Philip M. Fearnside

Licença portuária no Pantanal ameaça maior área úmida tropical do mundo

Por Marcondes G. Coelho-Junior, Luisa M. Diele-Viegas, Debora F. Calheiros, Eduardo C. da Silva Neto, Philip M. Fearnside, Lucas Ferrante Em 17 de março foi publicado na prestigiosa revista Nature Ecology and Evolution a versão em Inglês do texto que […]

Pantanal

Por Amazônia Real Publicado em: 27/04/2022 às 16:52

Por Marcondes G. Coelho-Junior, Luisa M. Diele-Viegas, Debora F. Calheiros, Eduardo C. da Silva Neto, Philip M. Fearnside, Lucas Ferrante

Em 17 de março foi publicado na prestigiosa revista Nature Ecology and Evolution a versão em Inglês do texto que segue sobre como um porto recém-licenciado pelo governo estadual de Mato Grosso ameaça o Pantanal. A publicação em Inglês está disponível aqui.

O Pantanal brasileiro é reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade e Zona Úmida de Importância Internacional pela Convenção de Ramsar (Figura 1). A Constituição Federal de 1988 reconhece o Pantanal como “patrimônio nacional”, tornando inconstitucional qualquer proposta que ameace a integridade desse bioma. No entanto, em 26 de janeiro de 2022, o Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (CONSEMA) referendou [1] a “licença prévia” (primeiro passo fundamental no processo de licenciamento) para um porto de exportação de soja que seria transportada pelo Pantanal em barcaças navegando em uma hidrovia criada pela dragagem do rio Paraguai.

Figura 1. Paisagem do bioma Pantanal, uma zona úmida tropical que abrange três países da América do Sul (Brasil, Paraguai e Bolívia)
(Foto: Heideger Nascimento).

Na década de 1990, o trecho desse rio que passa pelo Pantanal (o “Tramo Norte”) foi dragado, e as barcaças transportavam soja de Cáceres a Corumbá (em barcaças menores do que as consideradas economicamente viáveis hoje), mas isso foi interrompido por decisão judicial em 2000. Depois disso, apenas barcos para turismo e comércio local navegam neste trecho do rio. Algumas dragagens continuaram em escala modesta para remover o acúmulo anual de sedimentos e permitir a passagem de barcos, e em 2017 e 2018 a quantidade de sedimentos removido aumentou substancialmente.

Em 2021, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) assinou um contrato para aumentar consideravelmente a quantidade de sedimentos dragados do Tramo Norte [2]. O plano é transformar o Tramo Norte em um canal de navegação de grande porte, requerendo a dragagem em 17 locais para aprofundar e ampliar o canal [3]. Este é o trecho mais frágil do rio Paraguai [4] e ladeia três unidades de conservação de biodiversidade (Parque Estadual do Guirá, Estação Ecológica de Taiamã e Parque Nacional Pantanal Mato-Grossense, sendo os dois últimos Sítios Ramsar), além de uma Terra Indígena (Guató) e várias comunidades tradicionais (“pantaneiros”). A dragagem rebaixa o lençol freático, com impactos em todo o Pantanal, além dos impactos do tráfego de barcaças. O plano proposto apresenta uma análise fraca, ignora cenários de mudanças climáticas que preveem estações de seca severa e negligência impactos socioambientais [5].

Embora o plano hidroviário [3] permaneça sem aprovação, em 25 de janeiro de 2022 o Ministério Público de Mato Grosso emitiu um documento [6] apontando que a aprovação do porto proposto como projeto autônomo serve para evitar a consideração dos impactos maciços do plano da hidrovia. A licença para o porto foi aprovada em 26 de janeiro de 2022, apesar do Estudo e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) ter mais de 100 inconsistências [7], violando tanto uma Recomendação do Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNZU) (nº 10/2018) [8] quanto vários requisitos legais, bem como ignorando as objeções levantadas na reunião do CONSEMA [1] por pesquisadores, órgãos ambientais e ONGs. Grupos de povos tradicionais denunciaram tanto a falta de consulta prévia estabelecida na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, quanto o EIA/RIMA ter omitido a presença de povos tradicionais no entorno do porto [9].

Outros projetos de lei que estão avançando para aprovação aumentariam a ameaça do projeto mais amplo da hidrovia do Pantanal. O projeto de lei n. 3/2022 da Assembleia Legislativa do Mato Grosso permitiria o plantio de soja (liberando o licenciamento) no Pantanal [10]. Isso contraria a Recomendação nº 11/2018 do CNZU, que proíbe o cultivo de soja no Pantanal [11]. Projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional desarticulam o licenciamento ambiental federal [12], removendo assim quaisquer barreiras ao complexo de infraestrutura da soja que ameaça o Pantanal. O Pantanal já sofre impactos ambientais severos: perdeu 68% de sua área alagada desde 1985 [13] e ainda está se recuperando dos incêndios sem precedentes de 2020 – quase 1/3 de sua área foi queimada, incluindo quase todas as terras indígenas e unidades de conservação [14], matando cerca de 17 milhões de vertebrados [15].

As intervenções propostas no rio potencialmente alterariam os pulsos de inundação, alterando profundamente o ecossistema dessa grande área úmida, que desempenha um papel-chave na regulação do clima global como sumidouro de carbono [16]. Espera-se também que a intervenção perturbe os meios de subsistência dos povos tradicionais e coloque em risco a renda que os moradores locais ganham com o turismo da vida selvagem e a pesca [5, 9, 17].

