A guerra do potássio em Autazes

Está assentada no Lago do Soares e em Urucurituba, duas localidades dentro do município de Autazes (AM), uma imensa mina de cloreto de potássio de classe mundial. O potássio é matéria-prima para a produção de fertilizantes, elemento vital para o agronegócio. O presidente Jair Bolsonaro pressiona para que essa exploração comece o quanto antes. Sob sua gestão, órgãos públicos passaram a atuar em favor da empresa Potássio do Brasil, que compra terrenos para iniciar a mineração. O empenho do governo federal passa por cima da lei e dos direitos dos povos originários. A mina de Autazes fica sobre a autodemarcada Terra Indígena Soares/Urucurituba. Nela, vivem o povo Mura, que combateu na Cabanagem, a maior revolta popular da região Norte do país.

Por Elaíze Farias e Bruno Kelly (fotos)

Autazes (AM) – Um poço de prospecção da mineradora Potássio do Brasil perfurado a alguns metros de sua casa-flutuante às margens do Lago da comunidade Soares, na bacia do rio Madeirinha, dilacera o coração de Milton Ribeiro de Menezes, do povo Mura. Ele não consegue conter a emoção quando lembra do episódio ocorrido “seis ou sete anos atrás” que causou constrangimento à sua família durante vários meses. “Na primeira vez, chegaram oferecendo 900 reais para furarem a minha terra. Insistiram dizendo que era muito dinheiro. Não autorizei, vi que não era coisa boa. Mas depois acabaram furando em outro lugar, sem meu consentimento. Depois, quiseram comprar meu terreno. Falaram que eu poderia até ser expulso se não vendesse. Não aceitei”, lembra Menezes, com voz embargada tomada de angústia.

O rio Madeirinha banha o município de Autazes (e faz parte da bacia do rio Madeira, no Estado do Amazonas. Soares (ou Lago do Soares) é uma comunidade fundada no século 19 por João Gabriel de Arcângelo Barbosa, um indígena Mura que combateu na Cabanagem. Nos livros de história, a revolta, ocorrida entre 1835 e 1840, é descrita como a primeira sublevação popular do Brasil. Os cabanos, em sua maioria, eram indígenas, pobres livres e negros que lutavam contra a situação de miséria que viviam na então província do Grão-Pará, formado hoje pelos Estados do Pará e do Amazonas. Os descendentes dos que lutaram na Cabanagem contam com orgulho como seus antepassados resistiram a massacres, capturas e contaminação de doenças trazidas pelos colonizadores.

A maioria dos descendentes de João Gabriel de Arcângelo Barbosa permanece na comunidade, incluindo um de seus bisnetos, Jair dos Santos Ezogue, de 83 anos. Ezogue, por desconhecimento e pressão, foi um dos moradores que vendeu seu terreno para a Potássio do Brasil. “Um homem veio aqui várias vezes e insistiu muito. Disse que eu poderia perder minha terra. Acabei vendendo. Eu tinha casas de farinha, plantações e gado. Me arrependi de ter vendido. Demais mesmo. Conheço outras pessoas que venderam e tenho certeza que não vivem bem”, conta o indígena, à Amazônia Real.

Não é nenhuma novidade a estratégia utilizada pela Potássio do Brasil para avançar sobre áreas de seu interesse. A mineradora é controlada pelo banco canadense Forbes & Manhattan, que também é dona da mineradora Belo Sun, na área de Volta Grande do Xingu, na região da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Abrir o cofre tem sido a saída.

A empresa assediou a comunidade para que os terrenos fossem vendidos e conseguiu convencer muitos deles. Milton Ribeiro de Menezes, de 47 anos, é um dos poucos moradores que vivem nas cabeceiras de Soares que não cederam à pressão da empresa para fins de mineração. Para um morador e sua família que sobrevive de pesca, roçado e criação de animais a futura mina de potássio representa uma ameaça concreta e iminente.

“Estou cercado por todos os lados pela empresa. Me sinto amedrontado porque estou na ilha. Meus vizinhos acabaram vendendo e eu fiquei. Fico com medo porque não quero ir embora. É muito bom viver aqui. Tenho minhas criações, minhas plantações. Minha esposa nasceu e se criou aqui. Meus filhos gostam daqui. Aqui tem tudo. Tem plantação, água ao redor. É um paraíso”, afirma o indígena.

Milton Ribeiro de Menezes, do povo Mura, mostra a perfuração que foi feita pela empresa Potássio Brasil em sua terra sem seu consentimento, na aldeia Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

À margem das calmas cabeceiras do lago da comunidade Soares, é possível avistar placas de identificação da Potássio do Brasil na área reivindicada pelos Mura. Da comunidade central de Soares até os imóveis adquiridos pela empresa para a vasta mina, a duração é de apenas 15 minutos em uma voadeira, conforme atestou a Amazônia Real. No início de março, a reportagem visitou comunidades de Autazes, em dias nublados típicos da estação chuvosa na região, para entender a cobiça pelo potássio.

