Morte de Nazildo permanece na impunidade no Pará

Por: Joana Zanotto | 24/05/2019 às 20:19

Testemunhas se dizem ameaçadas e o fazendeiro José Telmo Zani (de blusa azul), réu acusado de mandante, continua em liberdade.

(Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Acará (PA) – Um ano se passou, desde o assassinato do líder quilombola Nazildo dos Santos Brito, da Comunidade Turé III, no nordeste do Pará. Os três réus – acusados de crime de homicídio qualificado, denunciados pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) – continuam na impunidade, sendo que o fazendeiro José Telmo Zani, apontado como mandante da morte da liderança, e um dos atiradores, Raimundo Marcio Pinheiro dos Santos, o Maxixe, continuam soltos. A fase de audiência de instrução, que antecede o Júri Popular, não chegou a ser concluída pela Justiça do Pará. Uma nova audiência está marcada para o dia 25 de junho, no Fórum de Tomé Açu, vizinha de Acará. Enquanto isso, as testemunhas disseram à agência Amazônia Real que se sentem ameaçadas.

O ex-presidente da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas do Alto Aracá (Amarqualta), Nazildo dos Santos Brito, foi morto na noite de 14 de abril de 2018. O corpo foi encontrado no dia seguinte no ramal Roda D´água, na estrada de acesso ao assentamento Turé III, na zona rural de Tomé-Açu. Segundo as investigações da Polícia Civil, “a liderança, que estava em uma moto, foi surpreendida e alvejada nas costas com 20 tiros de arma de fogo, em circunstâncias típicas de execução, pois nada foi roubado dele”, como consta no trecho do inquérito, divulgado pelo Ministério Público do Pará (MPPA).

O motivo do crime, segundo a “Operação Quilombo” da Polícia Civil, foi o conflito agrário, ou disputa de terra, pois o fazendeiro José Telmo Zani tinha interesse nas terras do quilombo Turé III. Nazildo, conforme a investigação, era o líder da comunidade que tentava impedir que o fazendeiro continuasse invadindo as terras para extrair madeira, de forma ilegal. A área em que ocorre o desmatamento tem 2 mil hectares, o equivalente a 20 mil metros quadrados.

Telmo Zani é proprietário da Fazenda Rio Negro, que faz limites com as terras das comunidades quilombolas do Turé. No site da Receita Federal consta que a empresa que administra a fazenda tem capital de R$ 60 mil. Morador de Quatro Bocas, vizinha de Acará, o fazendeiro é bastante conhecido na região.

O MPPA pediu as prisões preventivas do mandante e dos executores, mas a Justiça determinou a prisão temporária apenas de Marcos Vieira, o Gordinho, e Raimundo Santos, o Maxixe. A Justiça indeferiu a prisão de Telmo Zani sob a justificativa de que o réu não causou entraves ao processo criminal. Santos, que chegou a ficar foragido, se apresentou e permanece em liberdade. Vieira e Santos são cunhados e têm relações de trabalho com o fazendeiro.

Marcos Vieira só foi preso após se envolver em outro crime: um acidente de trânsito entre as cidades de Tomé-Açu e Quatro Bocas, em que uma criança faleceu. Ele apontou uma pistola de fogo para o irmão da criança e isso o levou para a prisão. Após este fato, sua prisão temporária pela morte de Nazildo foi convertida em preventiva. Ele cumpre prisão no Centro de Recuperação Regional de Tomé-Açu.

Nazildo dos Santos Brito (Arquivo da família)

A ONU Meio Ambiente condenou o assassinato do líder quilombola Nazildo dos Santos Brito e alertou ao governo brasileiro para a escalada da violência contra os defensores do direito à terra no Brasil. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o líder quilombola foi uma das 16 pessoas mortas em decorrência de conflitos agrários no Pará, em 2018.

A reportagem procurou os advogados de defesa dos três réus. Eles alegaram a inocência de seus clientes. (Leia no final deste texto o que dizem os advogados sobre as audiências da justiça)

Suspense e medo na audiência

Fórum de Tomé-Açu, no nordeste do Pará (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Em 4 de abril, a agência Amazônia Real acompanhou a primeira audiência de instrução, a sessão que antecede o julgamento em Júri Popular dos acusados pela morte de Nazildo. A audiência aconteceu no pequeno e movimentado Fórum de Tomé-Açu, cidade vizinha de Acará, também no nordeste do Pará.

O município fica a cerca de três horas de Belém, e o acesso por Acará tem uma distância de 190 quilômetros, atravessando a ponte da alça viária do rio Moju, que à época não tinha caído. Uma balsa bateu em um dos pilares da estrutura. Agora, o acesso é por um desvio na Rodovia dos Quilombolas.

O Agricultor e liderança da Comunidade Turê III, Laelson de Souza, compareceu ao Fórum de Tomé-Açu, às 9h da manhã do dia 24 de abril. Lá também estava Ruth Amaral de Brito, irmã mais velha de Nazildo, e testemunha da acusação. Na sala fria pelo ar condicionado, os dois, sentados um ao lado do outro, aguardavam a audiência. Em alguns momentos, ambos ficaram com as mãos entrelaçadas, apoiadas sobre as pernas, movendo os dedos, expressando como se sentiam naquele contexto.

Laelson e Ruth estavam presentes no mesmo ambiente em que permaneciam os três réus pela morte de Nazildo: o fazendeiro Telmo Zani, mandante, e os executores, Marcos Vieira, o Gordinho, e Raimundo Santos, o Maxixe. Para evitar mais constrangimentos, os acusados ficaram do lado de fora da sala da audiência no momento dos depoimentos de Laelson e Ruth.

