Política

Lei Maria da Penha agora vale também para mulheres trans e travestis

Decisão do STJ atua em casos de violência doméstica ou familiar como importante arma no combate à transmisoginia no país que mais mata pessoas trans no mundo (Foto: Mídia Ninja). Manaus (AM) – Em decisão inédita, a Sexta Turma do […]

Por Nicoly Ambrosio Publicado em: 05/05/2022 às 17:17

Decisão do STJ atua em casos de violência doméstica ou familiar como importante arma no combate à transmisoginia no país que mais mata pessoas trans no mundo (Foto: Mídia Ninja).

Manaus (AM) – Em decisão inédita, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu por unanimidade, em abril, a aplicação da Lei Maria da Penha para proteção de mulheres trans e travestis em casos de violência doméstica ou familiar. O entendimento da aplicação se refere ao artigo 5º da lei, que caracteriza a violência doméstica contra a mulher baseada exclusivamente no gênero feminino.

A aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis serve como precedente para que outras instâncias da Justiça sigam o mesmo caminho. A decisão é fruto de uma análise dos ministros a um recurso do Ministério Público de São Paulo contra o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que em 2020 negou medidas protetivas para a jovem trans Luana Emanuelle contra seu agressor.

A 6ª Turma do STJ durante o julgamento no dia 5 de abril
(Reprodução YouTube)

Luana, hoje com 19 anos, foi espancada dentro de casa, em Juquiá, no interior de São Paulo, após resistir a uma tentativa de estupro feita pelo próprio pai. O TJSP negou as medidas protetivas por entender que a proteção da Maria da Penha é limitada à condição de mulher biológica. O STJ, no entanto, decidiu que a legislação também se aplica a mulheres transexuais e travestis. Para o colegiado do STJ, para efeito de aplicação da lei, mulher trans é mulher também.

“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”, afirmou o relator do caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz.

No julgamento do STJ, os dados do Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras de 2021, produzido pela a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram usados como referência pelo relator do caso. Schietti ressaltou a importância do reconhecimento da violência de gênero que alcança também mulheres trans, o que é reflexo de uma cultura misógina e patriarcal.

Violência contra mulheres trans e travestis

Manifestação em frente ao Fórum Ministro Henoch Reis
(Foto: Raphael Alves/Tjam)

Há treze anos consecutivos o Brasil é considerado o país onde mais se mata a população trans e travesti, segundo a pesquisa da ONG Transgender Europe (TGEU), iniciada em 2008. No dossiê de 2021 da Antra foram registradas 140 mortes de pessoas trans e 81% das vítimas eram negras ou pardas. O Amazonas ficou em décimo lugar no ranking, com quatro crimes, sendo um dos estados que mais matam pessoas trans.

Antes da decisão do STJ, casos de violência contra mulheres trans e a população LGBTQIA+ eram julgados como crime de racismo. Para a transativista e atual presidente da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram), Joyce Lorane, a aplicação da lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis garante a afirmação de suas identidades.

“Nossa população tem um caminho a mais para recorrer e essa aplicação legítima da nossa identidade enquanto mulheres trans. Nós trabalhamos exatamente para isso, para a afirmação de nossas identidades. E a partir do momento que temos uma instituição de poder que reconhece isso, é um passo muito grande na construção de uma sociedade mais igualitária”, diz.

Segundo ela, o acolhimento da lei também auxilia na credibilidade da população trans em relação à Justiça, que muitas vezes deixa de denunciar as agressões que sofre por medo de represálias transfóbicas. “Há um grande número de subnotificações de crimes relacionados à lgbtfobia que não são tipificados dessa forma nas delegacias ou nem mesmo tipificados como Lei Maria da Penha. A maioria das meninas trans não tem vontade de denunciar. Dos casos que acompanhamos, poucos foram resolvidos”, afirma.

A estudante de direito Katryna Bernardo, associada à Assotram, denuncia a falta de leis mais severas em relação à proteção de mulheres trans e travestis e acredita que pouca coisa vai mudar com essa aplicação da lei.

“Não vai mudar muita coisa, agora vamos apenas ter um direcionamento de onde procurar socorro e registrar boletim de ocorrência, sem ter que nos deslocar de delegacia em delegacia e ninguém nos ouvir”, avalia. Para a jovem, as delegacias não garantem os direitos de mulheres trans e travestis em seus atendimentos. “O Estado não tem aparato algum, precisa passar por um treinamento e uma reciclagem, algo que os deixe preparado para nos receber. A luta continua e vamos vencer”, afirma.

