A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

O que ler para conhecer a Amazônia (1)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 05/12/2022 às 12:45

Em 6 de janeiro de 1980, na minha página Jornal Pessoal, em O Liberal, publiquei o artigo “Guia de leitura de uma década na Amazônia”, um balanço do que foi publicado nos anos 1970. Reproduzo-o em partes, na esperança de que continue a servir aos interessados em conhecer melhor a região.

A Amazônia não foi apenas um dos grandes temas orais da década de 1970. Sobre ela também se escreveu muito, enriquecendo a relação de 5.700 títulos inventariados pelo Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação até o início dos anos 70. O esforço intelectual sobre a Amazônia nesse período se encaminhou em dois sentidos: um, na tentativa de recuperar o passado da região, e outro procurando compreender seus complexos problemas atuais.

O primeiro tipo de preocupação degenerou frequentemente em mera historiografia, sucessão de datas e de nomes que não constitui um significado, uma interpretação. Largamente sustentada em dinheiro público, essa atividade consistiu mais na reedição de antigos títulos, raramente obedecendo aos critérios de uma política cultural do que a geração de novos estudos.

Refletiu também a ideologia das classes dominantes local: surpreendidas pela penetração dos novos colonizadores e sem condição ou disposição para resistir, a antiga oligarquia extrativista se volta para o passado, o decantando, mitificando. Defende até alguns temas atraentes, como os ecológicos, mas isso é apenas um pano de fundo: sob o extrativismo a natureza estaria muito menos ameaçada, mas a maioria da população não tirava qualquer vantagem disso. A seringueira permanecia em pé, mas o seringueiro definhava até à morte sob ela.

Nos anos 1970, o capitalismo chegou à Amazônia. Essa frase foi repetida em vários livros, cujos autores não tinham qualquer interesse por puxiruns, sairés, botos e quejandos da civilização ribeirinha. Eles eventualmente percorriam as “frentes pioneiras”, interessados no conflito pela posse da terra nas grandes empresas, sob as novas relações de produção, na última cidadela do mundo primitivo, que continuou ruindo ao longo desses 10 últimos anos: as sociedades indígenas.

O governo talvez tenha sido a mais pródiga fonte de trabalhos acadêmicos sobre a região, mas esses produtos se acham dispersos, muitas vezes sequer foram lidos, não formam um corpo doutrinário e quase sempre dormem em estantes fechadas com as sete chaves do sigilo e da confidencialidade. A listagem desses estudos seria enorme, mas poucos deles se destacam da inanição geral e sua maior serventia deve ter sido a de sufocar a realidade com a ideologia. Além de enriquecer um pouco mais os consultores que preparam esses documentos, sob encomenda.

A história
Desde que José Veríssimo deixou de escrever, na primeira década do século [XX], não surgiu nenhum livro tão importante quanto O Negro no Pará, de Vicente Salles, que a Universidade Federal do Pará editou em convênio com a Fundação Getúlio Vargas, em 1971. O livro é essencial não apenas por ter sido escrito por um intelectual atualizado, que submeteu vasta bibliografia uma seleção rigorosa, mas também porque redime o historiador dos pecados cometidos por autores apressados, desatentos, esquematizadores.

Vicente Salles não deixou passar detalhe algum impunemente. Depois de levantar toda a bibliografia existente, foi às fontes primárias, que dão o valor real à história, mas que têm sido desprezadas pelos historiadores contemporâneos. Se não a inaugura entre nós, o livro pelo menos restaura a história social. A parte sobre as lutas sociais é antológica.

Trabalhos originais foram também os de Amaral Lapa: Economia colonial, editado em 1973, pela Perspectiva (de São Paulo), que nos interessa especificamente pelo capítulo sobre a navegação entre Cuiabá e Belém pelas monções (expedições fluviais), e Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará, que vale sobretudo pela documentação inédita, embora a atuação da inquisição no Pará não tenha tido o mesmo destaque de outros lugares.

De Mário Barata saiu Poder e independência no Grão-Pará (1820/1823), tese premiada pelo Conselho Estadual de Cultura, publicada em 1974; O significado da produção de cacau na região amazônica, do norte-americano Dauryl Alden, editado pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA, que realmente abordou um tema muito mal conhecido.

De padrão historiográfico, saiu o bom trabalho de Donato Mello Júnior sobre Antonio José Landi – arquiteto de Belém; História de Belém, de Ernesto Cruz, em dois volumes; História de Belém do Grão-Pará, de Augusto Meira Filho, também em dois volumes; e Elementos para a história da magistratura paraense, de Sílvio Hall de Moura.

Tão ou mais importantes foram as reedições. O Conselho Federal de Cultura publicou as gravuras da Viagem filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, em um belo trabalho gráfico no formato de duas caixas decoradas, e algumas das memórias do naturalista baiano, mas esqueceu do texto das viagens. A edição demonstra a notável acuidade e a permanente atualidade do viajante.

À editora Itatiaia, de Belo Horizonte, deve-se a melhor “amazoniana” da década. Também em edições bem cuidadas, relançou obras fundamentais para a compreensão do processo histórico e natural da Amazônia: O naturalista no rio Amazonas, de Henry Walter Bates, e seu complemento necessário, Viagens pelos rios Amazonas e Negro, de Alfred Wallace; Viagem ao Brasil, de Luiz e Elizabeth Agassiz (a esposa foi quem escreveu o livro a partir das anotações do marido); História da Missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão, de Claude d’Abeville, uma das raras fontes de referência sobre o massacre dos índios tupinambá do Maranhão e do Pará; Brasil: Amazonas – Xingu, do príncipe Adalberto da Prússia.

E mais: Nas selvas do Brasil, a famosa viagem do presidente americano Theodore Roosevelt; O país das amazonas, do barão de Santa Anna Nery; Exploração da Guiana brasileira, de Hamilton Rice, cujo maior valor é o documentário fotográfico sobre o futuro território [agora Estado] de Roraima.

A Itatiaia deve também relançar as obras completas [que não foram concluídas] de Henry Coudreau, o polêmico e irrequieto naturalista francês que percorreu os vales dos principais rios do Pará entre o final do século passado e o início do atual [o XX]. Já saíram as viagens ao Tapajós e ao Xingu.

A Universidade Federal do Pará, ainda na administração do reitor José da Silveira Neto, editou dois livros de José Veríssimo na Coleção Amazônica: os Estudos Amazônicos e A pesca na Amazônia. Também lançou Cozinha amazônica, o melhor roteiro histórico-gastronômico a respeito.

A imagem que abre este artigo é da Avenida Presidente Vargas, no centro de Belém do Pará (Foto: Cláudio Santos/AG. Pará)

Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

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Sobre a matéria

Citações

"A Amazônia não foi apenas um dos grandes temas orais da década de 1970. Sobre ela também se escreveu muito, enriquecendo a relação de 5.700 títulos inventariados pelo Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação até o início dos anos 70", diz Lúcio Flávio Pinto.

O Negro no Pará

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Local de Cobertura

Belém (PA)

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.