O terreno de Milton Ribeiro de Menezes é rodeado pelos imóveis onde a empresa quer explorar a silvinita, o minério mais importante para a produção do potássio. Segundo o indígena, a tranquilidade é periodicamente interrompida com as lanchas da empresa que transitam nas estreitas cabeceiras. “Eles usam lancha grande, em alta velocidade. Se passar perto de uma canoa vai alagar ela. O banzeiro da lancha chega até meu flutuante”, diz ele.

A batalha quase solitária de Milton por proteger sua terra está sendo dragada por uma verdadeira guerra do potássio em Autazes. No século 19, forças regenciais sufocaram a revolta popular da Cabanagem, deixando mais de 30 mil cabanos mortos no confronto e dizimando aldeias indígenas inteiras. Neste século 21, a ameaça se volta contra a Terra Indígena (TI) Soares/Urucurituba, localizada no centro do empreendimento minerário e que corre o risco de desaparecer.

Os males da guerra

O vice-tuxaua de Soares, Vavá dos Santos e o coordenador do Conselho Indígena Mura, Claudio Mura, observam área de potássio. Ao fundo, tuxaua Sérgio Nascimento(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Perfuração que foi feita pela empresa Potássio Brasil dentro do terreno de Milton Ribeiro, sem seu consentimento, na comunidade Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Detalhe da placa do principal ponto de perfuração que foi feita pela empresa Potássio Brasil na comunidade Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
O tuxaua Sergio Freitas do Nascimento pilota voadeira e passa em frente a uma das placas da minerada Potássio Brasil dentro da TI Soares/Urucurituba (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Placa da Potássio Brasil às margens do Lago do Soares/Urucurituba (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
O casal indígena Jair dos Santos e Maria Ezogue, da aldeia Soares, foi pressionado a vender sua terra para empresa Potássio Brasil e hoje se arrepende (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Agente de saúde e indígena Mura, Lucilene dos Santos Sanches de 34 anos em sua casa na Comunidade Soares, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Milton Ribeiro Menezes, do povo Mura, em sua casa-flutuante à margem do Lago do Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Lago da comunidade Soares do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Pescador no lago da comunidade Soares, do povo Mura, localizada em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Pescador no lago da comunidade Soares, do povo Mura, localizada em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Pescador no lago da comunidade Soares, do povo Mura, localizada em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Crianças descem do barco para irem à escola da comunidade do Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Um jovem indígena trata peixe na comunidade Soares, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Fim de tarde em frente a igreja na comunidade indígena Soares, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
O tuxaua Admilson Pavão, da aldeia Urucurituba, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Comunidade Urucurituba, do povo Mura, às margens do rio Madeira, em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Comunidade indígena Urucurituba, do povo Mura, às margens do rio Madeira, no munícipio de Autazess (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Comunidade indígena Soares, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Comunidade indígena Soares do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Casa flutuante na comunidade indígena Soares, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Diferente do que alegam governo federal, autoridades públicas e empresários, a mina do potássio de Autazes está dentro da TI Soares/Urucurituba, que aguarda há quase 20 anos pelo processo de demarcação. Lideranças da comunidade enviaram à Fundação Nacional do Índio (Funai) a primeira reivindicação em 2003; outra em 2007 e pela terceira vez em 2018, já com um mapa de autodemarcação. Essas informações nao constam no Estudo de Impacto Ambiental (EIA), de 2015, encomendado pela empresa. Mas os interesses da mineração e de políticos que apoiam a exploração do potássio, como prefeito de Autazes, Andreson Calvacante, o governador Wilson Lima (PSC) e o vice-presidente Hamilton Mourão, apagaram a existência dessas duas comunidades como territórios tradicionais indígenas.

A Amazônia Real teve acesso ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e ao Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do Projeto Autazes, como ele foi batizado pela Potássio do Brasil. O EIA encomendado pela mineradora tem 1.600 páginas e confirma efeitos negativos sociais e ambientais, com impactos na fauna e na floresta. O empreendimento causará a alteração na qualidade da água, a fuga de animais, a especulação imobiliária, o aumento populacional, a destruição de sítio arqueológico, entre outros danos. Por outro lado, o EIA sinaliza com promessas de prosperidade local e regional e ações para mitigar os impactos.

O estudo é claro sobre o impacto social da exploração de potássio na região. “A comunidade de Soares, que possui as piores condições de infraestrutura básica dentre os povoados da área de influência do projeto, tende a sofrer com o processo de especulação imobiliária e perda de acesso à terra”, descreve. “Na vila de Urucurituba, o mesmo processo deve se repetir, porém, com uma extensão que poderá se dar em maior magnitude, em função de sua infraestrutura básica ser um pouco melhor.”

O EIA/Rima foi apresentado em 2015 para o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo estadual que licenciou o empreendimento. O início da mineração foi paralisado em 2016 por ordem da juíza Jaiza Fraxe, da 1ª Vara da Justiça Federal, acatando ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), que acusou o Ipaam de emitir a licença irregularmente. A magistrada entende que o povo Mura deve ser consultado antes de iniciar qualquer atividade de mineração.

Mas a guerra do potássio em Autazes nunca cessou desde então, ganhando contornos dramáticos para os Mura quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) deixou clara sua investida pela mineração na Amazônia. Em 2 de março deste ano, Bolsonaro aproveitou o clamor em relação à guerra da Rússia contra a Ucrânia para pressionar pela tramitação do Projeto de Lei 191, que regulamenta os artigos 176 e 231 da Constituição e autoriza o garimpo hoje considerado ilegal dentro dos territórios indígenas. O argumento de Bolsonaro é que o Brasil importa potássio da Rússia e o mineral está presente na Amazônia.

