Política

Sem aulas há nove meses, crianças vão à biblioteca por conta própria, em Rondônia

No distrito de Nazaré, em Porto Velho, as aulas foram paralisadas depois que a Polícia Federal encontrou irregularidades no contrato da empresa que fazia o transporte fluvial (Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real) Por Thaís Espinosa, com colaboração de Gabriela Rabaldo, especial […]

Por Amazônia Real Publicado em: 05/07/2019 às 17:06

No distrito de Nazaré, em Porto Velho, as aulas foram paralisadas depois que a Polícia Federal encontrou irregularidades no contrato da empresa que fazia o transporte fluvial (Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real)

Por Thaís Espinosa, com colaboração de Gabriela Rabaldo, especial para a Amazônia Real

Porto Velho (RO) – “Eu quero estudar para ser professora. Sempre gostei de estudar e queria fazer acontecer também com outros alunos”, reflete Gabriele dos Santos Alves, 12 anos, moradora de uma comunidade ribeirinha do distrito de Nazaré, a 98 quilômetros de Porto Velho, capital de Rondônia. O desejo de estudar motiva a menina a abrir, todos os dias, a pequena biblioteca, localizada a poucos metros de sua casa, onde ela e outras crianças reúnem-se para estudar por conta própria. As aulas, que deveriam ter iniciado em abril, estão interrompidas, devido à descoberta de um superfaturamento nos contratos da empresa Flecha Transportes e Turismo (FlechaTur), responsável pelo transporte fluvial dos estudantes.

A Polícia Federal deflagrou, em maio do ano passado, a Operação “Ciranda”, com o objetivo de desarticular a organização criminosa, composta por empresários da FlechaTur e agentes públicos. Segundo a PF, as licitações da Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho (Semed) foram fraudadas com desvios de recursos do Programa Nacional de Transporte Escolar (Pnate), verba federal repassada à prefeitura. Enquanto a situação não for regularizada, as escolas continuarão sem aulas.

A decisão de congelar as atividades na Escola Municipal de Ensino Fundamental Manoel Maciel Nunes, do distrito de Nazaré, ocorreu porque mais da metade dos estudantes são de comunidades adjacentes ao distrito. Eles necessitam do transporte de voadeira (barco a motor) para ter acesso de suas casas até o colégio. Na ausência desse transporte, eles ficam impossibilitados de estudar.

Comunidade ribeirinha no distrito de Nazaré no período da cheia do Rio Madeira (Foto: Gabriela Rabaldo/Amazônia Real)

A Amazônia obedece a um outro tempo, tempo este que respeita o modo de ser da população, que agora é obrigada a se retirar de suas origens para acessar os serviços básicos como os da educação.

A situação não se restringe às comunidades de Nazaré, que no Censo do IBGE de 2010 tinha 626 habitantes. Em outras seis localidades do rio Madeira os alunos ainda não retomaram as aulas em 2019.

“É muito ruim ficar tanto tempo sem aula. Sinto falta da escola e dos amigos”, disse Jenifher Torres, 12 anos. Ela conta que alguns de seus colegas mudaram com os pais para Porto Velho – mesmo contra a vontade – para não perder mais um semestre letivo. Em outros casos, os pais matricularam seus filhos na capital, onde foram morar com parentes.

No entanto, não são todas as famílias que têm a possibilidade de arcar com o custo de vida da cidade.

A estudante Gabriele sonha em ser professora (Foto: Gabriela Rabaldo/Amazônia Real)

“A maioria do pessoal já foi embora, ninguém quer perder o ano letivo todinho. Está vazio Nazaré, mas eu não quero ir embora; quero ficar aqui”, disse Gabriele, a menina que mobilizou os colegas para estudarem na biblioteca da comunidade.

Em Nazaré, as crianças têm liberdade. “Aqui a gente pode andar na rua; lá [em Porto Velho] não”, lamenta Leila Tavares, 12 anos, que lembra do percurso que fazia a pé até a escola.

Ela diz que no caminho sempre encontrava os colegas, subiam por entre as árvores, em busca das frutas prediletas. Na caminhada, também passavam por igarapés (braços de rio), no qual tomavam um banho refrescante para aliviar o calor após as aulas.

Biblioteca foi solução

Eduardo, o Dudu, no seu lugar preferido da biblioteca (Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real)

Ir à biblioteca do distrito de Nazaré, foi uma solução encontrada pelas crianças, enquanto os adultos prometiam uma solução. A sala de leitura fica próxima da Escola Municipal de Ensino Fundamental Manoel Maciel Nunes e sua fachada tem as mesmas cores: azul e branca. O fato de frequentarem todos os dias o local é uma tentativa de simular o ambiente escolar, mas sem a figura do professor.

Jenifher conta que na biblioteca um ajuda ao outro, como costumava acontecer em sala de aula. “Igual diz o ditado: uma mão lava a outra. Na escola, os amigos se ajudam com as tarefas quando alguém tem dificuldade”, diz ela. Porém, nesse ambiente de aprendizagem, as tarefas são definidas pelos próprios estudantes.

Irlanda Torres, a mãe de Jenifher, é pedagoga e secretária da escola Manoel Maciel Nunes. Ela disse que passa as atividades escolares para a filha, pois não quer que ela se prejudique nos estudos. A professora disse que, em diversos momentos, ela e seu marido pensaram em sair de Nazaré, mesmo a contra-gosto, para garantir o estudo da filha.

