Philip M. Fearnside

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 26 — Desmatamento não é desenvolvimento

O termo “desenvolvimento” implica uma mudança com um efeito que aumenta o bem-estar humano. Isso não deve ser confundido com “crescimento”, que se refere a um aumento no fluxo de matéria e energia em uma sociedade humana e pode ou […]

Gado e visto em area de fazenda proximo a floresta no municipio de Apui, Amaszonas Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 16/06/2021 às 12:48

O termo “desenvolvimento” implica uma mudança com um efeito que aumenta o bem-estar humano. Isso não deve ser confundido com “crescimento”, que se refere a um aumento no fluxo de matéria e energia em uma sociedade humana e pode ou não favorecer o bem-estar [1]. Felizmente, o desenvolvimento não necessariamente requer o crescimento, que está sujeito a vários limites planetários (por exemplo, [2]). Fatores limitantes dentro da Amazônia restringem muitos tipos de uso [3-5]. Para ser um “desenvolvimento sustentável”, os sistemas produtivos devem continuar a render seus benefícios por um longo tempo, teoricamente indefinidamente, apesar da advertência da Comissão Brundtland [6] em relação aos recursos não renováveis. Muitos dos usos da terra mais comuns, como pastagens extensas para gado, são insustentáveis (por exemplo, [7]).

No caso da pastagem de gado, que domina áreas desmatadas na maior parte da Amazônia brasileira [8, 9], a população humana sustentada por unidade de área de desmatamento é mínima: a produtividade e o benefício financeiro são pequenos, e o benefício local é até menor [10-12]. A questão de quem se beneficia é, obviamente, crítica para definir o que é desenvolvimento; este autor tem argumentado que as pessoas que vivem na Amazônia devem ser beneficiadas para que os empreendimentos na região sejam considerados “desenvolvimento” [13].

A sequência de mudanças no bem-estar humano à medida que o desmatamento na Amazônia avança tem sido caracterizada como um padrão de “boom e derrocada”, onde os indicadores de bem-estar aumentam na fase inicial do desmatamento e seguem para um declínio após a passagem da fronteira de tal forma que a mediana do índice de desenvolvimento humano (IDH) por município retorna a um nível baixo, semelhante ao nível anterior ao “boom” do desmatamento [14]. Essa conclusão foi baseada em um estudo transversal das estatísticas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para 286 municípios de 1991 a 2000. [15] chegaram a uma conclusão semelhante com base em 399 municípios usando a mesma fonte de dados (também até 2000), embora esses autores também tenham constatado que o IDH poderia aumentar novamente após a queda em um segundo ponto de inflexão.

O padrão de “boom e derrocada” foi contestado por [16], que descobriram que o padrão nos dados transversais é explicado pela correlação espacial porque a fase pré-fronteira é amplamente representada por municípios pobres com floresta abundante na parte oeste do estado do Amazonas, enquanto a “derrocada” pós-desmatamento é amplamente representado por áreas fortemente desmatadas no estado do Maranhão, onde a pobreza persistente do Nordeste do Brasil explica o baixo IDH e não a sequência presumida com base em municípios em outros lugares. O efeito boom-derrocada desaparece sem esses municípios na análise, e estender a análise até 2010 também elimina o efeito; [16] também enfatizam que nenhum dos cinco estudos longitudinais existentes de casos específicos mostra um padrão de “boom e derrocada”. [17] também analisaram esses dados municipais para 1991, 2000 e 2010, descobrindo que a análise transversal mostra um “boom e derrocada”, mas que uma análise de painel indica, em vez disso, um “desacoplamento” do IDH do desmatamento.

Um aspecto importante dos dados do IDH em nível municipal é que apenas a população que está presente no momento de cada censo é considerada. Há vencedores e perdedores com a chegada e com a passagem da fronteira do desmatamento. Muitas das transformações envolvem uma substituição da população residente, com um conjunto de residentes sendo expulso ou comprado pelo próximo. Por exemplo, pequenos agricultores podem ser substituídos por pecuaristas, que posteriormente podem vender suas terras para plantadores de soja de outras partes do país, como ocorreu em muitas áreas de Mato Grosso. Os municípios dominados pela soja em Mato Grosso têm alguns dos maiores valores de IDH do Brasil, mas a população inicial dessas áreas não está mais presente e não está entre os beneficiários: apenas os vencedores permanecem [18].