Governo apoia mineradora

Apenas oito dias depois da manifestação de Bolsonaro, em 10 de março a Advocacia Geral da União (AGU) enviou uma petição como “auxiliar da parte ré” à juíza Jaiza Fraxe, pressionando-a para que ela tome uma decisão sobre o Projeto Autazes. A ré é a Potássio do Brasil. A AGU também solicita que o Ipaam seja o órgão licenciador, diferente do que pede o MPF, para quem a competência deve ser do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Pede ainda a liberação dos valores depositados em juízo pela empresa para a realização da consulta dos indígenas e, por fim, pede à Justiça Federal “anuir com a retomada do processo de licenciamento ambiental”.

Para a AGU, o entrave ao licenciamento ambiental do Projeto Autazes já foi resolvido com o desmembramento das poligonais dos direitos minerários que incidiam sobre a Terra Indígena Jauary. A retirada da sobreposição, segundo a AGU, foi solucionada em 2017, durante audiência de conciliação. Em outras palavras, a AGU, sob o governo Bolsonaro, não considera como Terra Indígena as localidades de Soares e Urucurituba. Além das Áreas Diretamente Afetadas, a mineração vai impactar terras indígenas do entorno, como Guapenu, Trincheira e Murutinga.

No dia 28 de janeiro deste ano, portanto bem antes da guerra da Rússia contra a Ucrânia, a AGU já havia enviado petição à Justiça Federal, também como “auxiliar da ré”, afirmando “que a União possui interesse direto no empreendimento [em Autazes] em razão de se tratar de projeto prioritário para a ampliação da produção de mineral estratégico para o país”. Em um tuíte em 2 de março, Bolsonaro afirmou: “Com a guerra Rússia/Ucrânia, hoje corremos o risco da falta do potássio ou aumento do seu preço. Nossa segurança alimentar e agronegócio (Economia) exigem de nós, Executivo e Legislativo, medidas que nos permitam a não dependência externa de algo que temos em abundância”.

O interesse específico do governo Bolsonaro sobre o Projeto Autazes é uma incógnita para lideranças indígenas, pesquisadores e até mesmo procuradores do MPF. Na última petição da AGU, que se posta ao lado da empresa privada Potássio do Brasil, o órgão argumenta que com a vacinação completa nas terras indígenas “e o arrefecimento do cenário da pandemia, é imperiosa a retomada do processo de consulta e, por conseguinte, do licenciamento ambiental do projeto”.

A alegação da retirada da sobreposição, feita pela AGU, ignora que a cobiça da Potássio do Brasil é sobre a TI Soares/Urucurituba, a uma hora da sede de Autazes em viagem de voadeira. É nessa terra indígena que a empresa planeja construir a planta industrial da mina de silvinita e o porto de escoamento do minério, cujo elemento é usado para produzir fertilizantes. Minerar em terras indígenas é proibido no Brasil. É por isso que o Projeto Autazes adota a estratégia de adquirir, de forma pulverizada, uma vasta área de moradores indígenas e não indígenas na localidade.

O governo Bolsonaro atua, dentro do Legislativo, para facilitar a vida das mineradoras. Duas frentes, em especial, afetam diretamente os interesses da Potássio do Brasil e, por tabela, do governo sobre Autazes. Uma é a defesa do governo para o estabelecimento de um marco legal, previsto no Projeto de Lei (PL) 490. Por essa tese, indígenas que não estivessem ocupando seus territórios antes da Constituição de 1988 não teriam direito à terra. A TI Soares/Urucurituba se enquadraria nessa tese. E a outra frente de ataque é o PL 191/2020, que começou a tramitar em regime de urgência por pressão do governo e prevê um “libera geral” para a mineração em TIs. De um jeito ou de outro, o governo garantiria os interesses da mineradora canadense.

Sem demarcação

O Tuxaua Sergio e o vice-tuxaua, Vavá dos Santos, mostram mapa com a demarcação da TI Soares/Urucurituba que foi apresentado à Funai (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Desde 2003, as lideranças indígenas Mura de Soares e de Urucurituba estão unidas para lutar pela demarcação da TI e aguardam até hoje providências da Funai. No órgão indigenista, o processo não avançou, até que em 2018 os Mura iniciaram uma autodemarcação e mapearam o território, com apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). No mapa, o nome é Terra Indígena Soares/Urucurituba, pois abrange a comunidade vizinha e traz pontos identificando a atividade da Potássio do Brasil dentro do território.

No mesmo ano da elaboração do mapa da TI Soares/Urucurituba, o vice-tuxaua de Soares, Vavá Ezogue dos Santos, de 45 anos, foi a Brasília pedir providências da Funai, onde recebeu respostas vagas. Mas voltou à sua terra com a garantia de que o processo seguiria. “Na Funai, perguntei qual era a nossa segurança. Nos responderam que antes da chegada da Potássio, a gente já existia. Que nossos avós, nossos pais que nasceram e morreram aqui eram o nosso documento. O certo é que custa (demarcar), mas chega uma hora que isso vai acontecer”, diz Vavá à Amazônia Real.

