Os imigrantes fogem de confrontos e chegam ao Brasil com fome e sinais de desidratação, percorrendo a pé trilhas perigosas, e dizem temer pelo futuro do país (Foto: Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo)
Pacaraima (RR) – Fazia um ano que Gabriela Aular, 18 anos, sua mãe e seu avô, já idoso, planejavam sair da capital da Venezuela, Caracas, rumo a Puerto Iguazu, na Argentina. Prepararam suas bagagens como se fossem viajar de avião, mas como não teriam dinheiro para isso, a rota seria por terra, de carro. Eles se dirigiram até Santa Elena do Uairén, na fronteira com o Brasil, mas descobriram, no meio do caminho, que a fronteira havia sido fechada desde a manhã de 22 de fevereiro por determinação do presidente Nicolás Maduro. Eles não desistiram. Dormiram dentro do veículo.
Na parte da tarde, a pé, encontraram ruas trancadas e militares que lhes lançaram bombas de gás lacrimogêneo “sem nenhuma necessidade”. Chegaram em Pacaraima às 8 horas do sábado (23) pela trincheira, observados por militares pró-Maduro.
“Lutamos para chegar até aqui, e não sabemos o caminho até o aeroporto mais próximo para irmos até Puerto Iguazu, mas vamos dormir no aeroporto”, disse Gabriela, de poucas palavras e que logo voltou a caminhar.
Protesto de venezuelanos na fronteira com Pacaraima, em Roraima (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado/Amazônia Real)
Maduro anunciou o fechamento da fronteira terrestre com o Brasil “até um novo aviso” na quinta-feira (21), para impedir a entrada da ajuda humanitária brasileira solicitada pelo líder da oposição, Juan Guaidó. O presidente venezuelano também fechou a fronteira com a Colômbia, diante do que chamou de “provocações” e agressões do governo do presidente colombiano Iván Duque em aliança com o presidente americano, Donald Trump. A fronteira com Pacaraima foi fechada pelos militares na sexta-feira (22).
Nesta segunda-feira (25), países do chamado Grupo de Lima, alguns apoiadores de Juan Guaidó, se encontram em Bogotá, capital da Colômbia. O vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão afirmou que os Estados Unidos pressionam por uma intervenção militar na Venezuela. Ele rechaçou qualquer apoio do Brasil a essa intervenção .
Como um ataque militar por parte do Brasil causaria muita instabilidade, o governo brasileiro tenta uma saída diplomática, embora atos de violência de Maduro tenham sido repudiados pelo Ministério das Relações Exteriores. A ONU, até o momento, não havia se pronunciado sobre as mortes e ataques nas fronteiras do Brasil e da Colômbia.
O Grupo de Lima foi criado em 2017, na capital do Peru, reunindo ministros das relações exteriores de 14 países para buscar formas de contribuir com a estabilização da Venezuela. Entre eles, Peru, Brasil, Colômbia, Argentina, México e Canadá.
Cordão humano na fronteira Presidente Nicolás Maduro comemorou com populares (Agência Miraflores)
Juan Guaidó tem apoio do Donald Trump (Foto: Voluntários Venezuela)
A aduana de Santa Elena de Uairén, primeira cidade da Venezuela entrando pelo Brasil, está fechada e cercada por militares da Guarda Nacional Bolivariana, pró Maduro. Mas há duas trincheiras que levam ao Brasil. Elas passam pela Terra Indígena Kumarakapay, no Parque Nacional de Canaima, município de Gran Sabana, onde fica Santa Elena, a 70 quilômetros da fronteira brasileira. Na sexta (22), ocorreu um confronto entre o povo indígena Pémon e os militares venezuelanos. Três pessoas morreram e treze ficaram feridas, segundo o jornal Folha de S. Paulo . Em represália, os indígenas capturaram pelo menos quatro militares, dentre eles o comandante-geral José Miguel Montoya Rodriguez.
A alguns metros à frente da aduana, outro cordão humano formado pela Guarda restringe a passagem pela rodovia BR-174 (que liga Roraima ao Amazonas). As trincheiras estão bem ao lado (à direita e à esquerda), são em campo aberto quando começa a fronteira e alguns homens do Exército Venezuelano ficam em pé ao seu lado. Eles observam as pessoas que, mesmo com o acirramento dos conflitos ali, não deixaram de fugir a pé com malas de rodinhas, mochilas e sacolas carregadas, por não ser possível sair de carro.