Tanto a pecuária extensiva quanto a soja ocupam vastas áreas, mas sustentam poucas pessoas em comparação com a agricultura familiar. No entanto, nos cerca de 3.000 assentamentos que foram estabelecidos para apoiar os pequenos agricultores [19], a sequência de desenvolvimentos não é tão diferente em termos ambientais. A grande maioria das terras que os assentados desmatam logo se transforma em pastagens, mesmo que sejam plantadas uma ou duas vezes em culturas anuais de alimentos (por exemplo, [3, 20, 21]). A alteração desse padrão exigirá mudanças na forma como a posse da terra é estabelecida, eliminando a tradição de legalizar invasões, seja por pequenos posseiros ou grandes grileiros [22, 23]. Também exigirá o fim do uso da Amazônia como lixeira para os problemas sociais do País, como o fato que há milhões de agricultores pobres sem terra. A floresta amazônica do Brasil era originalmente do tamanho da Europa Ocidental, e o desmatamento chegou ao tamanho da França em 1998, acrescentou mais um Reino Unido até 2016, e mais uma Bélgica até 2020, a área desmatada chegando a 820,033 km². Só isso já é mais do que suficiente para alimentar a população brasileira. O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina e o segundo maior exportador de soja, o que significa que a produção desses produtos já está muito além da quantidade necessária para alimentar a população do país e de cada hectare que agora está sendo desmatado para pastagem e soja é para exportação. Portanto, o desmatamento pode ser reduzido sem afetar o abastecimento de alimentos do Brasil. Em outras palavras, o “desmatamento zero” é possível. [24]

A foto deste artigo mostra fazenda de gado em área de fazenda próximo de floresta no município de Apuí, no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real)

Notas

[1] Daly, H.E. 1996. Beyond Growth: The Economics of Sustainable Development. Beacon Press., Boston, Massachusetts, E.U.A. 253 p.

[2] Steffen, W. & 17 outros. 2015. Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet. Science 347: art. 1259855.

[3] Fearnside, P.M. 1986. Human Carrying Capacity of the Brazilian Rainforest. Columbia University Press, New York, NY, E.U.A. 293 p.

[4] Fearnside, P.M. 1997. Limiting factors for development of agriculture and ranching in Brazilian Amazonia. Revista Brasileira de Biologia 57(4): 531-549.

[5] Fearnside, P.M. & N. Leal Filho. 2001. Soil and development in Amazonia: Lessons from the Biological Dynamics of Forest Fragments Project. In: R.O. Bierregaard, C. Gascon, T.E. Lovejoy & R. Mesquita (eds.) Lessons from Amazonia: The Ecology and Conservation of a Fragmented Forest. Yale University Press, New Haven, Connecticut, E.U.A. p. 291-312.

[6] Brundtland Commission. 1987. Our Common Future. Oxford University Press, Oxford, Reino Unido. 383 p.

[7] Fearnside, P.M. 1983. Development alternatives in the Brazilian Amazon: An ecological evaluation. Interciencia 8(2): 65‑78.

[8] INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). 2014. Terra Class. INPE, São José dos Campos, São Paulo, SP.

[9] Fearnside, P.M. 1996. Amazonian deforestation and global warming: Carbon stocks in vegetation replacing Brazil’s Amazon forest. Forest Ecology and Management 80(1-3): 21-34.

[10] Fearnside, P.M. 2005. Deforestation in Brazilian Amazonia: History, rates and consequences. Conservation Biology 19(3): 680-688. doi: 10.1111/j.1523-1739.2005.00697.x

[11] Fearnside, P.M. 2013. The evolving context of Brazil’s environmental policies in Amazonia. Novos Cadernos NAEA 16(2): 9-25.