O tuxaua Sérgio Freitas do Nascimento, de 40 anos, tem documentos da Funai que provam que a reivindicação foi solicitada. Um, com data de 2003, descreve Soares na lista de “levantamento prévio”, junto de outras cinco TIs. Em outro documento, com data de agosto de 2007, o então coordenador-geral de Identificação e Delimitação da Funai, Paulo Santilli, confirma a reivindicação de comunidades de Autazes, incluindo Soares, e pede que elas sejam objeto de estudo de um grupo técnico (GT). Em um documento de dezembro de 2018, a TI Soares/Urucurituba aparece na condição de “aguardando qualificação” desde 2016, sem previsão de formação desse GT.

As primeiras atividades da empresa em Soares, antes da suspensão por determinação judicial, foi uma surpresa para os Mura, conforme lembra Vavá Ezogue. “Vimos um grande trânsito aqui dentro, de pessoas diferentes, de fora. Começaram a fazer perfurações. Era zoadeira de máquina, trânsito de lancha toda hora, noite e dia. A gente não conseguia dormir. Causaram acidentes, alagaram canoas. A gente não estava acostumado com isso”, diz.

Para os Mura de Soares, a Potássio do Brasil invadiu seu território. “Eu acho que invadiu. Porque a gente vivia sem esse problema há muito tempo. Eles que vieram pra cá. Não chamamos eles”, diz Nascimento.

A comunidade Soares é reconhecida pelas organizações indígenas de Autazes. Está na lista de aldeias do Conselho Indígena Mura (CIM), assim como Urucurituba (há também um município amazonense homônimo, que fica na região do Baixo rio Amazonas). Segundo o tuxaua Sérgio Freitas do Nascimento, a comunidade possui um agrupamento central com cerca de 50 famílias, totalizando mais de 100 pessoas, mas o território se estende para além desta área, alcançando moradias à margem de cabeceiras, paranás e igarapés onde vivem numerosas famílias em casas-flutuantes. Apenas em Soares, o tuxaua afirma que a população Mura é de mais de mil indígenas. No EIA do Projeto Autazes, Soares é descrita ora como “povoado” ora como “comunidade tradicional” que “deverá sofrer as principais repercussões da instalação e operação do projeto”.

De acordo com o Censo do IBGE de 2010, a população Mura é de mais de 15 mil pessoas. Somente em Autazes e no Careiro da Várzea, cidades vizinhas, a população é de 12 mil pessoas, segundo levantamento do CIM. Os Mura foram alguns dos primeiros povos originários contatados pelos colonizadores europeus, ainda no século 17, e ficaram conhecidos pela forte resistência, utilizando-se de estratégias de guerra para combater os invasores, como a construção de trincheiras debaixo dos rios.

Sérgio Nascimento sabe da existência do PL 191, que pretende regularizar mineração em terra indígena. Para ele, a demarcação será o único instrumento para assegurar a sobrevivência dos Mura de Soares frente à pressão da mineração. “Estamos nessa luta desde 1999, na verdade. Nossos ancestrais não tinham conhecimento. As coisas aqui eram mais restritas. Antes daquela época era tudo mais fechado, isolado. Mas mesmo não sendo demarcada ainda, somos povos originários, temos direito a ela e já pedimos isso da Funai. Isso antes da chegada da mineração”, conta o tuxaua, que hoje teme que a omissão do órgão indigenista ponha em risco o futuro da comunidade.

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Lucilene dos Santos Sanches, de 34 anos, é agente de saúde indígena em Soares. Ela demonstra ansiedade toda vez que se toca no assunto e relata com preocupação os possíveis impactos na saúde dos moradores, pelos exemplos conhecidos em outros lugares, como a tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais.

“Aqui vivemos bem, graças a Deus. Todos se conhecem. Temos liberdade e somos felizes. É um local de paz e não tem briga. Tenho medo que a gente tenha que sair daqui. Se essa mineração acontecer, e espero que não aconteça, muitas doenças vão vir. Porque haverá muitas pessoas de fora para trabalhar, para morar. Não sabemos quem serão essas pessoas. Também pode contaminar as águas. Nós, povo Mura, vivemos mais de peixe. Temos esperança que vamos vencer, que isso não vai acontecer”, desabafa.

Danos ambientais

Placa da empresa Potássio Brasil, à margem do rio Madeira, ao lado da aldeia Urucurituba, do povo Mura
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O EIA do empreendimento admite os impactos na região da reserva de potássio, conforme diz neste trecho: “Com a implantação do Projeto Autazes é esperada a ocorrência de atividades com potencial de gerar alterações na qualidade das águas superficiais dos cursos de água localizados na Área de Estudo Local do empreendimento”. Outro trecho acrescenta: “Além da injeção de salmoura, outra alteração da qualidade de águas subterrâneas é esperada nos aquíferos rasos próximos da pilha de rejeitos e da área industrial”.