Em seu depoimento, Laelson acusou o fazendeiro Telmo Zani de atear fogo na casa do líder quilombola e de fazer emboscadas. Ele é uma das principais testemunhas do assassinato de Nazildo, seu amigo.

Apesar de nervosa, Ruth respondeu com objetividade às perguntas feitas pelos advogados de defesa, da acusação, o promotor e o juiz. Ela disse que não foi ao local do crime, nem ao hospital ou ao enterro de Nazildo, porque não estava em condições para suportar a dor causada pelo que aconteceu com seu irmão.

“Ouvi boatos de que a cabeça dele estava valendo 30 mil reais”, respondeu ela. Um outro irmão de Nazildo foi ameaçado durante as investigações.

A “Operação Quilombo”, que antes estava sob segredo da Justiça, apresenta indícios contundentes sobre a intenção do fazendeiro Telmo Zani em matar o líder quilombola Nazildo, segundo o promotor de justiça Paulo Sérgio da Cunha Morgado Junior.

Uma das testemunhas da acusação, Erinaldo Lopes, relatou no inquérito da Polícia Civil, do qual a agência Amazônia Real teve acesso, que, por volta de uma ou duas semanas antes do crime, Marcos Vieira, o Gordinho, e Raimundo Santos, o Maxixe, ofereceram R$ 5 mil a ele, para que apontasse quem era Nazildo e onde poderia ser encontrado. Lopes recusou a proposta, disse ele em depoimento à polícia.

Ainda no inquérito, Lopes afirmou ao juiz que foi vítima de atentado e disse acreditar que tal ato foi uma tentativa de “queima de arquivo”. Ele acusou Gordinho e Maxixe de terem a “intenção de matar o quilombola” Nazildo, e de estarem agindo “a mando do patrão”: o fazendeiro Telmo Zani.

No atentado que sofreu, Lopes disse em depoimento à polícia que estava em sua moto em frente ao hospital do distrito de Quatro Bocas, quando tentaram atingi-lo. Ele afirmou que escapou dos disparos pulando o muro.

Nazildo foi encontrado morto em um ramal da comunidade (Foto: Arquivo PC)

Quatro dias após o assassinato de Nazildo, o Ministério Público Federal no Pará (MPF) solicitou à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos uma avaliação para o ingresso de Laelson Siqueira de Souza no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Outras testemunhas do crime também foram incluídas no pedido de inclusão nesse programa de proteção. Os nomes estão sob segredo devido à insegurança na região.

É nessa temperatura elevada que se explica porque Laelson estava transpirando intensamente, na sala de audiência, dado o fato de estar no mesmo local em que estavam as pessoas que o ameaçavam. “Foi perigoso. Não vou me expor”, desconversou ele, quando foi abordado pela Amazônia Real.

Em decorrência do clima tenso na região do Acará, Laelson não anda mais sozinho, desde a morte do amigo, porque além do trauma sofrido pelo assassinato do amigo, também se diz ameaçado como testemunha. Há um ano ele tenta, sem sucesso, o amparo do Estado para ter assegurada sua proteção. Nazildo também pediu segurança e não foi atendido pela Justiça.

Também prestaram depoimentos na audiência o vizinho de Nazildo, Evanilson de Matos, e o policial militar Reginaldo de Macedo, que atendeu a ocorrência no dia da morte do quilombola.

Mas apesar do bom andamento da sessão no Fórum de Tomé-Açu, a audiência foi suspensa de repente, após ser constatado que, pelo menos três testemunhas da acusação não receberam a intimação para depor em juízo e outras duas receberam informação errada do horário da sessão.

Segundo o juiz José Ronaldo Sales, a Comarca de Acará era responsável pelas intimações das testemunhas e não procedeu nesse sentido. Então, uma nova audiência foi reagendada para 24 de abril. Essa audiência também foi suspensa, pois as testemunhas não foram intimadas e por isso não compareceram.

“O Ministério Público insistiu na oitiva das mesmas, por ser de suma importância para os esclarecimentos dos fatos”, argumentou o promotor Paulo Sérgio da Cunha Morgado Junior. Ele pediu o agendamento de nova audiência, agora em 25 de junho.

O que dizem os réus?

O fazendeiro José Telmo Zani é defendido pelo criminalista Osvaldo Serrão, que tem 42 anos de carreira e é muito conhecido na região, por participar de casos de crimes que tiveram repercussão internacional. Ele foi advogado de defesa do fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, condenado por ser mandante do assassinato da missionária norte-americana Dorothty Stang, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (PA).

À agência Amazônia Real, o advogado Osvaldo Serrão afirmou que não há um “elemento concreto” que incrimine o fazendeiro José Telmo Zani na morte de Nazildo dos Santos Brito. Segundo ele, a audiência “veio a confirmar a expectativa da defesa do perfil violento da vítima”.

O promotor Paulo Sérgio Morgado reagiu à declaração de Serrão, dizendo que “a vitimologia distorcida às vezes é estratégia da defesa para desqualificar a vítima”.

O advogado Paulo de Tarso defende o réu Marcos Antônio Oliveira Vieira, o Gordinho. Sobre a morte de Nazildo, o advogado negou que houve mandante, defendendo o fazendeiro e não o seu cliente. “Logicamente sem mandante não teria crime”, argumentou ele.

O outro acusado, Raimundo Marcio Pinheiro dos Santos, o Maxixe, é defendido no processo pelo casal de advogados Margareth Carvalho Barbosa e Luis Carlos Barbosa. Eles comemoraram em suas redes sociais o que consideraram ser um “sucesso total” quando a audiência foi suspensa. Também disseram que a audiência teve “grande repercussão” na cidade. Sobre as acusações contra Santos, os advogados afirmaram que ele não teve “participação alguma no crime” e que teria sido “citado apenas por uma pessoa”, fato que o promotor e o juiz contestaram.