A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

Túmulos estatais

A construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, começou em junho de 2011. Sua inauguração oficial foi cinco anos depois, em maio de 2016. A última das suas 18 gigantescas turbinas (uma única delas, com potência […]

Grupamento de Choque da Pm doPará no presídio de Altamira durante revista em março de 2019 (Foto Susipe/Ascom)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 08/08/2019 às 16:58

A construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, começou em junho de 2011. Sua inauguração oficial foi cinco anos depois, em maio de 2016. A última das suas 18 gigantescas turbinas (uma única delas, com potência de quase 600 megawatts, seria a 40ª maior hidrelétrica do país), deverá entrar em operação em novembro deste ano. Estará então com potência suficiente para atender o consumo de energia de 60 milhões de pessoas, 30% da população brasileira.

É uma obra gigantesca, no Brasil como em qualquer país do mundo, incluindo os Estados Unidos e outros tão ricos. A Norte Energia gastou mais de 40 bilhões de reais na usina (o equivalente a mais de 10 bilhões de dólares, sem atualização do valor). O BNDES forneceu R$ 26 bilhões, com custo menor do dinheiro. A empresa chegou ao final de 2018 como a terceira maior tomadora de crédito do banco estatal, abaixo apenas da Petrobrás e da Embraer.

No auge da construção, a empresa empregou 30 mil pessoas. Em 2010 a população de Altamira, o município mais importante da região e o mais impactado pela implantação do projeto, era de 100 mil pessoas. No pique da obra, atingiu 150 mil. Os problemas sociais cresceram nessa progressão. Um dos mais graves, a violência. A única prisão disponível era o do Centro de Recuperação Regional, o único em atividade até agora, com 343 detentos partilhando um espaço para apenas 163 pessoas, sob os cuidados de 33 agentes penitenciários.

No mesmo ano em que iniciou a hidrelétrica, em 2011, a Norte Energia assumiu compromisso com a construção de um presídio com capacidade para 612 vagas, como parte de um programa de R$ 125 milhões destinados à segurança pública em Altamira. As obras da penitenciária já estão em fase de conclusão, “em sintonia com os prazos definidos com o governo do Estado”, segundo a empresa. Ela assegura que “cumprirá rigorosamente, como fez até aqui, todos os seus compromissos assumidos”.

Não surpreende, assim, que um presídio, que não é presídio, criado para abrigar criminosos de baixa periculosidade, empenhado na sua recuperação, como algo plenamente viável, tenha sido palco, no dia 29 de julho, de massacre praticado pelos integrantes de uma facção criminosa contra os membros de facção inimiga, resultando em 58 presos executados, carbonizados, decapitados ou esquartejados.

Dois dias depois, outros quatro detentos que sobreviveram ao ataque foram assassinados quando eram transferidos para um presídio em Marabá, elevando o número de vítimas para 62.

A associação com o novo presídio, ou a sua falta, foi imediata: a chacina teria ocorrido se as novas instalações já estivessem prontas? A Norte Energia rejeitou “com veemência qualquer intenção de atribuir responsabilidade” à “maior usina hidrelétrica totalmente brasileira, por problemas de ordem conjuntural, e novamente afetar a imagem e os benefícios gerados pelo empreendimento para Altamira, para a região, e para o país”.

Na nota que divulgou, a empresa citou as benfeitorias que possibilitou, “como o controle da malária e a evolução da qualidade de vida de famílias que saíram de palafitas para residir em casas construídas em bairros com pavimentação asfáltica, saneamento, escolas, unidades de saúde e áreas de lazer”.

Ao auditar as demonstrações financeiras de 2018 da Norte Energia, a Ernst & Young Auditores Independentes observou, de fato, que a companhia “vem despendendo quantias significativas em custos de organização, desenvolvimento e pré-operação, que resulta em situação de capital circulante líquido negativo significativo em 31 de dezembro de 2018”. Alertou, porém, que a conclusão das obras de construção de Belo Monte e consequente geração de receitas, “dependem da capacidade da Companhia em continuar cumprindo o cronograma de obras previsto, bem como a obtenção de recursos financeiros necessário s, seja de seus acionistas e/ou de terceiros”. A Ernst Young ressalvou que sua opinião “não está ressalvada em relação a esse assunto”.

Para poder enfrentar, contornar ou superar a oposição ou rejeição da hidrelétrica, a concessionária de energia gastou mais do que era obrigada para compensar ou mitigar os efeitos negativos da obra? Se, mesmo assim, o que realizou com esse propósito ficou aquém das necessidades reais da população atingida, como explicar essa contradição? Ineficiência da empresa? Ou dos governos aos quais se associou para promover as ações ambientais e sociais? Ou a soma dos dois fatores, mais os aspectos locais – na região e no Estado – desse tipo de empreitada?

O componente especificamente conjuntural ressaltado pela Norte Energia, do sistema prisional, favoreceu mais uma barbaridade por trás das muralhas de detenção de criminosos. Entre 2006 e 2019, o número de vagas nos presídios do Pará aumentou 67%, passando de 5.965 para 9.934.

O problema é que a população carcerária, que era de 7.787 pessoas em 2006, chegou a 18.229 no final do primeiro semestre deste ano. Alta de 134%, o dobro da expansão das vagas. O incremento do déficit, que era de 1.822 presos em 2006, subiu para 12.295 em 2019. Explosão programada.

O Pará é um dos Estados nos quais mais presos são assassinados dentro dos presídios. Em 2017, último dado disponível, citado pela Folha de S. Paulo, o Infopen (sistema de estatísticas das prisões brasileiras) registrou 21,8 óbitos criminosos para cada 10 mil presos, número inferior apenas ao de Estados onde ocorreram grandes chacinas naquele ano (Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte). Essa taxa é cinco vezes maior que a média brasileira. A taxa de São Paulo é de 0,4 óbitos criminosos para 100 mil habitantes.

No ano passado, 6% dos presos em penitenciárias paraenses conseguiram fugir (1.053), taxa que ficou um pouco acima da média na região Norte (3,3%) e foi o dobro da taxa nacional (de 3,2%). As rebeliões somaram 47 no Estado, quase 200 por rebelião, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público.

A mais grave delas aconteceu no Complexo Penitenciário de Santa Izabel, na região metropolitana de Belém, em abril, na qual 26 detentos morreram, incluindo cinco criminosos que pretendiam resgatá-los e um agente prisional.

No caso de Altamira, ficou escancarada mais uma deficiência grave na gestão da população carcerária: o governo não dispõe de – ou não usa – inteligência interna. Como ignorar completamente o planejamento e a execução do assassinato selvagem de 38 detentos por outros detentos, que não dispunham dos instrumentos e armas adequados para praticar os extremos de violência que usaram nas mortes? Foi falha ou uma conivência tácita e tática com os atos, que, sangue, pernas, braços e cabeças cortadas à parte, reduzem a superlotação nas casas de horrores, em que as prisões brasileiras se transformaram?

A imagem que abre este artigo mostra o Grupamento de Choque da PM do Pará em revista no presídio de Altamira, em março de 2019

(Foto Susipe/Ascom)

Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.
* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo..
* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.
* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.