Muitos crimes contra pessoas trans envolvem requintes de crueldade. Houve ao menos quatro casos em que foi ateado fogo à vítima ainda viva, como aconteceu com Roberta Nascimento da Silva, em junho, em Pernambuco. Em Manaus, em fevereiro de 2021, a atriz e ativista do movimento trans Manuella Otto, 25 anos, foi assassinada a tiros no motel “Minha Pousada”, localizado na zona norte de Manaus. O crime ainda não foi julgado e o principal suspeito é o policial militar Jeremias da Costa Silva.

Além de ativista, Manu, como era conhecida, era atriz, produtora, empresária do ramo de animação de festas infantis. O assassinato dela provocou revolta entre ativistas do movimento trans e defensores de direitos humanos.

“Estamos falando de uma pessoa que tinha uma carga de conhecimento, experiência dentro do teatro e ela teve a sua vida ceifada de forma brutal. Aí tem um algoz que é um policial militar e o silêncio ensurdecedor da segurança pública do estado”, lamentou Michele Pires Lima, da Assotram, em entrevista à Amazônia Real logo após o crime.

A educadora social, Melissa Castro, também da Assotram, afirma que na maioria das vezes as agressões contra mulheres trans e travestis são caracterizadas como crimes sem agravamento de gênero. A partir da interpretação julgada pelo STJ, essa população terá o acolhimento formal previsto por lei. “A gente também passa a ser acolhida de uma maneira formal em uma lei que já deveria ter acolhido a gente. A Lei Maria da Penha é uma lei para acolhimento de mulheres e não poderia deixar nenhuma população de mulheres fora desse atendimento. Tem que representar todas as mulheridades”.

Para Melissa, a mudança acontece de forma lenta, mas garante segurança no atendimento da população e no combate à transmissonia. “Apesar das suas falhas, a gente sabe o tamanho que essa lei tem no Brasil e acaba despertando um respeito maior nas pessoas que vão nos atender. A gente agora não fica mais dependente da interpretação de quem está à nossa frente sobre quem somos. Muitas vezes essa pessoa pode ser alguém que não simpatiza com pessoas trans. As pessoas acabam nos vendo ainda hoje como homens que se vestem de mulher e a decisão do STJ é baseada na questão de gênero e não de genitália. De alguma forma, essa decisão desperta a curiosidade social em entender porque mulheres trans são mulheres e consequentemente é um avanço no combate a transfobia”, finaliza.

O que dizem as autoridades

Manifestação do Movimento LGBTQI+ em frente à Delegacia de Homicídios em Manaus
(Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)

A delegada Débora Mafra, titular da DECCM (Delegacia de Crimes Especializados Contra a Mulher), localizada no bairro Parque Dez, zona centro-sul de Manaus, afirma que o registro dos boletins de ocorrência serão feitos respeitando e acolhendo mulheres trans e travestis. Segundo ela, no Amazonas a DECCM já ampara essa população em casos de agressões. “Essas mulheres serão atendidas de forma igual, sem nenhum tipo de discriminação. O inquérito vai ocorrer normalmente com a utilização do nome social que é lei e temos que utilizar independentemente se essa mulher retificou ou não os seus documentos na Justiça. O nome social sempre será respeitado e constará em todos os documentos do processo”, diz.

sala de atendimento às mulheres no Fórum de Manaus
(Foto: Raphael Alves/TJAM)

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Local de Cobertura

Manaus (AM)

Nicoly Ambrosio

É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+ do Norte. Em seu trabalho fotográfico, utiliza suportes analógicos, digitais e experimentais para registrar cenas da Amazônia urbana e de manifestações artísticas de rua marginalizadas, como a pixação e o graffiti. Desde 2018, participa de exposições de arte independentes e coletivas em Manaus. Já expôs trabalhos fotográficos no 10º Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e na Galeria do Largo – Espaço Mediações (Manaus/AM, 2020). Recebeu o 1º Prêmio Neusa Maria de Jornalismo (2020), o Prêmio Sebrae de Jornalismo – AM na categoria Texto (2024) e o Prêmio Megafone de Ativismo na categoria Reportagem de Mídia Independente (2025). De 2020 a 2022, participou do projeto de Treinamento no Jornalismo Independente e Investigativo da Amazônia Real.