A destruição do Pantanal não é lucrativa nem positiva em nenhum aspecto. O governo do estado de Mato Grosso deve rever sua decisão de licenciar o porto e garantir que a tomada de decisão seja baseada em pareceres científicos, preenchendo a lacuna entre ciência e política para a conservação deste “hotspot” para biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Decisões que ameaçam o Pantanal também ameaçam a reputação internacional do Brasil em questões ambientais e convidam para boicotes à soja brasileira por parte dos países importadores. [18]

A imagem que abre este artigo é de autoria de marcos vergueiro/Governo do Mato Grosso e mostra uma vista aérea do Pantanal.

Notas

[1] CONSEMA (Secretaria Estadual do Meio Ambiente). 2022. 1ª Reunião Ordinária do CONSEMA. CONSEMA, Cuiabá, Mato Grosso. https://youtu.be/yg_uPlIZu1o

[2] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes)2021. DNIT inicia serviço de dragagem no Rio Paraguai. DNIT, Brasília, DF.

[3] ITTI (Instituto Tecnológico de Transportes e Infraestrutura). 2015. Relatório do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental da Hidrovia do Rio Paraguai. ITTI, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná.

[4] Hamilton, S.K. 1999. Nova Hidrovia Paraguai-Paraná: Uma análise abrangente. Mupan, Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 20 p.

[6] MPE-MT (Ministério Público do Estado de Mato Grosso). 2022. Posicionamento público do Ministério Público do Estado de Mato Grosso ao pleno do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) e à sociedade. MPE-MT, Cuiabá, Mato Grosso.

[7] SEMA (Secretaria Estadual do Meio Ambiente). 2021. Parecer Técnico N.º 152841 / CLEIA / SUIMIS / 2021. SEMA, Cuiabá, Mato Grosso.

[8] MMA (Ministério do Meio Ambiente). 2018. Recomendação CNZU n. 10, de 22 de janeiro de 2018. MMA, Brasília, DF.

[9] Le Monde Diplomatique Brasil. 2022. Porto recebe licença prévia para operar no Pantanal e pode trazer mais impactos à região (Le Monde Diplomatique Brasil, 2022)

[10] ALEMT (Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso). 2022. Projeto de lei nº 3/2022. ALEMT, Cuiabá, Mato Grosso. https://bit.ly/34rQFMT

[11] MMA (Ministério do Meio Ambiente). 2018. Recomendação CNZU n. 11, de 22 de janeiro de 2018. MMA, Brasília, DF.

[12] Ruaro, R., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. Brazil’s doomed environmental licensing. Science 372: 1049-1050.

[13] MapBiomas. 2021. A dinâmica da superfície de água do território brasileiro. MapBiomas, São Paulo, SP.

[14] Libonati, R., C.C. DaCamara, L.F. Peres, L.A.S. de Carvalho & L.C. Garcia. 2020. Rescue Brazil’s burning Pantanal wetlands. Nature 588: 217-219. [15] Tomas, W.M., C.N. Berlinck, R.M. Chiaravalloti, G.P. Faggioni, C. Strüssmann et al. 2021. Distance sampling surveys reveal 17 million vertebrates directly killed by the 2020’s wildfires in the Pantanal, Brazil Scientific Reports 11: art. 23547.

[16] Mitshc, W.J., B. Bernal, A.M. Nahlik, Ü. Mander, L. Zhang, C.J. Anderson, S.E. Jørgensen & H. Brix. 2013. Wetlands, carbon, and climate change. Landscape Ecology 28: 583-597.

[17] Gottgens, J.F., J.E. Perry, R.H. Fortney, J.E. Meyer, M. Benedict & B.E. Rood. 2001. The Paraguay-Paraná Hidrovía: Protecting the Pantanal with lessons from the past. Bioscience 51: 301-308.

[18] Este texto é uma tradução de: Coelho-Junior, M.G., L.M. Diele-Viegas, D.F. Calheiros, E.C. da Silva Neto, P.M. Fearnside & L. Ferrante. 2022. Pantanal port license would threaten the world’s largest tropical wetland. Nature Ecology and Evolution

Sobre os autores

Marcondes Geraldo Coelho-Junior é engenheiro florestal e mestre em ciências ambientais e florestais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, está cursando doutorado em Ciências Ambientais e Florestais pela UFRRJ e ocupa o cargo de Analista em Gestão Ambiental e Políticas Públicas no Instituto Centro de Vida (ICV). É pesquisador colaborador do projeto internacional Ecological Economics, Commons Governance and Climate Justice pela York University/Canada.

Luisa Maria Diele-Viegas é doutora em ecologia e evolução e atualmente é pesquisadora de pós doutorado na Universidade Federal de Alagoas, Maceio, AL. Sua pesquisa envolve a avaliação do impacto das ações do homem na biodiversidade, com enfoque em mudanças climáticas e répteis.

Debora Fernandes Calheiros possui graduação em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, mestrado em Engenharia Civil – Área de Hidráulica e Saneamento, pela Universidade de São Paulo- São Carlos e doutorado em Ciências, pela Universidade de São Paulo – Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA-USP). Desde 1989 é Pesquisadora A da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Pantanal, Corumbá, MS

Eduardo Carvalho da Silva Neto possui graduação em agronomia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestrado em agronomia – ciência do solo pela UFRRJ. Atualmente é estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Agronomia – Ciência do Solo (PPGA-CS – UFRRJ), Seropédica, RJ.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 600 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui.

Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Manaus, AM. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

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