Philip M. Fearnside

O Genocídio dos Waimiri-Atroari: um possível reconhecimento histórico

Sem dúvida, é um acontecimento histórico: o Ministério Público Federal agora acusa o Estado brasileiro de genocídio do povo indígena Waimiri-Atroari na época da construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista) [1]. A importância de reconhecer eventos incômodos na história é […]

Índios Waimiri Atroari (Foto: Mario Vilela/Funai)

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 12/03/2018 às 18:48

Sem dúvida, é um acontecimento histórico: o Ministério Público Federal agora acusa o Estado brasileiro de genocídio do povo indígena Waimiri-Atroari na época da construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista) [1]. A importância de reconhecer eventos incômodos na história é sempre presente, como colocado na famosa frase de George Santayana na sua obra de seis volumes publicada em 1905: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado são condenados a repeti-lo.” ([2], p. 95).

Grande parte da população de Manaus nem era nascida na época da construção da BR-174 na primeira metade da década de 1970, e muitos não sabem desse evento, muito menos se lembram dos sinais daquilo que estava acontecendo a pouco mais de 100 km desta cidade. A rodovia estava sendo construída pelo Exército, e estava proibida a entrada de qualquer civil. O que a população de Manaus viu foi a o trânsito de tropas, inclusive com veículos blindados, subindo a estrada para a sua interação com um povo sem as mínimas condições de resistir um ataque com armas modernas.

Moradia do povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. (Foto: EBC)

Em 1972, a FUNAI estimou a população dos Waimiri-Atroari em 3 mil (ver: [3]), mas em 1986, quando a hidrelétrica de Balbina estava sendo construída, a FUNAI estimou a população deste mesmo povo em apenas 374 indivíduos [4]. O que aconteceu com os mais de 80% do grupo que desapareceu?

O José Porfírio de Carvalho, falecido em 2017 [5], passou seis meses na cadeia por ter publicado no seu livro “Waimiri-Atroari: A História Que Ainda Não Foi Contada” um fac-símile sobre a ordem do Exército autorizando “demonstrações” de metralhadoras, granadas e dinamite para convencer os indígenas a não resistir à construção da estrada através do seu território[6].

Crianças da etnia Waimiri-Atroari (Foto: Mário Vilela/Funai)

Não havia nenhuma epidemia que explicasse a queda drástica na população dos Waimiri-Atroari, fato admitido em um evento público em Manaus quando questionei o oficial do Exército responsável pela saúde na construção da BR-174. Os indígenas que sobreviveram esta época são muito reticentes a falar sobre os acontecimentos, mas alguns deles já contaram as suas experiências no livro “A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que kamña matou kiña” [7].

A represa de Balbina inundou duas aldeias do grupo e eliminou a principal fonte de alimentação: os tracajás e peixes do rio Uatumã. Apesar do impacto grave de Balbina sobre os Waimiri-Atroari, não foi esta obra que causou o sumiço de 80% do grupo, sendo que esta queda já havia acontecido antes, como consequência da BR-174 e de uma estrada cortando a área indígena para ligar a BR-174 com a mina de cassiterita em Pitinga.

Os indígenas que saíram das suas aldeias inundadas por Balbina se congregaram ao longo da rodovia BR-174, onde receberam comida em quentinhas da mineradora que operava a mina em Pitinga. Os indígenas estavam rapidamente perdendo a sua capacidade de sobreviver de forma autônoma. O Programa Waimiri-Atroari, financiado pela ELETRONORTE, a empresa paraestatal proprietária de Balbina, conseguiu convencer os indígenas de sair da beira da BR-174 e construir uma nova aldeia afastada da estrada. Isto foi essencial para salvar o grupo fisicamente e permitiu um aumento da sua população, que hoje já passou de 1,5 mil indivíduos.