O estudo também confirma o impacto social nas comunidades diretamente afetadas. Além de Soares, Urucurituba também não escapará, especialmente porque o porto de escoamento fica ao lado da comunidade. “Na vila de Urucurituba, o mesmo processo deve se repetir, porém, com uma extensão que poderá se dar em maior magnitude, em função de sua infraestrutura básica ser um pouco melhor”, diz trecho do estudo.

A pesquisadora Fernanda Frizzo Bragato, professora do Programa de Pós-graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), afirma que um dos maiores problemas apresentados pelo empreendimento diz respeito ao rejeito da mineração de potássio. Ela é coautora de um estudo sobre o impacto da mineração em Autazes intitulado “Estudo de caso: Projeto Potássio Amazonas – Autazes e seus Impactos sobre as terras habitadas pelo povo Indígena Mura”.

As informações que Fernanda e colegas coletaram derivaram de relatórios e pesquisas internacionais que descrevem os problemas já ocorridos em outras minas de potássio. O estudo de caso diz que “uma vez que os organismos do rio são adaptados à água doce, o aumento da concentração de sal causada por resíduos de mineração de potássio tem o potencial de alterar significativamente os ecossistemas dos rios”.

“Não fica claro como a empresa pretende evitar vazamento de sal, uma vez que a subsistência das comunidades depende da água e dos peixes. Também não sei até que ponto as comunidades estão conscientes desse risco. Outro problema que me parece perturbador é a subsidência do solo, ‘desastre’ que já aconteceu em outras minas de potássio na Rússia e em minas de sal gema em Maceió. As minas são subterrâneas e muito provavelmente atingirão o subsolo de pelo menos duas terras indígenas em torno da planta (Soares e Jauary)”, alerta a pesquisadora, à Amazônia Real.

Sítios arqueológicos

Artefatos arqueológicso encontrados na comunidade Urucurituba, do povo Mura, às margens do rio Madeira
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Admilson Pavão, tuxaua da aldeia Urucurituba, localizada à margem esquerda do rio Madeira, preocupa-se com o futuro da comunidade e com os impactos trazidos pelo porto de carga tão próximo das moradias e do trânsito das embarcações locais. O porto de escoamento do Projeto Autazes está a 50 metros da comunidade, onde vivem cerca de 600 famílias; são cerca de 1.500 pessoas, segundo ele, a maioria indígena.

Mais conhecido como Piraca, ele é uma liderança histórica entre os Mura e integrou o grupo que fez as primeiras denúncias da atividade minerária na região. “Eles chegaram e a gente viu que não era correto o que acontecia. Não falavam o que faziam. Não é certo chegar e entrar sem pedir licença”, afirma.

Segundo o tuxaua, na época da prospecção da empresa em Urucurituba, a população presenciou grande número de caminhões e estragos nas ruas causados pelos veículos.

Mas o que mais chamou atenção dos Mura foi o interesse de pesquisadores pelas escavações arqueológicas. “Vieram aqui. Diziam que eram do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e faziam escavações. Pegaram as peças e levaram. Não sabemos o que fizeram”, conta Piraca. Várias das peças permanecem guardadas pelos moradores, conforme presenciou a Amazônia Real.

O tuxaua afirma que, após cobrança feita pelos moradores, a empresa passou a informar sobre o empreendimento, “falando só as coisas boas”. “Quem vai sofrer com isso somos nós. Isso só vai ser bom para os grandes fazendeiros, para os grandes empresários de lancha, de hotel, para a prefeitura, pros políticos. Esses que vão pegar no dinheiro. Para nós não”, afirma.

Segundo consta no EIA do Projeto Autazes, os pesquisadores identificaram 41 pontos com vestígios arqueológicos nas áreas visitadas. O sítio arqueológico Urucurituba “abriga um registro material de ocupações indígenas em uma faixa de terra com aproximadamente 500 metros de largura, que se estende por 1,5 quilômetros da margem direita do rio Madeira”. O estudo do Projeto Autazes informa que, durante a pesquisa para o EIA, foram registrados 37 pontos com presença de material arqueológico no sítio Urucurituba, todos eles, à exceção de um ponto, estão inseridos na área diretamente afetada pelo projeto do porto. Foram identificados vestígios cerâmicos e grande quantidade de ocorrências de Terra Preta de Índio, material orgânico que caracteriza a fertilidade do solo.

Quando esteve em Urucurituba, a Amazônia Real viu em casas dos moradores peças arqueológicas e um conjunto de artefatos, como urnas funerárias e potes. A mesma ocorrência é mencionada no EIA do Projeto Autazes. De acordo com os pesquisadores, os artefatos pertencem à tradição Guarita e Manacapuru, e possuem mais de mil anos.

Para os Mura, contudo, o sítio arqueológico tem relação sobre a sua própria história, em uma relação com os antigos habitantes. O antropólogo Curt Nimuendajú (1883-1945), que é citado no EIA, conta que os Mura estariam presentes na área pelo menos desde 1639.