O Exército Brasileiro não sabe informar quantos saíram pelas trincheiras, pois muitos entraram para comprar comida nos mercados de Pacaraima, do lado brasileiro, e regressaram com sacolas plásticas lotadas.
Em muitos momentos do sábado (23), o fluxo de pessoas era intenso, principalmente na trincheira que passa por cima do monumento que separa os dois países. Nesse exato trecho, muitos refugiados comemoraram, alguns até cantarolaram debochados para os guardas, ou foram recebidos com alegria.
Iris Romero, 50, chegou mais tarde, quase ao meio-dia. Veio com a prima e os três filhos dela, crianças. Um deles já tinha 13 anos, mas a desnutrição o fazia aparentar ter oito. A mulher chorou ao atravessar. Sua filha de 25 anos e seus netos crianças ficaram em Maturín, a 768 quilômetros da fronteira, e com a crise política ela não sabia se conseguiria reencontrá-los.
Foram 19 horas dentro de um caminhão, até chegarem próximo da base militar Escamoto e da Terra Indígena Kumarakapay. Ali foram acolhidos pelo povo Pémon, que lhes ofereceu comida e um de seus caciques as acompanhou em parte da trincheira. Mas a ameaça de novos ataques militares fez com que eles precisassem caminhar sozinhas, sentindo um medo que só cessou quando viram a Bandeira brasileira.
Fugindo do conflito: família de Iris Romero em Pacaraima (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado/Amazônia Real)
“Foi tão difícil: o país está feio, havia as notícias de que tinham matado índios e sequestrado guardas por ali, a fronteira estava fechada”, enumerou Isis, cansada. Dali, descobririam como chegar em Caroebe, em Roraima, onde o irmão dela já vive. A família bebeu água, recebeu pão e partiu, desta vez com sorrisos largos de quem havia recuperado a esperança.
Quem também conseguiu entrar foi a brasileira Letícia Padovezi que, com o marido carreteiro e outros 16 motoristas, havia transportado fretes de alimentos (como açúcar) de Manaus para descarregarem em Santa Elena na quinta-feira. Com o fechamento da fronteira, todos ficaram retidos.
Letícia denunciou que os caminhões já estavam vazios quando isso aconteceu, mas mesmo assim os militares estavam cobrando cem reais de diária para cada um. “Fugi pela montanha para chegar aqui. Estamos passando necessidade lá e até apagaram as fotos e vídeos do meu celular”, reclamou a moça, que não havia obtido retorno das autoridades ali presentes.
Mesmo no domingo (24), com o aumento da tensão, pessoas continuavam atravessando pelas trincheiras.
A solidariedade aos refugiados Venezuelanos atravessando a fronteira de Pacaraima, em Roraima (Foto: Vanessa Vieira/Amazônia Real)
Alguns moradores de Pacaraima levam carrinhos de bagagem para ajudar os refugiados. Outros oferecem água e pão. Samuel Parao, venezuelano que há quatro anos reside na cidade com a esposa e o filho, contou sobre pessoas que chegam desidratadas e com fome. “Ontem (22) à tarde uma senhora chegou desmaiando por estar há vários dias sem beber água. Hospedamos alguns deles nas nossas casas, também. O presidente é um ditador que só pensa nele e na própria família, enquanto o povo morre de fome, Já estamos cansados disso”, desabafou.
A família venezuelana Giubin, que vive em Pacaraima há cinco anos, chegou de picape com água, café e várias sacolas de pão. São dois irmãos médicos, um marido técnico em enfermagem, uma mulher psicóloga (a única brasileira) e uma prima contadora. Zuli Giubin, a médica, disse que a solidariedade vem desde os tempos em que os indígenas venezuelanos Warao ficavam nas ruas, antes da construção do abrigo da Operação Acolhida e da ONU. “São nossos irmãos e estão precisando muito. Aguardamos a entrada da ajuda humanitária para o nosso país”, disse.
O Exército brasileiro também distribuiu água para os recém-chegados. Filas se formaram ao redor de ambos os veículos. Era um dos únicos momentos em que os militares eram vistos antes do aumento da tensão.