No entanto, houve um pesado custo em perda de cultura [9]. Jovens foram até levados para comer hambúrguer no Amazonas Shopping, em Manaus [10]. Antropólogos [11] e organizações não governamentais defensores do grupo, como o Movimento de Apoio a Resistência Waimiri Atroari- MAREWA, organizado pelo Egydio Schwade, foram excluídos da área [12]. Egydio Schwade, incansável defensor dos Waimiri-Atroari, morou em uma aldeia do grupo durante quatro anos, junto com sua família, antes de ser expulso por ordem expressa de Romero Jucá, então presidente da FUNAI [13].

Hoje, a ação civil pública No. 1001605-06-2017.4.01.3200 sobre o caso Waimiri-Atroari segue pelos trâmites na 3a Vara Federal do Amazonas. Apesar de ser de conhecimento geral que houve um massacre, a justiça ainda irá julgar os fatos. As revelações, em potencial, serão de grande importância para a população de Manaus digerir e não esquecer.

NOTAS

[1] MPF (Ministério Público Federal). 2018. Estado brasileiro defende políticas da ditadura que causaram genocídio do povo Waimiri Atroari, acusa MPF. Assessoria de Comunicação, Procuradoria da República no Amazonas, Manaus. 07 de março de 2018.

[2] Santayana, G. 1905: Reason in common sense. In: The life of Reason: The Phases of Human Progress. New York, NY, E.U.A. Vol.1.

[3] Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas. 2012. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade: O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari. Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, Manaus, Amazonas. 92 p.

[4] FUNAI/ELETRONORTE. s/d. (1987). Waimiri Atroari. Fundação Nacional do Índio (FUNAI) & Centrais Elétricas do Norte do Brasil, S.A. (ELETRONORTE), Brasília, DF. 36 p.

[5] Valente, R. 2017. José Porfírio Fontenele de Carvalho (1946-2017): Mortes: Um dos principais indigenistas do país. Folha de São Paulo. 15 de maio de 2017.

[6] de Carvalho, J.P.F. 1982. Waimiri-Atroari: A História Que Ainda Não Foi Contada. Brasília, DF. 180 p. (http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Bal/Outros%20documentos/Livro%20WAIMIRI%20ATROARI.pdf)

[7] Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas. 2014. A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que kamña matou kiña. editora Curt Nimuendajú. Campinas, São Paulo. 175 p.

[8] Fearnside, P.M. 2015. A Hidrelétrica de Balbina: O faraonismo irreversível versus o meio ambiente na Amazônia. pp. 97-125. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 1. Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas, Brasil. 296 pp.

[9] Rodrigues, R.A. & P.M. Fearnside. 2014. Índios Waimiri-Atroari impactados por tutela privada na Amazônia Central. Novos Cadernos NAEA 17(1): 47-73.

[10] Pinheiro, R. 1998. Estudantes Waimiri vão retribuir visita no dia 30. Amazonas em Tempo, Manaus, p. A-4, 21 de abril de 1998.

[11] Baines, S.G. 1996. A Usina Hidrelétrica de Balbina e o deslocamento compulsório dos Waimiri-Atroari. p. 747-759 In: Magalhães, S.B., R.C. Britto & E.R. de Castro (eds.) Energia na Amazônia. Museu Paraense Goeldi, Universidade Federal do Pará & Associação de Universidades Amazônicas, Belém, Pará. 2 vols. 996 p.

[12] Rodrigues, R.A. 2013. Vidas Despedaçadas: Impactos Socioambientais da Construção da Usina Hidrelétrica de Balbina (AM), Amazônia Central. Tese de doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia, Universidade Federal do Amazonas-UFAM, Manaus, Amazonas. 369 p.

[13] Santana, R. 2014. Livro sobre genocídio Waimiri-Atroari é lançado e respalda trabalho da CNV do Amazonas. Comissão Indígena Missionária- CIMI.

A fotografia que ilustra esse artigo é dos índios Waimiri-Atroari (Foto: Mario Vilela/Funai)

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

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Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br