Empresa nega existência de TIs

O tuxaua Sergio Freitas do Nascimento observa placa da mineradora Potássio Brasil, em uma área comprada pela empresa dentro da TI Soares/Urucurituba (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Para a Potássio do Brasil, Soares é apenas um “povoado” ou uma “vila” e não uma Terra Indígena. No EIA, a TI é descrita como “uma região habitada por populações ribeirinhas que vivem em casas flutuantes, grande parte em atividades agropecuárias, sendo que muitas delas migram para áreas mais secas durante a estação de cheias”. Na única referência aos Mura, o EIA afirma apenas que “alguns indígenas moradores do Lago do Soares, ainda no século XIX, foram expulsos para longe das margens, se deslocando para o interior das terras”.

O estudo tenta desqualificar a territorialidade dos Mura de Soares dizendo que “o núcleo urbano central é bastante reduzido e se estrutura de forma linear no eixo principal da passarela em madeira que dá acesso às casas em palafitas”. Já Urucurituba, uma comunidade cuja maioria da população é indígena Mura, é descrita pelo EIA como “uma vila”, uma “comunidade rural” e um “distrito de Autazes”

O EIA da Potássio do Brasil se concentrou em três Áreas Diretamente Afetadas, e que estão interligadas, que são: Planta da Mineradora (região do Lago Soares), Porto (comunidade Urucurituba) e estrada de ligação entre planta e porto. No EIA, a empresa confirma a compra de terrenos. “Apesar da relativa baixa densidade demográfica, a instalação do projeto ocasionará a aquisição de algumas propriedades e, consequentemente, o deslocamento de algumas pessoas”, descreve. Se a TI já estivesse demarcada, essa compra e venda de propriedades seria proibida.

Recentemente, o empresário do agronegócio Blairo Maggi manifestou intenção de fazer parte do empreendimento, conforme reportagem da Reuters publicada pela Forbes Agro. Maggi , ex-ministro da ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo de Michel Temer, afirmou que está negociando com o investidor Stan Bharti, dono da Forbes & Manhattan, parceria para escoar o minério. Blairo Maggi é dono da empresa de navegação Hermana de Navegação da Amazônia, que já atua há vários anos nas bacias dos rios Madeira e Amazonas.

Na área de abrangência da atividade da mineração diagnosticada pelo EIA, a Potássio do Brasil considera como TIs apenas Jauary (delimitada) e Paracuuba (homologada), que estão a 10 quilômetros do empreendimento. O estudo do Projeto Autazes admite que em Soares e Urucurituba “há presença indígena com convivência harmônica com outros segmentos da população regional” mas, ao mesmo, omite ao dizer que essas populações “não apresentarem pleito e/ou processo de regularização fundiária”. O EIA diz apenas que as terras podem “ser referidas, em parte, como terras dominiais indígenas e recebem atenção diferenciada do poder público, neste caso da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e da Funai”.

A ocupação tradicional

Vista aérea da comunidade indígena Soares, do povo Mura, em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Renildo Viana Azevedo, autor da tese de doutorado “Território dos flutuantes: Resistência, Terra Indígena Mura e Mineração de Potássio em Autazes”, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), afirma que as terras que formam hoje o Lago do Soares faziam parte de um vasto território que os Mura ocupavam desde pelo menos o século 17, quando esse povo foi sistematicamente perseguido pela Coroa Portuguesa.

“Apesar das terras não terem seus limites estabelecidos pelo Estado, considero que a tese de que as mesmas não sejam indígenas é, no mínimo, equivocada, porque uma terra indígena não precisa ser demarcada para ser considerada como tal. Com base no direito originário, Lago do Soares e Urucurituba, ocupadas tradicionalmente pelos Mura há pelo menos dois séculos, são terras indígenas tradicionalmente ocupadas e como tais deveriam ser tratadas pelo Estado brasileiro”, diz Azevedo. Para ele, a decisão mais correta do Estado brasileiro é suspender o Projeto Autazes até que a terra seja delimitada.

“Para o atual governo, Terra Indígena é aquela que foi demarcada. Mas não é assim que está na Constituição. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, os indígenas possuem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O direito originário vem antes de outros direitos sobre a terra, inclusive do próprio Estado brasileiro que, segundo a Constituição, deve demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o pesquisador.

Licenciamento foi judicializado

Placa da Potássio do Brasil às margens do rio Madeira, em Urucurituba (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A mineradora Potássio do Brasil iniciou suas atividades em Autazes em 2009 e, seis anos depois, teve o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado pelo Ipaam. Mas em 2013, com autorização do antigo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM), a empresa já vinha realizando prospecções nas proximidades da TI Jauary, que está em processo de demarcação, com perfurações que chegaram até o cemitério indígena dos Mura. O DNPM foi substituído pela Agência Nacional de Mineração (ANM) no governo Bolsonaro. No mesmo ano, o Ipaam também emitiu licença para a empresa iniciar os estudos de impacto ambiental.

Em 2016, o MPF entrou com a ação na Justiça Federal. A juíza Jaiza Fraxe decidiu paralisar o licenciamento do empreendimento até que o povo Mura seja consultado. A situação territorial de Soares e Urucurituba, que não fazia parte da inicial da ACP, passou a integrar o processo nas petições seguintes.

