Philip M. Fearnside

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 8 – Estratégias para iludir o controle

Uma das estratégias para obter a aprovação de barragens com severos impactos sobre a justiça ambiental é de negar a existência de planos para estas barragens até que seja obtida a aprovação para outras barragens em um complexo de projetos […]

Manifestação contra a construção da UHE de Ribeirão- Cachoeira em Rondônia em 2011 (Foto: CIMI)

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 22/07/2019 às 18:30

Uma das estratégias para obter a aprovação de barragens com severos impactos sobre a justiça ambiental é de negar a existência de planos para estas barragens até que seja obtida a aprovação para outras barragens em um complexo de projetos no mesmo rio. As hidrelétricas de Babaquara/Altamira, no rio Xingu, e de Chacorão, no rio Tapajós, são exemplos disso, onde a negação pública dos planos parece ser “desinformação”, ou seja, uma disseminação deliberada de informações falsas [1]. Outra é a hidrelétrica de Cachoeira Riberão (também conhecido como a usina “Guajará-Mirim” ou “Binacional”), no rio Madeira. Em 2006 enquanto preparações estavam em andamento para as barragens de Santo Antônio e Jirau, o chefe da empresa de construção da Odebrecht em Porto Velho disse a este autor que funcionários da Odebrecht eram proibidos de discutir Cachoeira Riberão até que as outras barragens fossem aprovadas.

Outra estratégia é simplesmente não divulgar planos para barragens controversos. Em dezembro de 1987, a ELETROBRÁS lançou seu plano 2010 (depois que o plano havia vazado para o domínio público). Este documento apresentou barragens com mais de 100 MW a serem construídas até ano de 2010, e também incluiu uma lista de barragens planejadas independentemente do ano esperado de construção. Foram listadas 79 dessas megabarragens para a região da Amazônia Legal ([2]; ver: [3]). Isso incluiu cinco barragens na bacia do Xingu, a montante de Belo Monte (que nessa época era conhecido como “Kararaô”) (ver: [4]). Seguiu-se uma tempestade de críticas dos planos para barragens e a ELETROBRÁS nunca mais liberou informações sobre barragens planejadas, sem se limitar a uma linha de tempo relativamente curta, como os planos decenais e relatórios ocasionais para períodos de 20 ou 30 anos.

Barragens que desapareceram dos planos anunciados podem ressurgir anos depois. Um exemplo é que a barragem de Cachoeira Porteira, planejada no rio Trombetas. Um estudo ambiental foi preparado [5]). Quilombos (comunidades de descendentes de escravos africanos) seriam afetados (e.g., [6]), e isto pode explicar por que a represa desapareceu dos planos oficiais. Quilombolas(membros de quilombos) têm os mesmos direitos que os povos indígenas de acordo com a constituição atual do Brasil [7]. A facilidade com que a represa de Belo Monte obteve a aprovação do Congresso Nacional parece ter encorajado planos para barragens que impactam quilombolas e povos indígenas [8, 9]. Além de quilombolas, a barragem de Cachoeira Porteira impactaria comunidades tradicionais de ribeirinhos e coletores de castanha, entre outros impactos ([10], p. 253-317). Maior praia na Amazônia de reprodução de tartarugas se situa a jusante da barragem (e.g., [11]). A barragem de Cachoeira Porteira reapareceu em planos oficiais em 2014 (e.g., [12]), e em janeiro de 2019 o governo de Jair Bolsonaro anunciou o programa “Barão do Rio Branco”, no qual essa barragem é central [13], e que inclua uma rodovia abrindo a bacia do rio Trombetas onde há um total de 15 barragens planejadas, várias delas impactando terras indígenas e quilambolas [14].

Projetos como estes são conhecidos como “projetos vampiro”, porque, assim como um vampiro dormindo em seu caixão, esses projetos podem se levantar mais tarde. Como os vampiros que só podem ser mortos com uma estaca no coração, esses projetos são muito difíceis de cancelar definitivamente. Um caso importante que parece ter se tornado um projeto vampiro é a hidrelétrica de São Luiz Tapajós. A barragem inundaria parte da área indígena Sawré Muybu [15]. Em 19 de abril de 2016 a presidente do IBAMA “arquivou” o processo de licenciamento, com a aprovação do Ministro do Meio Ambiente [16]. No entanto, Presidentes do IBAMA e Ministros do Meio Ambiente mudam frequentemente, e é muito provável que futuros ocupantes desses cargos poderiam “desarquivar” o processo de licenciamento [17]. Funcionários da ELETROBRÁS continuaram a planejar para a represa após o licenciamento ser arquivado [18], e o plano decenal da ELETROBRÁS 2017-2026 afirma que “o processo que envolve essa usina continua sendo acompanhado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e, solucionadas todas as questões ambientais, ela poderá compor a cesta de oferta candidata à expansão” ([19], Capítulo 3, p. 61). Em 17 de setembro de 2018 a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), solicitou à Agência Nacional de Águas (ANA) a reserva de disponibilidade hídrica de domínio da União para a hidrelétrica São Luiz do Tapajós [20]. Estes planos sugerem que aqueles no poder esperem que o sistema de licenciamento ambiental como um todo seja desfeito pelo Congresso Nacional.[21]

Notas

[1] Fearnside, P.M. 2017. Planned disinformation: The example of the Belo Monte Dam as a source of greenhouse gases. p. 125-142. In: L.-R. Issberner & P. Lena (Eds.). Brazil in the Anthropocene: Conflicts between Predatory Development and Environmental Policies. Routledge, New York, NY, E.U.A. 368 p.

