Meio Ambiente

“Eles iam entrar na área militar e não ia prestar”, diz fiscal do Ibama sobre revolta de garimpeiros em Humaitá

Com quase 40 anos trabalhando como fiscal ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na Amazônia, Francisco Chagas Matias, 59 anos, vivenciou horas de terror em Humaitá, no sul do Amazonas, quando ficou cara […]

Garimpeiros incendiaram prédios públicos em Humaitá (Foto reprodução Youtube)

Por Fabio Pontes Publicado em: 02/11/2017 às 15:40

Com quase 40 anos trabalhando como fiscal ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na Amazônia, Francisco Chagas Matias, 59 anos, vivenciou horas de terror em Humaitá, no sul do Amazonas, quando ficou cara a cara com garimpeiros enfurecidos, que ameaçaram ele, seus colegas e atearam fogo nas sedes do Ibama, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na última sexta-feira (27/10).

O ataque foi em retaliação a operação “Ouro Fino” que destruiu com fogo 37 das 42 balsas de garimpo de ouro apreendidas dentro de unidades de conservação federal pelo Ibama. Os garimpeiros e populares se abasteceram de gasolina em postos de combustíveis da cidade e partiram pelas ruas, em motocicletas ou a pé, e incendiaram veículos oficiais, um barco do ICMBio e ameaçaram militares da Agência Fluvial da Marinha do Brasil.

Matias, que tem porte de arma, disse que no ápice do conflito, quando os prédios eram tomados pelo fogo, foi “convocado” por um capitão-tenente (que não teve o nome divulgado pela Marinha) para encarar a turba e impedi-la, com arma em punho, de atacar a agência fluvial da Capitania dos Portos. Lá estavam os fiscais do Ibama e do ICMBio, refugiados (21 pessoas), e os familiares dos militares.

“Eles iam entrar. Iam entrar na área militar e não ia prestar”, disse Matias. A função dele era proteger um muro da agência. A ordem estava clara: caso alguém quisesse pular “era pra meter bala”, contou.

Após proteger seus colegas e as famílias dos militares e saírem todos vivos do ataque dos garimpeiros, Matias atribuiu o feito à ajuda divina. “Você só sabe que tem Deus na vida. A defesa de você é Deus e graças a Ele estou aqui. Entre mortos e feridos estamos todos aqui.”

Para ele, o ataque em Humaitá aos prédios públicos federais foi um “verdadeiro ato de terrorismo”.

O fiscal ambiental do Ibama Francisco Chagas Matias concedeu um depoimento exclusivo à agência Amazônia Real na superintendência do órgão, em Manaus, onde contou o momento de aflição e tensão que viveu na revolta em Humaitá. Devido as ameaças, ele pediu para não ser fotografado. Leia a seguir:

Ataque na sede do Ibama em Humaitá (Fotos reprodução Facebook)

“Nós estávamos na Operação Onda Verde em outro município. Recebemos a instrução para prorrogar o período [em campo]. As equipes que quisessem continuar fossem para Porto Velho, pois iam trabalhar em Humaitá. Mas ninguém sabia especificamente que trabalho era. Viemos três fiscais e o restante da equipe voltou [para Manaus]. Aí compomos a equipe com o pessoal de Porto Velho, Amazonas e Roraima. O pessoal de Roraima já estava lá na região e continuou o trabalho.

Ficamos em Humaitá, aguardando as orientações. Aí formaram as equipes e começou a Operação Ouro Fino. Foram divididas as equipes. Uma equipe foi no barco do ICMBio. Força Nacional, Ibama, Exército e Marinha foram acompanhando na logística. Fiquei para fazer a patrulha no início da reserva, a Flona de Humaitá. Na operação, uns trabalhavam de dia e outros à noite, junto com a Marinha.

No dia que fui embarcar, sofri um acidente quando descia no porto da Marinha. Torci o pé e só passei meio dia embarcado. Enquanto pedi passagem para ir embora para Manaus, fiquei dando assistência no Ibama, fazendo autuações de futuros garimpeiros que viessem, que fossem encaminhados.

