Procura-se por Jesus

FÁTIMA GUEDES Era dezembro de 1999. Como de rotina, Parintins/AM se agitava para os folguedos de Natal. A imponente catedral de Nossa Senhora do Carmo caprichava nas alegorias e nos ensaios do coral de modo a satisfazer as exigências dos […]

Por Amazônia Real Publicado em: 22/12/2014 às 12:21

Foto: Floriano Lins/AR

FÁTIMA GUEDES

Era dezembro de 1999. Como de rotina, Parintins/AM se agitava para os folguedos de Natal. A imponente catedral de Nossa Senhora do Carmo caprichava nas alegorias e nos ensaios do coral de modo a satisfazer as exigências dos fervorosos cristãos.

Na Colônia Flor de Maio, (Gleba Vila Amazônia/ 30 km da cidade de Parintins), Maria da Silva – roceira castigada pelo abandono e isolamento rural – desde o início do mês, acompanhava através do desfigurado rádio à pilha mecânicas mensagens natalinas. Apesar da chiadeira do aparelho, Maria não controlava as emoções provocadas a partir dos votos de fraternidade, solidariedade, paz… Tornara-se presa fácil nas arapucas dos comerciais que acabam por convencê-la a deixar as plantações, as criações e ficar na cidade por uns dias para participar dos festejos tão badalados. Quem sabe, encontraria Jesus?…

Sufocada a lucidez, Maria enfrenta o caminhão lotado, a poeira da estrada, o preço das passagens… Reúne a curuminzada, ensaca a farinha, pupunha, banana, abacaxi, enrola o peixe salmourado na folha de bananeira e se manda pra cidade. A prima Izabel a acolhe no minúsculo barraco do bairro Itaúna I, recomendando aos curumins que não mexam no pisca-pisca da árvore arrumada num canto do barraco. Sobre as brasas do fogão à lenha, costelas de porco definham sob os olhos desnutridos da família à espera da meia-noite para a tradicional “ceia de natal”. Maria, por sua vez, partilha o que trouxera.

A noite corria apressada como em repúdio aos contrastes entre o “verbo anunciado” e a realidade circundante. A cidade se atufalhava de ruídos sufocando os acordes do “Noite Feliz”: ora eram pneus embriagados rasgando o verniz asfáltico; ora eram gritos vindos dos casebres que se acutilavam pelos excessos da mardita; e, fazendo o contraponto, a sirene das viaturas justificava a ronda caçando frangos desocupados para amontoá-los junto a outros desnatalizados.

Sob o impacto desses arranjos, Maria chega à catedral. Sua presença simples, anônima e silenciosa é despercebida assim como os motivos que a levaram àquele ambiente pouco acolhedor a pessoas com perfis semelhantes ao de Maria. A luxúria do ambiente, o exagero das sedas e aromas extravagantes advindos dos fiéis deixam a roceira sufocada, isolando-a ainda mais de seu propósito: encontrar Jesus.

Nesse clima inóspito, tenta aproximação com autoridades e fiéis ali presentes, porém a frieza e indiferença dos olhares retraem a investida, silenciam seus propósitos somados a de outras mães, vítimas do mesmo drama.

A encenação religiosa terminou pela madrugada. O rebanho deixa o templo e prossegue no individualismo e isolamento rotineiros.

Num impulso inconsequente, Maria interrompe o padre ajoelhado diante do presépio:

– Tô prucurando Jesus…

Nervoso, o padre aponta para o presépio:

– Jesus está aí, não vês?!…

– Não é este, padre. É o Jesus Dark da Silva, meu filho, que foi roubado, lá do porto da cidade. Vim aqui, pra vê se alguém me ajuda achar ele…

A autoridade religiosa seguiu para a sacristia. Outra Maria que conhecia a história daquela mãe e ao mesmo tempo testemunhara a cena daquela noite de natal, aproxima-se, cingi-lhe o ombro com o braço e a conduz até a porta do templo:

– Maria, minha companheira, o problema é que o teu Jesus é Dark da Silva…

Maria silenciou interrogativa… Seguiu seu curso sem entender o sentido daquela mensagem natalina.

O natal da roceira terminara ali… Continuará procurando por seu Jesus, certamente, em lugares mais acessíveis e acolhedores…

Faz quinze anos que o filho de Maria, de quatro anos, desaparecera.

Roceira – trabalhadora rural.

Arapucas – armadilhas artesanais para pequenas presas.

Curuminzada – coletivo para designar a prole das famílias rurais.

Salmourado – técnica comum à base de sal para conservação de carnes e pescados.

Itaúna I – bairro periférico de Parintins.

Curumins – do Tupi – o mesmo que menino.

Atufalhava – enchia em demasia; abarrotava.

Se acutilavam – no popular, se agrediam.

Mardita – no popular, cachaça.

Frangos desocupados – no popular, jovens sem perspectivas; “vagabundos”.

Desnatalizados – excluídos da luxúria natalina.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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