, Takana e assessores, nos colocaram sob vigilância, dentro dos próprios esquemas da empresa…

Quanto à análise de impacto ambiental, o Documento de Informação Pública (DIP) que nos trouxeram era um documento da região do Chaco. Não tiveram nem o decoro de mudar o nome. Realmente, era uma cópia tal qual, um documento referente a um megaprojeto realizado no Sul do país, de vegetação xerófita e/ou selvas secas. Enquanto a terra Takana II está na Amazônia montanhosa, como aqui [refere-se à Amazônia andina, como Tarapoto, local do Fórum e da entrevista].

Criticamos esse documento de cabo a rabo, e mesmo assim, não se mudou nem uma frase.

Esse Documento de Informação Pública não contém, nem nunca conteve, algo tão importante para os Takana que são os bosques de castanha, como modo de produção e sobrevivência. O documento não tinha o mais importante. A forma de vida desse povo: a castanha.

O controle ambiental que fizemos foi um trabalho árduo, realizado pelos membros da comunidade, e do qual participei com um colega. Cerca de 46 pessoas. Medimos cada buraco de prospecção sísmica, para que não estivesse a menos de 40 metros de cada castanheira. Relatávamos o que observamos cada uma das noites pela rádio base. Assistíamos às autoridades, fazíamos a fiscalização, íamos em motos juntos. “Vejam bem, vocês assinaram assim, e assim devem cumprir. Senão, vamos aplicar a lei e recomeçar tudo”, dizíamos aos funcionários da BGP. Os Takana conheciam esse documento de ponta a ponta. Passaram dois anos construindo. Essa foi a diferença.

Em poucas palavras, os Takana queriam, de fato, poder controlar os seus territórios, como monitores socioambientais indígenas, ou seja, controlar os estudos sísmicos para exploração do petróleo. Mas os trabalhadores da BGP vinham a Takana II e faziam o que bem entendiam, não respeitando os monitores e inclusive agredindo-os. Teve um caso em que bateram em um dos monitores indígenas que zelava por uma árvore que, de acordo com os próprios acordos firmados pela empresa, não poderia ser derrubada, devido as suas dimensões. E ainda assim o funcionário a derrubou. Tivemos inúmeros casos pesados e de violência.

Os próprios funcionários, entre 500 e 600 pessoas floresta adentro, estavam em condições ultra precárias.

A empresa não tinha como garantir sua alimentação nem abastecimento de água. Comiam pão mofado. E ainda por cima estávamos em um ano de seca. Então os funcionários começaram a satisfazer as suas necessidades alimentícias, caçando e tudo.

Houve muitas brigas, muitas discussões. No final, preservamos cerca de 800 pontos de prospecção sísmica junto as castanheiras e outros elementos ambientais. Ou seja, os funcionários agiam de forma contrária às normas que estabelecemos juntos. Nos escondiam informações, nunca nos davam a informação exata. E nós sim o fazíamos. De bobos, demos as informações exatas a respeito das castanheiras, nascentes de água… lugares que temos que cuidar. Finalmente se neutralizaram aproximadamente 170 pontos em de verificação, que não condiziam aos acordos junto à empresa.

Fotos de funcionários no Equador (Imagem: BGP Inc.)

Nos só discutimos e interferimos em função do cumprimento dos pontos que haviam sido firmados pela empresa. Apenas isso. Um dia, atacaram um monitor socioambiental indígena Takana. Agrediram-no pois ele zelava pelo cumprimento das normas. Isso teve um efeito enorme… os Takana exigiam o cumprimento da legislação e dos acordos firmados. Os funcionários da BGP seguiram em outras partes do território Takana II, mas ali pararam. Imagine: um megaprojeto de interesse nacional, com capital internacional, é interrompido tão rapidamente, por conta desse caso.

Durante a assembleia que se formou para debatê-lo, decidiram não mais explorar esta linha na qual um monitor havia sido agredido. As assembleias ficaram tensas, e essa foi a única forma de fazê-los respeitar. E claro, a partir disso, decidiram que a compensação à comunidade seria menor.

Isso foi em setembro de 2016, e havíamos começado em junho. Setembro é o ponto alto da seca. Trabalhadores morreram por faltas de condições decentes. Morreram de ataque cardíaco. A verdade, meu amigo, é que eu acho que os trabalhadores estavam passando muito mal na floresta. Nós nunca os privamos de nada. Mas a empresa não conseguia nem mesmo levar água para seus funcionários. E os acampamentos iam cada vez mais longe.

Encontraram rastros dos povos em isolamento voluntários… Nós ouvíamos essas conversas na rádio compartilhada.