Quando foi na quarta-feira (25/10) já começou aquele zunzunzum. O pessoal que estava lá em cima [no rio Madeira] começou a fazer as autuações, as apreensões, já tinha apreendido as dragas. Nós tínhamos problemas de como buscar as balsas. Um camarada emprestou um rebocador para buscar as balsas. E o pessoal lá não tinha comunicação que não fosse pelo rádio do Exército. Tudo era muito distante. Fizemos um rancho (compras de alimentos) para o pessoal que tinha ficado em campo e mandamos pelo pessoal do Exército que foi para lá para trocar os colegas.

O rebocador foi e voltou com sete balsas. O cara [operador do rebocador] foi ameaçado de morte pelo pessoal do garimpo. Como ele vinha descendo e sofreu a ameaça, o pessoal foi de espingarda lá, mostrou a espingarda pra ele. Ele se apavorou e deixou as balsas lá. Nisso houve um desencontro com a gente. Quando a Marinha subiu [o rio Madeira] com o pessoal do Ibama para procurar o rebocador, ninguém o viu. Ninguém encontrava o rebocador. Isso tudo já na quinta-feira [26/10].

No dia seguinte [27/10], um colega meu, que estava no hotel [em Humaitá], me ligou e disse: ‘Matias, vem aqui que o pessoal está se aglomerando na frente do porto. Estão dizendo que vão tocar fogo, ameaçando. Soltaram rojões contra a embarcação da Marinha que estava lá embaixo’.

Aí fomos lá eu e outro colega.

Cheguei lá, encontrei outro colega que estava preocupado com o sumiço do rebocador. Aí eu falei: ‘aguarda aí a decisão de lá [dos superiores]. Vou voltar para o Ibama’.

Quando subi a rampa vi aquela multidão vindo para frente da saída. Aí puxaram a corrente e fecharam a saída. Aí eu disse para meu colega que estava dirigindo: ‘te prepara aí para qualquer coisa. Eu vou descer e vou baixar a corrente’.

Aí já desci com a arma em punho.

A multidão [além de garimpeiros, tinha populares, comerciantes e políticos] gritava tudo o que não presta. Abaixei a corrente, voltei para a viatura e fomos para o Ibama. Comuniquei o fato ao chefe do posto que na mesma hora ligou para o comando da polícia avisando. Isso era uma e meia para duas da tarde [de sexta-feira].

Eram vinte para as cinco quando sai do Ibama. Fui buscar um colega que estava na Marinha. Até esse momento não tinha chegado o policiamento. Estava tudo normal, tranquilo. Quando chego à Marinha, passaram uns dez minutos, começaram a passar pelo WhatsApp informação dizendo que iam tocar fogo no Ibama, no ICMBio, tão indo agora pra lá.

Quando demos fé vimos a fumaça no Ibama, aí mais na frente do ICMBio. Eles apedrejaram a viatura da Força Nacional. Há uma história de que também tentaram virar um carro do Exército.

O comandante da Marinha [um capitão-tenente] recebeu a informação de que eles [a multidão] estavam indo para a Marinha, que iam tocar fogo nos barcos da Marinha, que estava apoiando o Ibama.

O comandante nos falou: ‘Vamos nos preparar porque o pessoal tá vindo pra cá. Vamos fazer uma barreira aí na estrada’.

Aí ele [o capitão-tenente] perguntou: ‘Quem é que tem arma aí?’ Só eu estava armado. Ele me disse: ‘Seu Matias, o senhor tem que ir com roupa de civil’. Eu não tinha, pois estava trabalhando. A minha roupa estava no hotel. ‘Então vou arrumar uma roupa para o senhor’, ele me disse.

Isso já estava escurecendo, eram quase sete horas. Lá vem aquela multidão com apitaço, com moto, carro, buzina, soltando foguete, jogavam bomba. Estavam tocando o terror. Quando ela chegou perto do portão, o comandante disse que eles não podiam invadir a área militar.

Dentro da Marinha fica a vila onde eles moram com as famílias. Eles mandaram as famílias para o prédio da agência, que fica uns 100 metros da entrada, já na beira do barranco do rio onde também estavam os meus colegas do Ibama. Aí o comandante deu dois tiros pra cima. Eles iam entrar. Iam entrar na área militar e não ia prestar.