Desde 2019, quando ficou pronto o Protocolo de Consulta, instrumento com normas que vão orientar a decisão dos indígenas, há a expectativa de que o caso tenha um desfecho, com o início da realização da chamada “pré-consulta”, período em que especialistas da UFAM vão auxiliar os Mura no processo de esclarecimento sobre o empreendimento. A Amazônia Real apurou que ainda não há data para esta a programação, mas existe pressão para seja logo iniciada. Apurou também que há uma divisão entre os indígenas Mura, favoráveis e contra a mineração em suas terras. No caso de Soares, segundo as lideranças, a maioria é contrária ao Projeto Autazes.

Denominado “Trincheiras: Yandé Peara Mura”, o protocolo prevê diferentes passos no processo de consulta, com reuniões internas, sem participação de não-indígenas. Haverá também uma assembleia geral para discutir a proposta Se houver consenso, a resposta será imediatamente apresentada ao empreendedor ou agentes do governo. Se não houver, os Mura realizarão novas assembleias, na qual inclui uma votação, onde sairá vencedora a decisão que tiver 75% dos votos dos presentes.

O MPF já se manifestou nos autos, posicionando-se contra a permanência do Ipaam como órgão licenciador, tal como pleiteia o governo federal. Para o procurador Fernando Merlotto, a assembleia dos indígenas deve acontecer somente após a definição de que a competência da análise do EIA/Rima e, por consequência, o eventual licenciamento, seja de responsabilidade do Ibama. O órgão federal, sob Bolsonaro, já se manifestou contrário a essa atribuição. “Não tem como fazer a consulta sem definir quem vai ser o órgão licenciador. Precisa ser o Ibama. Os próprios Mura fizeram esse pedido”, disse Merlotto à reportagem.

Em uma planilha enviada à Amazônia Real com informações de terras indígenas sobrepostas, a ANM não faz referência alguma a território indígena localizado em Autazes. “A planilha enviada (títulos minerários ativos em terras indígenas, com data de 02/03/2022) foi gerada a partir de uma intercessão das poligonais da ANM, disponíveis no SIGMINE, com as áreas indígenas disponíveis no site da Fundação Nacional do Índio (Funai), ressaltamos que todos esses dados são públicos”, diz o órgão.

Segundo a ANM, a reserva de potássio de Autazes/Nova Olinda é de 273.422.000 toneladas. O órgão não informou especificamente de Autazes, que abrange a maior quantidade. Nova Olinda é um município amazonense vizinho de Autazes. Na planta do Projeto Autazes, a produção anual será de 8 milhões de toneladas por ano de minério, segundo o EIA da empresa.

Em manifestação enviada à Justiça Federal, a ANM informa que os processos referentes à atividade da Potássio do Brasil em Autazes continuam “na fase de requerer a lavra” desde a aprovação do Relatório Final de Pesquisa, em 30 de abril de 2015, e que o titular vem requerendo a prorrogação do prazo para exercer o direito à concessão.

O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) disse à reportagem que a jazida do Projeto Autazes apresenta “uma pequena parte dentro da área indígena”, que a área sobreposta “já foi descartada pela empresa Potássio do Brasil” e que “a empresa ainda não obteve as devidas licenças ambientais por estarem próximos a terras indígenas”.

Vida útil de 31 anos

Vista aérea da estrada que liga a comunidade Urucurituba, do povo Mura, onde será construído o porto, à comunidade Soares,
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O EIA/Rima da Potássio do Brasil relata que o empreendimento possui três alternativas. E, em todas essas opções, Soares (descrita como Lago Soares) está presente. De acordo com o EIA, a lavra subterrânea apresenta um depósito entre 700 e 900 metros de profundidade e possui uma área de 130 quilômetros quadrados “localizada em uma porção de terras altas entre o lago Soares e a estrada existente que liga Urucurituba ao lago Soares”.

A construção do porto está definida para ser em Urucurituba. “Quanto à infraestrutura identificou-se a existência do porto de Urucurituba, na localidade homônima, na margem esquerda do rio Madeira”, diz o EIA. As duas comunidades se interligam através de furos e cursos d’água e também por uma estrada, que a Potássio do Brasil já incluiu em seu projeto.

“A utilização da estrada representa além, da vantagem econômica – ao menos para implantação, o aproveitamento da estrada existente ligando Urucurituba ao lago Soares, segmento que corresponde a quase 60% do comprimento total previsto para a ligação planta – mina – porto de Urucurituba”, diz outro trecho do EIA.

O estudo do Projeto Autazes afirma que a mineração adotará “o método de lavra subterrânea que contempla a construção de poços de acesso (shafts), implantação e operação de uma planta de beneficiamento de minério e porto de escoamento de produção, para uma vida útil de 31 anos. O minério será processado por meio do processo de lixiviação a quente (hot leaching) em uma planta de beneficiamento”. O período de implantação do Projeto Autazes será de quatro anos.

Durante o processo de sondagem, iniciada em 2009, a Potássio do Brasil realizou 33 furos, totalizando mais de 27 mil metros perfurados. “Os resultados obtidos nesses furos permitiram a Potássio do Brasil confirmar a descoberta de um depósito de potássio de classe mundial na região, com um teor médio de 30,71% de Cloreto de Potássio”, diz o estudo.