[2] Brasil, ELETROBRÁS (Centrais Elétricas Brasileiras S/A). 1987. Plano 2010: Relatório Geral. Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010 (Dezembro de 1987). ELETROBRÁS, Brasília, DF. 269 p.

[3] Fearnside, P.M. 1995. Hydroelectric dams in the Brazilian Amazon as sources of ‘greenhouse’ gases. Environmental Conservation 22(1): 7-19.

[4] Fearnside, P.M. 2006. Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s Hydroelectric Development of the Xingu River Basin. Environmental Management 38(1): 16-27.

[5] Brasil, ELETRONORTE (Centrais Elétricas do Norte do Brasil). 1988. Aproveitamento Hidrelétrico de Cachoeira Porteira. Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. ELETRONORTE, Brasília, DF. 2 vols.

[6] Farias, E. 2014. Hidrelétricas no rio Trombetas preocupam quilombolas e indígenas do Pará. Amazônia Real, 21 de abril de 2014.

[7] Brasil, PR (Presidência da Republica). 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. PR, Brasília, DF.

[8] Fearnside, P.M. 2017. Belo Monte: Actors and arguments in the struggle over Brazil’s most controversial Amazonian dam. Die Erde 148(1): 14-26

[9] Fearnside, P.M. 2017. Brazil’s Belo Monte Dam: Lessons of an Amazonian resource struggle. Die Erde 148(2-3): 14-26.

[10] Teixeira, M.G.C. 1996. Energy Policy in Latin America: Social and Environmental Dimensions of Hydropower in Amazonia. Ashgate Publishing, Aldershot, Reino Unido. 348 p.

[11] Eisemberg, C.C.; Bernardes, V.C.D.; Balestra, R.A.M.; Silva, M.B.O. & Vogt, R.C. 2016. Eventos climáticos extremos relacionados ao ENSO e o sucesso reprodutivo da tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa) na Reserva Biológica do Rio Trombetas. Relatório preparado para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, AM. 20 p.

[12] CPISP (Comissão Pró-Índio de São Paulo). 2014. Estudos das hidrelétricas no Rio Trombetas são retomados sem consulta prévia. CPISP, 24 de agosto de 2014.

[13] Rocha, J. 2019. Bolsonaro government reveals plan to develop the ‘Unproductive Amazon’. Mongabay, 28 de janeiro de 2019.

[14] CPISP (Comissão Pró-Índio de São Paulo). 2019. Governo anuncia nova hidrelétrica na Amazônia que impactará Terras Indígenas e Quilombolas. CPISP, 23 de janeiro de 2019.

[15] Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396.

[16] Araújo, S.M.V.G. de. 2016. Despacho 02001.018080/2016-41 Gabinete da Presidência/IBAMA. Assunto: Processo nº 02001.003643/2009-77- AHE São Luiz do Tapajós. 4 August 2016. IBAMA, Brasília, DF.

[17] Fearnside, P.M. 2016. A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós:22 – Pós-escrito. Amazônia Real,12 de dezembro de 2016.

[18] Nunes, F. & Neder, V. 2016. Eletrobrás quer retomar projeto de megahidrelétrica no Tapajós. O Estado de São Paulo, 01 de dezembro de 2016.

[19] Brasil, EPE (Empresa de Pesquisa Energética). 2017. Plano Decenal de Expansão de Energia 2026. Ministério de Minas e Energia, EPE, Brasília, DF. 2 vols.

[20] Alves, R.F.F. 2018. Despacho. Diário Oficial da União, No. 186, Seção 1, p. 84. 26 de setembro de 2018.

[21] As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq: proc. 304020/2010-9; 573810 / 2008-7), Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM: proc. 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA: PRJ15.125). Esta série é uma tradução de um capítulo do autor no prelo em Landscapes of Inequity: The Quest for Environmental Justice in the Andes/Amazon Region. Nicholas A. Robins & Barbara Fraser (Eds.), University of Nebraska Press, Lincoln, NE, E.U.A.

A imagem que ilustra este artigo mostra uma manifestação contra a construção da UHE de Ribeirão- Cachoeira em Guajará Mirim, Rondônia em 2011 (Foto: CIMI/RO)

Leia os artigos da série:

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 1 – Resumo da série

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 2 – Como se enquadram as hidrelétricas

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 3 – As ironias do discurso

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 4 – A história de tomada de decisão

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 5 – As barragens planejadas

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 6 – O obstáculo do sistema atual

Justiça ambiental e barragens amazônicas: 7 – A erosão do licenciamento ambiental

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br