Família de menino, curado da raiva humana, vive em situação vulnerável em Manaus

Por Izabel Santos Publicado em: 22/07/2019 às 10:43

Manaus (AM) – Mais de um ano depois do surto de raiva humana que atingiu uma família da Reserva Extrativista do Rio Unini, no município de Barcelos, no norte do Amazonas, Mateus Santos da Silva, 15 anos, o menino ribeirinho que sobreviveu à doença, luta para superar as sequelas da enfermidade. A consequência do rigoroso tratamento impôs aos pais, Levi e Débora Silva, e um irmão dele, Tiago, a condição de vulnerabilidade social na capital do Amazonas. Sem condições de arcar com as despesas com a renda de um salário mínimo, eles contam com doações de amigos e com o apoio do hospital público Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD).

“Estamos na luta para tentar conseguir uma casa através da direção do hospital na pessoa do doutor Magela”, diz o líder extrativista e pai de Mateus, Levi Castro da Silva, referindo-se ao infectologista da FMT Antônio Magela. “O prefeito [de Barcelos] promete, promete e nunca cumpre”, acrescenta ele.

Logo que a família mudou-se para Manaus, em dezembro de 2017, a Prefeitura de Barcelos pagou alguns meses do aluguel, mas depois suspendeu a ajuda. “Agora estamos com um defensor público e vamos entrar com uma ação, porque isso é negligência”, diz o extrativista.

Atualmente, o aluguel de R$ 500 mensais da casa é pago com a renda do casal Levi e Débora Silva. Em Manaus, o extrativista consegue dinheiro trabalhando como camelô. Além das despesas com energia e alimentação, a família precisa pagar despesas com a higiene do garoto internado como: lenços umedecidos, fraldas, pomadas e até relaxante muscular. Levi diz que esse material deixou de ser oferecido há três meses pelo hospital FMT.

O ataque dos morcegos

Resex Rio Unini (Foto: Josângela Jesus)

Levi Castro Silva, de 49 anos, é um das lideranças que fundou a Reserva Extrativista Rio Unini, unidade de conservação onde estão localizadas dez comunidades ribeirinhas do rio Negro.

Na localidade, 270 pessoas foram atacadas por morcegos (da espécie Desmodus rotundus) em 2017, diz à época a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS). O caso foi tratado como surto de raiva por especialistas.

As pessoas mordidas pelos morcegos não foram vacinadas pela FVS, ligada à Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam), nem pela Prefeitura de Barcelos.

A família de Levi também foi mordida por morcegos. Seu filho mais velho, Lucas e a filha caçula, Miriã, morreram em decorrência da raiva humana em 16 de no novembro e 2 de dezembro de 2017, respectivamente. Lucas tinha 17 anos e Miriã, 10 anos, quando faleceram.

O extrativista Levi, sua esposa Débora, 37 anos, e o filho Tiago, 17 anos, não contraíram a raiva humana e foram vacinados.

O Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA), confirmou que as mortes dos filhos de Levi Castro foram por encefalite viral (inflamação no cérebro) causada pelo Lyssavirus, que transmite a raiva humana.

A raiva humana é uma grave doença infecciosa causada pelo vírus do gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, que leva a óbito praticamente 100% dos pacientes contaminados. Desde o século 19, porém, já existe vacina contra a raiva, sendo ela bastante efetiva em impedir o avanço da doença, caso administrada em tempo hábil.

Devido à falta de vacinação na Resex Rio Unino, uma denúncia foi formalizada contra os órgãos de saúde do estado do Amazonas e do município de Barcelos no Ministério Público Federal.

O protocolo de Milwaukee

Vacinação de combate à raiva humana na Resex Rio Unini (Foto: Semsa/Barcelos)

Em 02 de dezembro de 2017, no dia da morte da irmã, Mateus Silva foi internado com sintomas da doença. Dias depois e sob a orientação do médico norte-americano Rodney Willoughby, o adolescente foi submetido ao tratamento experimental pelo protocolo de Milwaukee, responsável pela primeira cura da raiva humana no mundo, em 2004.