No domingo (24) à tarde, a Força Nacional e a Polícia Rodoviária Federal foram convocadas para formarem uma barreira, separando a Guarda Nacional Bolivariana dos manifestantes venezuelanos a favor do presidente interino Juan Guaidó. No fim da tarde de sábado, os protestantes atearam fogo em uma base militar venezuelana e ao longo do fim de semana seguiram atirando pedras e coquetéis molotov, sendo respondidos com bombas de gás lacrimogêneo. Houve a chegada de um carro blindado e duas fileiras novas de militares. Os guardas recuaram após a barreira brasileira ser feita.
Conflitos como esses, além dos tiroteios e manifestações dentro de Santa Elena, fizeram com que as duas primeiras caminhonetes com ajuda humanitária (entre 6 e 7 toneladas de leite em pó e kits de saúde de baixa complexidade doados pelas autoridades brasileiras e arroz doado pelos Estados Unidos, com capacidade de suprir até 6 mil pessoas durante um mês), fossem levadas de volta para Pacaraima, após ficarem a tarde de sábado estacionadas na fronteira, viradas para o Brasil.
O plano era o de que as duas caminhonetes entrariam e abasteceriam a cidade fronteiriça. Os veículos, com placas e motoristas venezuelanos, faziam parte da rede de voluntários convocada pelo presidente interino Juan Guaidó especialmente para a ação do dia 23, “Coalición Ayuda y Liberdad Venezuela”.
Roberto Lugo, um dos voluntários, denunciou os cortes na eletricidade da cidade desde a sexta-feira, impedindo que eles se comunicassem com os colegas do outro lado. “Não queremos provocar a força repressiva do governo, nem nos deixar levar pela denominação de grupo violento que ele está atribuindo a nós. Superamos barreiras para estarmos aqui, viemos pelas trincheiras caminhando. Viemos pela paz”, afirmou.
Desde a hora em que a primeira caminhonete chegou, por volta de 10 horas do sábado, os manifestantes hastearam pequenas bandeiras e pintaram os rostos com as cores de seu país, entoando coros de “Fuera, Maduro!” e cantando o Hino Nacional. Momento carregado de emoção, pois desde os topos dos morros até no asfalto venezuelanos se aglomeraram pedindo paz e a volta da democracia.
Calamidade dentro e fora da Venezuela Fronteira foi fechada na quinta-feira, 21 de fevereiro (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado/Amazônia Real)
As vítimas mais graves dos ataques dentro da Venezuela precisaram ser levadas de ambulância para Pacaraima ou Boa Vista, capital Roraima, devido à falta de infraestrutura dos hospitais. Somente no sábado, foram mais de sete viagens dessas entre os dois países. O Hospital Délio Oliveira Tupinambá, em Pacaraima é a primeira Unidade de Saúde pelo caminho e consegue fazer os primeiros procedimentos. A quantidade de atendimentos faz com que a equipe médica dê alta para os casos mais leves.
A Secretaria de Saúde de Pacaraima e de municípios vizinhos estão dando apoio com profissionais, insumos e transporte, além do apoio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau-RR).
O Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista, recebe os casos mais graves. No domingo, o governador Antônio Denarium (PSL) decretou estado de calamidade pública para o Ministério da Saúde, que havia se mostrado sensível à situação.
Foram 26 pessoas atendidas de sexta-feira (22) a segunda (25) em Roraima, em estado grave por ferimentos causados por armas de fogo. Os pacientes precisaram fazer de cirurgias a tomografias. Um deles, Rolando García Martinez, vítima do confronto entre indígenas e guardas, respira por aparelhos. Duas pessoas receberam alta ainda em Pacaraima no final de semana, e dois receberam alta no HGR nesta segunda-feira (25).
Com o HGR acima da sua capacidade, brasileiros e venezuelanos sofrem para conseguir leitos. Há pessoas nos corredores das enfermarias, para que o setor de Grande Trauma consiga atender casos dos dois países. Até mesmo pessoas em coma estão ficando no Grande Trauma, pois todos os leitos da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) estão lotados.
Dentre as medidas emergenciais, estão a transferência de pessoas para o Hospital das Clínicas em Boa Vista, que no momento está concluindo as compras dos insumos emergenciais. Se a situação se agravar, apontou a Sesau, vai ser preciso transferir pacientes para outros Estados ou para hospitais privados em Roraima.