Na ausência da escola, os alunos se organizaram para criar um espaço de convívio, no qual eles podem ajudar uns aos outros. Quando a reportagem esteve em Nazaré, havia dez crianças na sala de leitura da biblioteca: quatro estavam escrevendo um cartaz para divulgação da biblioteca na comunidade – ideia surgiu para atrair mais pessoas para uso do espaço, inclusive adultos; duas meninas jogavam dama e os demais estavam conversando e, por vezes, folheando livros. Todos apontaram sentir muita falta da escola, quando abordados pela reportagem.

Momento de leitura na biblioteca em Nazaré (Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real)

Leila, 11 anos, relata que uma amiga sua, todas as manhãs ao se arrumar, abre a gaveta, olha para seu uniforme e sente uma vontade de vesti-lo e ir para o colégio, mesmo não tendo aula. Ela me diz assim: “eu fico olhando para minha farda me perguntando: por que fico sem aula? A gente sofre muito, dá vontade de vestir aquela farda e ir correndo para a escola voltar a estudar”.

Na Declaração da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre ‘Educação Para Todos’ foi estabelecido um Plano de Ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem do planeta. No documento Universal consta que:

“Cada pessoa – criança, jovem ou adulto [deve] estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo.”

Na era do sucateamento da educação, entretanto, presencia-se um quadro onde essas e muitas outras crianças Brasil adentro, infelizmente, aprendem desde cedo que para alcançarem seus objetivos terão que se esforçar muito mais do que outros. Isso fica ainda mais evidente em comunidades isoladas da Amazônia, como é o caso das crianças do distrito de Nazaré.

“Eu acho muito triste ficar sem aula todo esse tempo; a gente quer aprender, mas não consegue”, disse Leila, 11 anos.

“A gente quer estudar para ser o que quiser no futuro; se não estudar, não vai ter futuro para gente”, complementa Jenifher.

Até a publicação desta reportagem, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) não respondeu às solicitações de pedido para entrevista. Também foram frustradas as tentativas de contato para a secretaria informar a data de retorno das aulas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Manoel Maciel Nunes no distrito de Nazaré.

Operação Ciranda

Os alunos jogando dama na biblioteca (Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real)

A Controladoria Geral da União (CGU) e a Polícia Federal identificaram crimes de fraude e lavagem de dinheiro na Operação “Ciranda”. O objeto da investigação foi a contratação do serviço de transporte escolar fluvial para atender aos alunos da rede municipal. Foram apuradas fraudes no caráter competitivo do processo, com irregularidades na execução dos contratos licitatórios e superfaturamento dos preços do contrato.

Segundo a investigação da PF, o contrato de prestação de serviços foi assinado em 2014 e periodicamente renovado até fevereiro de 2018. Dados da PF apontam que o superfaturamento nesse período e o prejuízo aos cofres públicos foram superiores a R$ 20 milhões. Desde 2010, as empresas participantes do esquema ilícito e receberam mais de R$ 100 milhões em contratos com a Prefeitura de Porto Velho, segundo as investigações.

O nome “Ciranda” traz referência a um dos tipos de “brincadeira de roda” infantis, fazendo alusão ao esquema arquitetado entre os envolvidos nessa roda que resulta em um descaso para com estudantes.

Em 2018, mais de mil crianças não concluíram o ano letivo, devido às interrupções das aulas. Em alguns locais, o calendário escolar foi de apenas 10 dias.

Cheias do baixo Madeira

O caminho em direção à biblioteca na comunidade de Nazaré
(Foto: Thaís Espinosa/Amazônia Real)

As comunidades ribeirinhas situadas no entorno do Rio Madeira, também conhecidas como comunidades do baixo Madeira, possuem calendário escolar diferenciado, devido ao período de chuvas e às cheias que ocorrem periodicamente na região. O fenômeno, que antes era gerado por causas naturais, passou a ser imprevisível, desde a construção das hidrelétricas Jirau e Santo Antônio, em 2012.

Dados da Agência Nacional de Águas (ANA) apontam que, em 2014, o nível do rio Madeira atingiu 19,14 metros, um recorde histórico. Até 1997, o nível máximo que o manancial tinha subido era de 17,52 metros. Os moradores mais antigos pela enchente relatam que naquele ano a água foi subindo devagar, levando alguns dias até chegar ao nível mais elevado. Portanto, eles tiveram tempo de se retirar de suas casas com segurança e levarem consigo os seus pertences. Já em 2014, foi diferente, pois, em aproximadamente 2 horas, suas casas já estavam tomadas pela água: um fenômeno que nunca tinham observado.

A autora Thaís Espinosa é administradora pública pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Atualmente, mora em Rondônia e trabalha em uma casa de cultura independente. Durante a graduação, desenvolveu trabalhos com biblioteca comunitária e gestão participativa. Em 2015, esteve pela primeira vez em Rondônia, onde realizou um estudo sobre a cooperativa de agrossilvicultores, RECA. Nos dois anos seguintes, voltou à região para atuar em projetos interdisciplinares em três comunidades ribeirinhas do baixo Madeira.

Gabriela Rabaldo, é jornalista graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e estagiou como repórter na Agência J, produzindo notícias vinculadas aos Direitos Humanos. Antes disso, trabalhou no Jornalismo B como repórter e fotógrafa. Também realizou o curta documental “Os Estrangeiros da Vila Tronco”, em 2014, que denunciava violações cometidas no processo de remoção das famílias da Vila Tronco, em Porto Alegre, para as obras prometidas para a Copa do Mundo.

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Reportagem Noticiosa

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