Quando Mateus foi internado, apresentava sintomas da raiva humana. O médico Antônio Magela lembra que, imediatamente, ele recebeu a medicação baseada no protocolo Milwaukee. “Talvez tenha sido isso que salvou a vida dele”, diz o especialista.

A Susam anunciou em 9 de janeiro de 2018 que Mateus era considerado curado da doença, mas ele permaneceu internado no hospital da FMT.

O menino ribeirinho do rio Unini é considerado o segundo sobrevivente de raiva no Brasil e o quinto no mundo. Existem dois casos de cura nos Estados Unidos, em 2004 e 2011. No Brasil, o primeiro caso aconteceu em 2008, no município de Floresta, Pernambuco.

O quadro de saúde de Mateus, hoje, é relativamente estável, mas ele ficou com sequelas que os neurologistas consideram irreversíveis, totalmente dependente de cuidados e de difícil recuperação.

“O Mateus sobreviveu e ficou com muitas sequelas neurológicas, cognitivas e motoras, ou seja, ele não consegue se comunicar e se mover sozinho”, explica o médico Antônio Magela, que assumiu o tratamento do adolescente logo nos primeiros sintomas. “Além disso, ele fez um quadro grave de contratura muscular, que mudou até a posição da coluna vertebral”, completa.

Sem alta médica

Dona Débora e Seu Levi, pais de Mateus
(Foto: João Paulo Machado/Amazônia Real)

Mateus recebeu alta em maio de 2018, mas, por um consenso entre a família e a equipe médica, permanece internado no hospital FMT. Levi diz que para o menino sair do hospital precisaria de uma casa com um quarto equipado como se fosse uma unidade de terapia intensiva. De acordo com ele, esse quarto custaria quase R$ 70 mil.

Para não interromper o tratamento de Mateus, o médico Antônio Magela cuida pessoalmente da saúde do menino. “Por uma questão de segurança, nós o colocamos em uma UTI Pediátrica, embora ele não necessite de UTI. Mas é um local onde ele fica sob o olhar constante da equipe de saúde”, diz o médico com a voz embargada.

“Eu creio que o Mateus é uma causa de Deus”, diz a mãe do menino, Débora Silva. “Busco a Deus para cuidar do Mateus. Acredito que ele ficou por um propósito, porque se Deus leva os três de uma vez…teria acontecido alguma coisa, ido a família toda, ou eu, ou ele [Levi]”, fala com a voz triste. “Mas eu creio que Deus vai levantar meu filho”, acrescenta Levi com voz firme.

Já o médico não consegue comemorar. “Nós temos um conflito de sensações com relação ao Mateus, pois ao mesmo tempo em que ele sobreviveu, nós não conseguimos garantir qualidade de vida a ele e à família. Não podemos usufruir do sucesso, mas também não podemos nos abater com o fracasso. Temos que utilizar o conhecimento que adquirimos, com a experiência do Mateus, e esperar que isso não aconteça com outra pessoa”, diz Magela.

Questionado se Mateus é um milagre, o médico responde “Ele é um sobrevivente. Fizemos por ele o que podia ser feito, o que estava ao nosso alcance naquele momento, como o protocolo experimental”.

Magela também revela que mudou a sua percepção sobre doenças graves, após o caso de Mateus. “Eu nunca tinha visto um caso de raiva. Os piores casos que tinha visto foram os de meningite por hemófilo e meningococcemia”, diz ele exasperado.

“A raiva é uma doença que faz com que tudo o que a gente entende de alterações orgânica, metabólica, neuro, endócrina que acontece dentro do sistema nervoso do paciente mude. A fisiopatologia médica está toda ali dentro, acontecendo. E cada dia acontece algo diferente, os eventos se sucedendo, o que faz a raiva ser a doença mais letal que atinge hoje o ser humano”, avalia.