Em Boa Vista, refugiados preocupam-se com as notícias Venezuelannos buscam caminho na trincheira entre Pacaraima e Santa Elena do Uairén (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado/Amazônia Real)
Na sexta-feira (21), dentro do abrigo para refugiados Rondon 2, administrado pela Operação Acolhida e pela Organização das Nações Unidas na capital Boa Vista, em Roraima, venezuelanas recebiam certificado de conclusão de um curso profissionalizante. A ex-secretária executiva Lenys Mendoza, 40, se destacou entre as colegas por ser a única vestindo blazer e saia, representando a importância daquele momento em sua vida.
Por trás do sorriso de gratidão pela oportunidade de recomeçar, estava a saudade de sua casa e de seu pai, na Venezuela. E, agora, a preocupação com a notícia de que a fronteira entre os dois países havia sido fechada. “Meu pai ficou preocupado e lamentou, porque menos pessoas vão poder sair de lá, e a ajuda humanitária (oferecida pelos Estados Unidos e países aliados) está sendo impedida de entrar. É uma situação horrível, mais uma coisa errada que o presidente [Nicolás Maduro] faz, e que todos sabemos o quanto ele está nos prejudicando. Queremos liberdade, que a Venezuela volte a ser a mesma que sempre foi para nós”, comentou.
Outra conterrânea, Carmen Ângulo, 53, viajou há quase dois meses com sua filha de 18 anos para Boa Vista. Na capital, seu filho já morava em uma quitinete com a mulher e suas duas crianças. Na Venezuela, ela já não conseguia mais sustentar sua casa, mesmo trabalhando em jornadas que se prolongavam até à noite. De repente, a filha que havia sido aprovada nos primeiros lugares da faculdade de Engenharia Marítima, na Venezuela, e já estava no 3º semestre, agora precisa aprender a soletrar em português. Até o fim do ano, ela quer ter fluência para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A dor que Carmen sentiu ao abandonar tudo pela falta de recursos e de serviços aumenta sempre que recebe notícias sobre os conflitos na fronteira, pelas redes sociais, principalmente quando há mortes. Ouvir o Hino Nacional venezuelano cantado por conterrâneos no sábado (23) na cidade fronteiriça de Pacaraima, no Dia “D” da ajuda humanitária, emocionou Carmen. “Um país tão rico, com um povo tão trabalhador, não deveria estar assim. É muito triste.”
Ela ainda tem irmão e sobrinhos em Puerto Ordaz, a 613 quilômetros do Brasil, e se pergunta que futuro terão eles com o país na situação atual. “É deprimente passar por tudo isso”, disse com lágrimas nos olhos. “A Venezuela passar por tudo isso com o mundo inteiro assistindo.”
No início da crise, Brasil deportou migrantes A imigração de venezuelanos na fronteira brasileira acontece desde 2014 com a intensificação da crise política e econômica no país governado por Nicolás Maduro. A Polícia Federal estima que 95 mil pessoas se deslocaram para Roraima. É o maior fluxo migratório desde a chegada dos haitianos à Amazônia, em 2011.
Em 2017, com o agravamento da crise no país vizinho, o governo brasileiro anunciou o primeiro Plano de Contingência na fronteira do Brasil com a Venezuela. Na ocasião, o Ministério da Justiça negou que a ação fosse de militarizar a região com eventual construção de uma barreira para impedir a entrada dos imigrantes. Mas autoridades locais tentaram conter os refugiados na fronteira. A ONU protestou contra as deportações de venezuelanos do Brasil.
Brasil tentou enviar dois pequenos caminhões com comida; ajuda é questionada por agências humanitárias (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado/Amazônia Real)
Este texto foi atualizado para incluir a informação que o presidente Nicolás Maduro determinou o fechamento da fronteira com o Brasil na quinta-feira (21), mas os militares cumpriram a decisão na sexta-feira (22).
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Parabéns pela reportagem, mostrando o sofrimento de nossos irmãos venezuelanos na fronteira com o Brasil, deixando que eles nos contem sobre as dificuldades que estão passando, na luta para sobreviver na esperança de fazer retornar a democracia no país .