Philip M. Fearnside

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 17 – Remover motivos ocultos

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 18/03/2021 às 11:41

A especulação imobiliária é um motivo de desmatamento que essencialmente não traz nenhum benefício para o País e que leva a consideráveis danos ambientais. Ele precisa ser interrompido por ações do governo, como impostos e multas. O atual sistema de regularização fundiária, baseado no desmatamento, deve acabar. O Brasil ainda não fez a transição do costume secular de “regularização” da posse de fato de reivindicações de terras ilegais para um em que a população presume como algo natural que a ocupação ilegal de terras não resultará em um título de propriedade.

Um retrocesso significativo ocorreu em 2009, com a Medida Provisória (MP) 158 criando o programa “terra legal” que legaliza reivindicações de até 1.500 ha (o que dificilmente pode ser considerado uma pequena propriedade). Essa medida provisória tornou-se a Lei nº 11.952 [1], a primeira “lei da grilagem”. A segunda foi a Lei 13.465 de 2017 [2]. A floresta agora está ameaçada por uma terceira “lei da grilagem”. Esteve em vigor por 120 dias no final de 2019 e 2020 como Medida Provisória 910, [3], mas caducou e foi convertida no projeto de Lei 2633/2020 [4, 5]. O presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia) não permitiu que o projeto de lei fosse levado a votação em plenário, mas em fevereiro de 2021 o controle das duas casas do Congresso Nacional foi conquistado pela coalizão de partidos políticos “Centrão” que apóia o Presidente Bolsonaro.

Os presidentes de ambas as casas receberam instruções explícitas do Presidente Bolsonaro para priorizar a aprovação da terceira “lei da grilagem” [6]. Cada uma dessas leis tem facilitado progressivamente a legalização de terras griladas e, ao avançar sucessivamente no ano de corte por ter ocupado a terra, têm enviado a mensagem clara de que quaisquer reivindicações ilegais de terras também serão legalizadas.

Grandes reivindicações ilegais são frequentemente subdivididas entre os vários membros de uma família extensa para obter o título legal dentro dos limites do programa. A quantidade total de terras potencialmente a serem legalizadas é de 67 milhões de hectares, ou metade do tamanho do estado do Pará (ver [7]). Mais pernicioso, o programa leva à suposição lógica dos grileiros e posseiros atuais e futuros em toda a região de que suas reivindicações acabarão sendo legalizadas por programas de regularização subsequentes.

Alcançar a meta de tornar a Amazônia uma paisagem com posse de terra definida e segura é essencial por muitos motivos, incluindo o incentivo a um comportamento mais sustentável dos proprietários e a garantia dos direitos de exclusão que devem estar subjacentes a qualquer programa de pagamento por serviços ambientais, mas ainda não foi encontrado um caminho para alcançar este objetivo sem provocar a suposição perversa de uma “linha na areia” que se move eternamente. O ”fechamento da fronteira” em 1890 no oeste dos Estados Unidos [8] ainda não teve seu paralelo na Amazônia brasileira, e deve ser encontrada uma maneira de alcançá-lo por outros meios do que simplesmente esgotar toda a terra [9].

O estabelecimento da posse da terra é administrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que nos últimos anos tem agido quase inteiramente de forma reativa, reassentando posseiros individuais e “sem-terras” (membros de movimentos organizados de agricultores sem terra) em áreas de assentamento oficial (por exemplo, [10]). Os assentamentos representaram 13,5% de todo o desmatamento até 2011 nos 1.911 assentamentos incluidos em um estudo por Schneider e Peres [11]. Em um estudo por Yanai e colaboradores [12] abrangendo 3.325 assentamentos, os assentamentos foram responsáveis por 21% do desmatamento até 2013. Esse processo não tem ponto de parada natural, pois o número de agricultores sem terra no País ultrapassa a capacidade de toda a região amazônica se fosse distribuída em áreas de assentamentos [13]. Caldas e colaboradores [14] expressaram as implicações de forma mais eloquente: “… é hora de reconhecer os erros do passado e adaptar a política fundiária à nova realidade da Amazônia que leva em consideração os problemas ambientais que as leis atuais estão causando. Se não agirmos agora, o futuro dos pobres da região não mudará; e os mesmos processos cíclicos de ocupação e degradação da terra ocorrerão até que nenhuma floresta permaneça para sustentar a vida na região”. [15]

A imagem que ilustra este artigo mostra área de monocultura ao lado da Terra Indígena Uru-Eu-Wau Wau, próximo a entrada da base Bananeira da Funai, no município de Seringueiras-RO (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Notas

[1] Presidência da República. 2009. Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009.

[2] Presidência da República. 2017. Lei Nº 13.465, de 11 de julho de 2017.

[3] Presidência da República. 2019. Medida Provisória Nº 910, de 10 de dezembro de 2019.

[4] Câmara dos Deputados. 2020. PL 2633/2020.

[5] Fearnside, P.M. 2020. O perigo da “lei da grilagem”. Amazônia Real, 22 de maio de 2020.

[6] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Reviravolta no Congresso Nacional ameaça Amazônia. Amazônia Real, 09 de março de 2021.

[7] Fearnside, P.M. 2013. The evolving context of Brazil’s environmental policies in Amazonia. Novos Cadernos NAEA 16(2): 9-25.

[8] Turner, F.J. 1893. The significance of the frontier in American history. Proceedings of the American Historical Association for 1893. p. 199–222. Free Ebook (gutenberg.org).

[9] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2006. BR-319: Brazil’s Manaus-Porto Velho Highway and the potential impact of linking the arc of deforestation to central Amazonia. Environmental Management 38(5): 705-716.

[10] Fearnside, P.M. 2001. Land-tenure issues as factors in environmental destruction in Brazilian Amazonia: The case of southern Pará. World Development 29(8): 1361-1372.

[11] Schneider. M. & C.A. Peres. 2015. Environmental cost of government-sponsored agrarian settlements in Brazilian Amazonia. PLoS ONE 10(8): art. e0134016.

[12] Yanai, A.M., E.M. Nogueira, P.M.L.A. Graça, and P.M. Fearnside. 2017. Deforestation and carbon-stock loss in Brazil’s Amazonian settlements. Environmental Management 59(3): 393-409.

[13] Fearnside, P.M. 1989. Agricultura na Amazônia. Tipos de Agricultura: Padrão e Tendências. Cadernos NAEA 10: 197-252. Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará.

[15] Caldas, M.M., C. Simmons, R. Walker, S. Perz, S. Aldrich, R. Pereira, F. Leite & E. Arima. 2010. Settlement formation and land cover and land use change: A case study in the Brazilian Amazon. Journal of Latin American Geography 9(1): 125-144.

[15] Esta série é uma tradução atualizada de: Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon. In: H. Shugart (ed.) Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, EUA.

Leia os outros artigos da série:

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 1 – Resumo da série

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 2 – O que é desmatamento?

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 3 – Por que o desmatamento é importante?

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 4 – Detecção por satélite

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 5 – Ciclos econômicos e especulação imobiliária

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 7 – Incentivos fiscais e Posse de terra

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 8 – Lavagem de dinheiro, exploração madeireira e mineração

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 9 – Estradas

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 10 – Soja

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 11 – Pecuária

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 12 – Crescimento populacional e Dinâmica doméstica

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 13 – Degradação extrema

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 14 – O aumento do desmatamento pós-desaceleração

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 15 – Controle por meio da repressão

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 16 – Remover ou redirecionar subsídios

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br