Família deixou a floresta

Comunidade Tapiira, banhada pelo Rio Unini (Foto: Josângela Jesus/ Facebook da Resex Unini)

Na Resex Rio Unini, a família de Levi Castro Silva tinha uma vida tranquila na comunidade ribeirinha Tapiira às margens do rio Unini, afluente do Negro, no município de Barcelos, distante a cerca de 401 quilômetros de Manaus.

Vizinha ao Parque Nacional do Jaú, a Resex Rio Unini foi criada em 2006 pelo governo federal. Com uma área de 850 mil hectares de floresta nativa, moram no local 280 famílias em dez comunidades.

Levi diz que mesmo com quatro filhos, o custo de vida não exigia muito dinheiro, pois o sustento vinha da extração de castanha, e a família morava em casa própria. “Duzentos reais lá duravam três meses na minha mão. Aqui, vão embora rapidinho”, relata Levi. O item mais caro dessa existência pacata era combustível para o motor da voadeira, mas só quando precisavam se deslocar para locais distantes”, lembra ele.

A gestão da Resex Rio Unini é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio), subordinado ao Ministério do Meio Ambiente. Além de Tapiira, as outras comunidades extrativistas são: Lago das Pedras, Terra Nova, Democracia, Patauá, Manapana, Lago das Pombas, Floresta II, Vista Alegre e Vila Nunes.

Em 2016, de acordo com a Associação dos Moradores do Rio Unini, na comunidade Tapiira 88 pessoas da localidade foram mordidas por morcegos; algumas por mais de 20 vezes.

Naquele mesmo ano, a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) informou que uma equipe de controle de zoonoses coletou nas comunidades da Resex Rio Unini morcegos quirópteros hematófagos (Desmodus rotundus), mas na ocasião, as pessoas atacadas não foram vacinadas.

O que dizem as autoridades?

A reportagem da agência Amazônia Real procurou o prefeito de Barcelos, Edson de Paula, mas ele não atendeu às ligações, nem as mensagens enviadas para seu celular.

O médico Antônio Magela confirma que tenta junto à Susam, desde o ano passado, a doação de uma casa para a família. “Não é só conseguir a casa, também queremos equipá-la e ter uma equipe de saúde para dar assistência a ele. A família já sabe como cuidar, mas, ainda assim, essa equipe permanente é necessária”, explica.

Por meio da assessoria de imprensa, a Susam informou que o seu setor de serviço social, em conjunto com a Prefeitura de Barcelos, busca viabilizar uma casa na capital amazonense, onde o adolescente possa continuar o tratamento.

“Segundo a equipe médica responsável pelo tratamento do paciente na FMT, em uma casa adaptada e sob o acompanhamento profissional adequado, o que a fundação se compromete em oferecer, o adolescente pode sim, continuar seu processo de recuperação fora do ambiente hospitalar”, finalizou a mensagem. Questionada sobre o prazo, a secretaria não deu retorno.

Também procurada pela reportagem, a Superintendência Estadual de Habitação (Suhab) informou que recebeu a demanda de concessão de uma casa para família de Mateus no dia 19 de fevereiro. A assessoria disse que estiveram na sede do órgão o prefeito de Barcelos, Edson de Paula, e a mãe do garoto, Débora.

A Suhab diz que encaminhou uma equipe da área social para uma visita à família de Mateus e o garoto no hospital da FMT. Informou que a família preencheu uma ficha técnica-social que comprova a necessidade de moradia. A superintendência afirma que “não dispõe de unidades habitacionais prontas para entrega”. Diz que, “tão logo avancem os projetos habitacionais do atual governo do Amazonas, que assumiu a gestão em janeiro deste ano, esta e outras demandas semelhantes que chegam à Suhab deverão ser atendidas”.