O silêncio do governo

Vista aérea da comunidade Urucurituba, do povo Mura, à margens do rio Madeira, em Autazes (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A Amazônia Real procurou a Funai para falar sobre o processo de demarcação da TI Soares/Urucurituba, mas o órgão não respondeu. O Ibama também foi procurado para falar sobre a competência do licenciamento, mas também não enviou resposta. A reportagem pediu ainda um posicionamento do Ipaam, mas o órgão estadual não deu retorno.

Procurada, a empresa respondeu à Amazônia Real dizendo que “o Projeto Potássio do Brasil está 100% fora de Terras Indígenas e tem firme compromisso em trazer um empreendimento para Autazes com o que há de mais moderno em termos de tecnologia, sem esquecer dos cuidados com as pessoas e com o meio ambiente”. Segundo a nota enviada pela assessoria de imprensa, “a Potássio do Brasil tem como princípio respeitar as normas ambientais e os direitos dos povos indígenas e tradicionais e reconhece a importância da Consulta do Povo Mura, que habita áreas à 8 km de distância das futuras instalações industriais do Projeto Potássio Autazes”.

Sobre o fato de desconsiderar Soares e Urucurituba como terra indígena e se abandonaria o projeto se a Funai reconhecesse as duas, a resposta foi a seguinte: “as vilas de Soares e Urucurituba não estão dentro das Terras Indígenas mapeadas pela Funai, quando do pedido do Termo de Referência para a elaboração do Estudo de Componente Indígena do Projeto Potássio Autazes”.

Quanto às compras de terrenos em Autazes, a empresa diz que “as aquisições de terras realizadas pela Potássio do Brasil foram embasadas por laudos técnicos de avaliação elaborados por empresas especializadas no ramo. Portanto, as terras foram adquiridas de forma legal e respeitando as leis brasileiras”. A empresa não respondeu à pergunta que refere-se à pressão que indígenas Mura dizem ter sofrido para aceitar vender suas terras.

A Potássio do Brasil disse também que “possui a Licença Prévia e que está aguardando obter a Licença de Implantação”. Acerca do acordo judicial com o povo Mura, a empresa diz que a Potássio do Brasil “está comprometida com a implantação do Projeto Potássio Autazes atendendo a todas as normas ambientais e respeitando os direitos dos povos indígenas e tradicionais”. Sobre os impactos sociais e ambientais previstos no EIA do projeto, a empresa respondeu que “as ações de contrapartida e mitigação socioambientais estão previstas para durar além do período de vida do empreendimento, procurando dar sustentabilidade e autonomia às comunidades em relação ao empreendimento, tendo como referência os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Serão mais de 30 programas dentro dos eixos sócio-econômico-ambiental”.

Segundo a empresa, “são ações que apoiarão as vocações e potencialidades econômicas locais e incentivarão a introdução de novos empreendimentos, aproximando a cultura e os saberes tradicionais e o conhecimento técnico-científico. Assim, por meio de parcerias com entidades públicas, privadas e sociais, serão implementados programas e projetos visando promover o crescimento econômico, o desenvolvimento social, o uso sustentável dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. A empresa citou alguns dos projetos e projetos, tais como Programa de Apoio a Economia Local; Programa de Apoio para a Melhoria dos Serviços Públicos; Programa de Qualificação de Mão-de-Obra; Projetos de Apoio à Pesca Sustentável; Projeto de Implantação de Sistemas Agroflorestais; Projeto de Apoio ao Turismo de Base Comunitária, entre outros.

A empresa diz que o “Projeto Potássio Autazes também destinará recursos para as áreas cultural e de preservação do patrimônio histórico com o apoio a museus, sítios arqueológicos e artesanato tradicional. “Teremos ainda o compromisso de destinar até 2% da nossa produção de Cloreto de Potássio para empreendimentos da chamada Agricultura Familiar, desde que atendam alguns requisitos que ainda serão definidos, incluindo o preço subsidiado de aquisição, informa, em primeira mão, Adriano Espeschit, Presidente da Potássio do Brasil”, conforme nota da assessoria de imprensa à Amazônia Real.

Após a publicação desta reportagem, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) enviou nota informando que não realizou visita técnica à comunidade Urucurituba. Conforme o Iphan, o trabalho de pesquisa arqueológica está a cargo da empresa “Arqueologika – Consultoria em Arqueologia e Negócios Socioculturais”, com autorização do Iphan mediante Portaria nº 31 de 05 de maio de 2021. A empresa realiza pesquisa denominada “Programa de Salvamento, Monitoramento Arqueológico e Educação Ambiental do Projeto Potássio Autazes”.

O Iphan disse ainda que não retirou peças arqueológicas, uma vez que essa ação não faz parte do procedimento administrativo regular da autarquia. “A pesquisa arqueológica autorizada pelo Iphan e conduzida pela empresa “Arqueologika” tem apoio institucional do Museu da Amazônia – Núcleo de Arqueologia e Etnologia (MUSA-NAE). Nesse caso, após a conclusão dos trabalhos, o material arqueológico resgatado ficará sob a guarda do MUSA, na cidade de Manaus (AM). Cumpre destacar que a referida pesquisa está em andamento e o relatório final não foi submetido ao exame técnico do Iphan.”

Esta matéria foi atualizada no dia 29 de março de 2022 para incluir resposta do Iphan

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