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Fátima Guedes

Nada Mudou

Por Fátima Guedes Publicado em: 07/05/2021 às 15:02

Há mais de um ano, ativistas sociais obrigam-se ao recolhimento. Não é fácil, uma vez que tá no sangue, tá nas veias, tá na vida o compromisso militante em prol da Justiça Social. Não tem sido fácil isolar-se das ruas, das praças, dos becos, das periferias, das rodas de conversa no momento em que a vida dos brasileiros clama por intervenções e até enfrentamentos às ininterruptas violações aos direitos individuais e coletivos garantidos em nossa Carta Magna.

Sem dúvidas, os protocolos de prevenção à pandemia são fundamentais até que se alcance a plena equidade sobre o direito de se viver com qualidade de vida. A saída emergencial às militâncias é a comunicação virtual. No entanto, os clamores sociais, as cobranças a governos, a Justiça parecem impotentes a uma eficaz intervenção. O volume de violências aos socialmente vulnerabilizados – mulheres, indígenas, negros, homoafetivos, classe trabalhadora e etc., intensificou-se sem que haja da parte de quem do direito e de direito uma acolhedora atenção. Os testemunhos são diários…

Há de se convir: limitações de leitura social, ausência de teoria e prática revolucionárias impostas pela colonização brasileira, emperram qualquer processo libertário.Intervenções virtuais para efeito transformador exigem dos coletivos militantes desobediência civil, radicalização da democracia…Para melhor compreensão, compadre Zequinha, da Comunidade do Laguinho, esclarece: Se tem medo de cagar, não coma.

Em reforço, as intervenções virtuais são importantíssimas independentemente do momento ou situação, no entanto, requerem estratégias dialógicas no sentido de sensibilizar e provocar à comunidade agir e reagir com autonomia. Do contrário, qualquer boa intenção perde força frente às manipulações sistêmicas e à surda indiferença dos poderes constituídos. A ação presencial ainda é o diferencial nas conquistas sociais: opressor teme povo organizado e destemido.

A propósito,a pandemia midiática tornou-se a droga do século: vicia as massas que, por sua vez, sufocam o autopoder de reinventar; de intervir e transformar a partir de jeitos sustentáveis e de vivência comunitária. Outro agravante é a precariedade dos serviços de internet nas periferias do País. Mas, é o que o momento oferece.

Em meio a tantas incógnitas, emoções afetadas, nossos compromissos militantes aproveitam as migalhas de sinais virtuais e aguçam a memória em busca de estratégias dialógicas, interventivas de alcance popular. A busca nos leva ao objeto mirado: o dia das mães. O volume de comerciais aflorou inquietações feministas. Pensei: – Boa temática para interagir virtualmente!

Remexi arquivos de 2005. O rascunho a seguir confirma: em dezesseis anos a realidade das mulheres em nada mudou…

Abaixo o “dona-de-casa”!

Detalhe da pintura de Afonso Filho

Durante as comemorações alusivas às mães, 2º domingo de maio, as rádios e TVs faturam alto com o mercado lírico consolidando, assim, a violência disfarçada presente nas homenagens à ‘rainha do lar’: “Àquela que, ao mesmo tempo, é mãe, amiga, companheira, dona-de-casa…”, tônico que sela a virtude maternal. ‘Dona-de-casa’ me prendeu atenção… Viajei pela fonética, atravessei o infinito semântico e me deparei com uma ‘agregada do lar, uma administradora doméstica’ sem qualquer reconhecimento profissional.

A curiosidade é a mãe da descoberta. O obscuro me levou ao desafio. Precisava ir além, experimentar e satisfazer o desejo… Pode ser que a informação livresca esteja ultrapassada ou equivocada em relação a nossa realidade linguística…

Saí em busca da homenageada. Por dedução ideológica, fui à periferia. Não foi difícil encontrá-la. Lá estava: cansada, suada, mal arrumada, estagnada em seu trono de ‘rainha do lar’. Em frente ao fogão de lenha, mexia cuidadosamente um panelão de ‘vaca atolada’ para alimentar uma tropa de filhos, netos e crias que, no terreiro do barraco, jogava baralho, abusava da oralidade, disfarçava uma ‘fumaça’ e se empurrava num tal ‘barriga-mole’.

Dona Mariinha, sexagenária, de plantão permanente na cozinha, fiel agregada do lar, aparentava felicidade. De vez em quando, prendia a atenção nas mensagens do rádio, pendurado próximo ao fogão. Exibia orgulhosamente a panela de pressão, o ferro de engomar, o jogo de facas e os guardanapos presenteados pelos filhos: “- Meus filhos são joia!”, exclamava de vez em quando.

A disputa acirrada do baralho, os efeitos da ‘fumaça’ e o consumo exagerado de ‘barriga-mole’ agitaram as ‘joias’ de dona Mariinha. De repente, os presentes ofertados à ‘rainha do lar’, transformaram-se em instrumentos de guerra. Só os guardanapos escaparam… Com certeza, no dia seguinte, alguém precisaria deles para limpar as feridas…

Nesse intervalo, chega a polícia e impõe “normalidade” no barraco. D. Mariinha, inconsolável, recolhe o que restou: o ferro de engomar se misturou às brasas do fogão; a tampa da panela de pressão se perdera no matagal; o jogo de facas desapareceu com a chegada da polícia.

É importante lembrar que solidariedade é a mercadoria que os despossuídos possuem em abundância para globalizar. Consolos não faltaram por parte de outras Mariinhas e o que restou da ‘vaca atolada’ foi socializado entre elas.

Enquanto isso, as mensagens musicais choramingadas às donas-de-casa faturaram porção… Por fim, vieram as bênçãos espirituosas por parte das autoridades no assunto.

E eu fiquei a matutar sobre a crueldade da comunicação: um simples fonema poderia muito bem mudar a história de muitas Mariinhas: a dona-de-casa precisa experimentar, nem que seja no Dia das Mães, o gosto de se sentir Dona da Casa e da própria História.

Todo caos é prenúncio de libertação. A pandemia nos traz essa reflexão. O recolhimento proporciona o autoconhecimento, a autorresponsabilidade, a autoeducação, o autocuidado – requisitos à conquista do equilíbrio e da conexão com a consciência universal presente em todos os seres indistintamente. Daí aflora a criatividade para se reinventar quefazeres libertários: nutrientes de compromissos militantes.

Da cafua de nossas memórias há muito ainda a se resgatar… Sem dúvidas, o momento se oferece em oportunidade para novas semeaduras nos canteiros virtuais de comunicação… É o que temos…

Que a colheita alimente a fome de Justiça daquelas e daqueles que não perderam a capacidade de sonhar e de se empenhar na construção do Bem Viver Universal, apesar do isolamento social…

A imagem que abre este artigo é de autoria de Marinalva Brito.

Artigos de Opinião ou colunas

Sobre a matéria

Fátima Guedes

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

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Autocuidado Fátima Guedes gênero isolamento memórias Mulheres Pandemia

1 Comentário

Afonso JOSE DE MOURA FILHO disse:
08/05/2021 às 14:03
Eu que faço parte de 7 mulheres. Esposa filhas e netas. É um grande compromisso de abraçar essa causa obrigado por também de nós presentear com a nossa obra no seu documentário.
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