A Defensoria Pública da União no Amazonas (DPU-AM) disse à Amazônia Real, em nota enviada por e-mail, que o processo que envolve o menino Mateus e os casos de raiva no Amazonas é recente e que foi aberto em 7 de fevereiro de 2019 pelo defensor regional de Direitos Humanos, Luís Felipe Ferreira Cavalcante, a pedido da família do adolescente.

“A pretensão da família é assegurar o devido tratamento de saúde de Mateus e a devida reparação pelas mortes de dois filhos, as quais decorreram, primordialmente, da inércia estatal em adotar políticas públicas visando à prevenção e ao tratamento da raiva humana, a qual, segundo eles, tem atingido centenas de pessoas da comunidade”, diz a assessoria de imprensa da DPU do Amazonas.

Em outro ponto da nota, a DPU disse “que tem encontrado dificuldades com a Susam e a Prefeitura de Barcelos, que não têm atendido às requisições de informações. A tentativa mais recente, por meio de ofício, foi de 29 de maio de 2019. O processo agora está nas mãos da defensora Camila Dal Lago, do 1º Ofício Cível”, destacou o órgão.

“Ele não tem reação”

Os pais de Mateus, dona Débora e seu Levi
(Foto: João Paulo Machado/Amazônia Real)

Os exames atuais do hospital da FMT informam que o garoto Mateus não reage a estímulos auditivos ou visuais. Mas os pais, que o visitam todos os dias, têm outra constatação e relatam uma situação diferente.

“A ressonância mostra que meu filho não ouve, não reage a nada. Ele não tem reação. Está como se fosse um bebê. Mas na prática não é assim, porque quando eu chego lá ele tem reação”, diz a mãe Débora Silva.

Ela afirma que o filho faz movimentos descoordenados quando estimulado, mas somente de um lado do corpo.

No entanto, o próprio médico Antônio Magela relata que o semblante do garoto muda quando ele apresenta satisfação com algo.

“Ele aparentemente apresenta uma reação alimentada por emoções ao ver os familiares. A gente tem a percepção de que ele sabe o que está acontecendo ao redor dele, porque às vezes ele chora, ou o semblante muda quando ele vê os pais. É maneira como ele se comunica”, diz Magela.

Segundo Débora, as enfermeiras da UTI também notam o comportamento. “É só a senhora chegar que o Mateus muda, fica dengoso”, relata, acrescentando que as enfermeiras pedem para ela ficar mais tempo, pois acham que o menino se sente melhor com a presença da mãe.

Ela também diz que o filho mexe a cabeça na direção dela quando está presente no quarto. “Ele também gosta de música. Se ele estiver ouvindo música no fone de ouvido e alguém mexer, ele reclama”, diz Débora.

Perguntado sobre as supostas reações de Mateus, Magela diz que elas são semelhantes às de portadores da Doença de Alzheimer, quando pessoas que perdem totalmente a memória, são capazes de cantar suas músicas preferidas ao ouvi-las.

“Tem alguma coisa na memória, lá escondida. A mente humana ainda é um grande mistério para medicina”, justifica. “O ser humano pode surpreender. Da mesma maneira que os pais tiraram forças do desconhecido para suportar a dor da perda de dois filhos e esperança na sobrevivência do terceiro”, finaliza o médico Antônio Magela.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Izabel Santos

É graduada em Jornalismo pela Faculdade Martha Falcão, de Manaus (AM). Tem mais de dez anos de atuação na cobertura de política e meio ambiente. Trabalhou no Jornal Amazonas Em Tempo; no Portal Amazônia, foi coordenadora de jornalismo na rádio CBN Amazônia e coordenadora de jornalismo no canal televisivo Amazon Sat. Foi indicada ao Prêmio Milton Cordeiro de Jornalismo em 2014, na categoria Internet, pela série de reportagens "Balbina, hidrelétrica da contradição". Foi a jornalista responsável pelas ações de divulgação científica da segunda fase do INCT Adapta, projeto científico sediado no Inpa que investiga o impacto das mudanças climáticas nos organismos aquáticos da Amazônia. ([email protected])