Isso ocorreu cerca de dez vezes, e nenhuma medida de cuidado foi tomada. Imaginem vocês quantas vezes mais isso deve ter acontecido, pois eles tinham as suas próprias redes de contato (o sistema de comunicação chamado BGAN), que não eram compartilhadas conosco.

Bem… estávamos tentando aliviar os atritos. Terminar tudo logo. Já era outubro, e eles iriam embora no 31 de dezembro, quando começa a colheita da castanha. Ou seja, eles estavam trabalhando contra o tempo. Estávamos já mais aliviados… quando começaram a fazer pontos de medição que não estavam previstos. Fizeram um poço não com 9 ou 15 metros de profundidade… Mas com aproximadamente 40 metros! E o diâmetro dos tubos era enorme ou muito maior que os habituais. E em cada metro, se antes colocavam 3 quilos de dinamite, neste poço carregavam muito mais.

Nunca soubemos exatamente o que foi feito ali, mas imagino que era para testar o solo. A empresa tinha que se explicar, pois descumpriu normas expressas. Perante o Estado e principalmente perante a própria comunidade. E eles confirmaram, mas minimizaram, afirmando que eram questões meramente técnicas e que nós, ignorantes, não entendíamos.

Foi aí que os indígenas de Takana II se queixaram comigo, e disseram que se eu não fizesse o monitoramento destas atividades, não estava fazendo realmente meu trabalho. Esse foi um questionamento muito grave. Aceitei esse trabalho e esse cargo, e tinha que cumpri-lo. Escutamos pelo rádio comunicador e entendemos que era… tudo fora da área do território no qual eles poderiam ter feito os testes, e consequentemente fora de nossa área de monitoramento.

Substituíram o responsável pela Unidade de Relacionamento Comunitário BGP, e então começaram dias muito difíceis. Os funcionários da BGP não queriam nos deixar entrar. Os Takana e eu decidimos que iríamos sozinhos. Esse foi um dos dias mais difíceis. E qual não foi a minha surpresa quando descubro, dali a alguns dias, que existe uma ação judicial contra mim, acusando-me de sequestrar funcionários da empresa. Quando tudo o que fizemos foi, na verdade, manter nossa determinação de que se cumprissem os acordos firmados entre a associação do território indígena Takana II e a própria empresa.

Então resolvi enfrentar essa situação. Me apresentei e confirmei que nunca tinha havido sequestro, e que a empresa não seguiu em nada os acordos estabelecidos. Tive que me afastar do trabalho de campo, e responder às acusações que me faziam. Mantivemos contato, é claro. Mas com a distância, já não é o mesmo…

Se já tínhamos controlado uma das linhas de teste sísmico, com o caso da agressão a um monitor indígena, agora a comunidade Takana decidiu controlar tudo. Com ameaças desse modo não podíamos seguir. A empresa queria nos amedrontar, mas as comunidades responderam com ainda mais força. A empresa tentou ainda salvar a situação… durante o mês de dezembro todo. Ligaram justamente para mim… a quem haviam acusado, para resolver a isso tudo.

No final, em dezembro, durante dez dias não mais deixaram os monitores entrarem nas áreas de testes. E a verdade é que durante esses dias, eles fizeram o que bem entenderam no território. No dia 31 se foram. Não respeitaram às distâncias delimitadas entre as árvores, nem junto aos rios.

Caçaram. Pescaram. Fizeram de tudo… deixaram lixo, cabos, ferramentas, roupas, luvas, motores jogados no rio, com a gasolina dispersa na água.

Nada das piscinas com membranas em gel de alta tecnologia que haviam prometido… totalmente um desastre. Queríamos apenas que eles se fossem. Os membros de Takana II já não os queriam mais lá… estavam impacientes pela safra de castanha. E se houve um erro de nossa parte, no final, foi o de ter assinado para que eles se fossem de imediato, sem que tivessem tempo para desenvolver o reflorestamento com o qual inicialmente haviam se comprometido.

Agora a empresa está no período de prospecção, de leitura dos dados captados, que durará no mínimo um ano. Ou seja… em 2018, me arranco os cabelos. [Terminamos a entrevista com um riso alto e relaxado… mas cujo pano de fundo é tenso]

Forum Panamazônico (Foto: FOSPA PERU)

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Sobre a matéria

Fábio Zuker

Jornalista e antropólogo, é mestre em Ciências Sociais pela EHESS-Paris e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, com pesquisa realizada no Baixo Tapajós (Pará). Como jornalista, colabora com a agência Amazônia Real desde 2017, e já escreveu para meios como National Geographic Brasil, revista Piauí, Le Monde Diplomatique Brasil, Agência Pública, Nexo Jornal, revista PISEAGRAMA, O Estado da Arte, entre outros. É autor dos livros "Vida e Morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia" (PS, 2019) e "Em Rota de Fuga" (Hedra, 2020).