A multidão passou uns 50 minutos na frente [da sede da Marinha] tocando o terror. Depois foram para a casa do servidor [do Ibama]. Iam tocar fogo, mas não tocaram. Depredaram tudo, saquearam tudo.

A mulher dele ligou pra ele e falou ‘estão vindo pra cá’. Ele disse: ‘Então atravessa a rua e vai pra casa do comandante [do Exército]. O quartel fica bem na frente da casa. Só deu tempo de ela atravessar a rua e correr para o quartel. Ele já estava no 54º. BIS [Batalhão de Infantaria de Selva] pois lá era a área de pouso do helicóptero do Ibama.

Ficamos aguardando na sede da Marinha até meia-noite. Tinham as equipes que estavam ainda lá pra cima e não tínhamos como nos comunicar com eles.

Eles gritavam que iam tocar fogo no barco do ICMBio. Não tínhamos como ligar. Nosso telefone caiu a bateria. A única comunicação era via Exército. Nós nem sabíamos que a outra equipe estava no 54º. BIS.

Na hora que saímos do Ibama, só tinha ficado dois [servidores] administrativos. Aí eles foram embora e só ficou o chefe do posto. Ele conseguiu fugir por trás com o segurança.

A multidão virou as viaturas, derrubou uma seringueira [árvore] que tinha lá na frente, saqueou motosserras, todo o material que estava apreendido.

Por volta da meia-noite chegou a Polícia Rodoviária Federal e viaturas da Polícia Federal. Depois chegou o Exército para fazer uma patrulha de resgate do pessoal da embarcação [do ICMBio]. Fomos tirados da base naval pela PRF e fomos para o 54º. BIS.

Quando foi umas 11 horas [de sábado (28)], fomos com a polícia resgatar as nossas coisas no hotel. A polícia foi lá, fez uma varredura para todo mundo pegar as coisas. Depois fomos para o 54º. BIS para dormir lá no quartel. Aí mais tarde chegou o Exército com o pessoal do ICMBio que tinha sido resgatado do barco. Lá que soubemos a história do barco [incendiado].

De manhã [dia 28] aguardamos as orientações de Brasília para saber o que ia ser feito, qual seria o procedimento. Quando foi meio-dia fomos para Porto Velho, em Rondônia.”

Prédio do Ibama incendiado (Foto: Marcos Freire/FotosPúblicas)

***

A Polícia Federal em Porto Velho (RO), que fica na divisa com a cidade de Humaitá, abriu inquérito para investigar as circunstâncias da revolta popular contra os servidores do Ibama, ICMBio, Incra e militares da Marinha para identificar e punir os responsáveis pelas ameaças e pelo danos ao patrimônio púbico destruído pelos ataques de fogo. Entre os suspeitos há comerciantes e políticos apoiadores dos garimpos ilegais na região.

No dia 30 de outubro, o Ministério Público Federal no Amazonas divulgou uma nota em que reforçou a legitimidade das instituições ambientais de fiscalizar e exercer o poder de polícia no combate aos crimes ambientais dentro das unidades de conservação invadidas por garimpeiros no sul do estado. “O rio Madeira está sendo alvo de uma atuação, por parte de garimpeiros ilegais, bastante nociva há muito tempo, o que tem ocasionado sérios prejuízos ao meio ambiente”, disse.

O MPF informou também a respeito do resultado da investigação de outra revolta ocorrida em Humaitá, em 25 de dezembro de 2013. Na ocasião, prédios da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Casa de Saúde Indígena (Casai) foram incendiados por populares. Na nota do dia 30, o MPF diz que denunciou à Justiça Federal 11 pessoas por crime de dano qualificado, previsto no artigo 163 do Código Penal, e podem ser condenados a até três anos de prisão e multa. Leia mais aqui.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Fabio Pontes

Fabio Pontes é jornalista acreano, há mais de uma década escrevendo, desde a Amazônia, sobre meio ambiente, povos indígenas e comunidades extrativistas, crises migratórias, mudanças climáticas (enchentes e secas severas) e a política regional. Já produziu reportagens para os principais veículos de imprensa do Acre e do país. Desde 2016 escreve para a Amazônia Real. Twitter: @fabiospontes