[12] Fearnside, P.M. 2016. Environmental policy in Brazilian Amazonia: Lessons from recent history. Novos Cadernos NAEA 19(1): 27-46.

[13] Fearnside, P.M. 1997. Human carrying capacity estimation in Brazilian Amazonia as a basis for sustainable development. Environmental Conservation 24(3): 271-282.

[14] Rodrigues, A.S.L., R.M. Ewers, L. Parry, C. Souza Jr., A. Veríssimo & A Balmford. 2009. Boom-and-bust development patterns across the Amazon deforestation frontier. Science 324: 1435–1437.

[15] Celentano, D., E. Sills, M. Sales & A. Verissimo. 2012. Welfare outcomes and the advance of the deforestation frontier in the Brazilian Amazon. World Development 40(4): 850–864.

[16] Weinhold, D., E.J. Reis & P.M. Vale. 2015. Boom-bust patterns in the Brazilian Amazon. Global Environmental Change 35: 391-399.

[17] Caviglia-Harris, J., E. Sills, A. Bell, D. Harris, K. Mullan & D. Roberts. 2016. Busting the boom–bust pattern of development in the Brazilian Amazon. World Development 79: 82–96.

[18] Fearnside, P.M. & A.M.R. Figueiredo. 2016. China’s influence on deforestation in Brazilian Amazonia: A growing force in the state of Mato Grosso. In: R. Ray, K. Gallagher, A. López & C. Sanborn (eds.) China and Sustainable Development in Latin America:The Social and Environmental Dimension. Anthem Press, New York, NY, E.U.A.:p. 229-265.

[19] Yanai, A.M., E.M. Nogueira, P.M.L.A. Graça & P.M. Fearnside. 2017. Deforestation and carbon-stock loss in Brazil’s Amazonian settlements. Environmental Management 59(3): 393-409.

[20] Diniz, F.H., M.A. Hoogstra-Klein, K. Kok & B. Arts. 2013. Livelihood strategies in settlement projects in the Brazilian Amazon: Determining drivers and factors within the Agrarian Reform Program. Journal of Rural Studies 32: 196-207.

[21] Fearnside, P.M. 1989. Ocupação Humana de Rondônia: Impactos, Limites e Planejamento. Relatórios de Pesquisa No. 5, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasília, DF. 76 p. http://philip.inpa.gov.br/1989/A Ocupacao Humana de Rondonia.pdf

[22] Fearnside, P.M. 1979. The development of the Amazon rain forest: Priority problems for the formulation of guidelines. Interciencia 4(6): 338‑343.

[23] Fearnside, P.M. 2001. Land-tenure issues as factors in environmental destruction in Brazilian Amazonia: The case of southern Pará. World Development 29(8):1361-1372. doi: 10.1016/S0305-750X(01)00039-0.

[24] Esta série é uma tradução atualizada de: Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon. In: H. Shugart (ed.) Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, EUA.

Leia os outros artigos da série:

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 1 – Resumo da série

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 2 – O que é desmatamento?

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 3 – Por que o desmatamento é importante?

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 4 – Detecção por satélite

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 5 – Ciclos econômicos e especulação imobiliária

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 7 – Incentivos fiscais e Posse de terra

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 8 – Lavagem de dinheiro, exploração madeireira e mineração

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 9 – Estradas

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 10 – Soja

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 11 – Pecuária

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 12 – Crescimento populacional e Dinâmica doméstica

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 13 – Degradação extrema

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 14 – O aumento do desmatamento pós-desaceleração

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 15 – Controle por meio da repressão

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 16 – Remover ou redirecionar subsídios

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 18 — A Moratória da Soja

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 19 – O Acordo da Carne

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 20 – Áreas Protegidas

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 21 – Áreas protegidas e mitigação do clima

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 22 – Vazamento de benefícios climáticos de áreas protegidas

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 23-Refrear projetos de infraestrutura

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 24 – Abandone os mitos que desviam esforços da contenção do desmatamento

O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 25 – Forneça alternativas

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Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br