Poetas do Norte criam a escrita das referências locais

Por Jullie Pereira Publicado em: 28/04/2022 às 16:34

Uma nova geração de escritores da região amazônica emerge refletindo vivências que não necessariamente passam por aldeias, culturas tradicionais ou outros marcadores regionais (Mosaico com fotos de André Piñero; Elisa Coimbra; Danna Dantas e com poemas de Jamille Anahata).

Manaus (AM) – “Nascer no interior me levou a escrever sobre os lados de dentro.” É assim que Danna Dantas, escritora nascida em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, se descreve em sua autobiografia. Ela pertence ao povo Baré e sua escrita é composta por aspectos pessoais e urbanos. Sua avó, Djanira de Souza, foi uma indígena que passou a vida toda em um internato de freiras. É por isso que Danna diz ter sofrido por tempos de um apagamento de suas origens. “A questão indígena me perpassa o tempo todo”, diz.

Uma nova geração de poetas do Norte emerge refletindo vivências que não necessariamente passam por aldeias, culturas tradicionais ou outros marcadores regionais. Danna faz parte desse grupo. Ela publicou seu primeiro livro com apoio do Prêmio Manaus de Conexões Culturais e pela Lei Aldir Blanc, de 2020. Feita com o ilustrador e amigo Luiz Eduardo Lima, a obra Histórias Incrivelmente Comuns reúne narrações publicadas no projeto Urban Cookie, mantido desde 2020 pelos dois, no Instagram.

Estudante de Letras pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Danna passou a escrever há cinco anos. Hoje ela vive em Manaus e colabora para a revista Mormaço. Suas poesias e prosas poéticas não seguem regras ou linhas. “Quando comecei a tentar, quis visualizar a literatura como uma possibilidade. Sempre tive na cabeça que o texto pode ser o que você quiser e posso falar as coisas do jeito que eu quiser. Sem me prender a um formato, escrevo poesia com versos sempre livres. Eu não tenho métricas e estruturas clássicas. Porque o texto é sempre uma possibilidade, uma tentativa”, explica.

A saga para a publicação de Histórias Incrivelmente Comuns foi intensa. A dupla procurou gráficas, fizeram edição, revisão e todo processo criativo. O resultado das ilustrações também se tornaram projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Luiz Lima, na Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica (Fucapi). “É uma coisa muito difícil, por isso talvez as coisas não aconteçam com tanta facilidade. Foi um ‘corre’ muito pra gente conseguir, mas com o suporte financeiro e ajuda de outras pessoas nós publicamos”, explica Danna.

Os poetas do Norte lutam para romper com estereótipos. A poeta Jamile Anahata escreve poesias desde a infância, quando participou de um concurso literário na escola em que estudava, em Manaus. Mulher bissexual e em processo de retomada do seu povo Parintintin, Jamille fala sobre amores não-monogâmicos, experiências pessoais e seu reconhecimento enquanto indígena. Ela tem poemas publicados nas antologias Poesia Indígena Hoje, Longe de Monte Carlo e Chão Vermelho. “Mas nenhum vínculo é tão forte quanto o dos encantados / a ancestralidade nos guia de volta”, diz em um de seus poemas.

Hoje, Jamille mora em São Paulo, onde busca se firmar como escritora e ativista. De forma independente, ela escreve e produz fanzines impressos. “Quando a gente fala que é do Norte, indígena, as pessoas já têm um imaginário muito específico, principalmente as pessoas do Sudeste, e eu não faço parte desse imaginário. As pessoas questionam pela minha aparência se eu sou indígena, porque eu pinto o cabelo, porque não nasci dentro de uma aldeia”, diz.

A ideia de que indígenas estão presos a vivências relacionadas à fauna e à flora ainda é disseminada. Jamille busca, pela literatura, se contrapor aos diferentes tipos de preconceitos. “Esse mito do indígena único, folclórico e imaginário aos poucos é derrubado. A literatura chega nesse espaço também. A nossa escrita não necessariamente vai falar do que as pessoas entendem como folclore, mas pessoas indígenas não querem falar só de um assunto específico, também falamos de corpo e de afeto”, afirma.

O espaço poético virtual

Elisa Coimbra durante performance no teatro em Boa Vista (Foto: Divulgação)

O mercado editorial brasileiro viu seu faturamento cair 30% em 15 anos, de acordo com pesquisa feita pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). Essa realidade empurrou escritores para a internet, que se tornou um espaço para compartilhamento de produções poéticas.

A revista Torquato existe há dois anos e, de forma digital, faz uma curadoria de poetas brasileiros. A linha editorial da revista preza o “combate ao racismo, LGBTfobia, machismo, fascismo e outras expressões de preconceito e desigualdade”. Autores do Brasil e de países lusófonos podem enviar trabalhos de poesia, prosa, artes visuais e traduções, mas a revista prioriza e faz questão de dar espaço para os poetas do Norte.

A revista é feita por 3 escritores: Susy Freitas, Daniel Amorim e Douglas Laurindo, todos de Manaus. Entre 2019 e 2021, Susy e Daniel ministraram oficinas de escrita criativa, que foram viabilizadas por editais de fomento à cultura. “Queremos que os textos façam reflexões críticas de todos os problemas do contexto social de fato”, explica Susy Freitas, que também é escritora e poeta. Susy é autora dos livros Véu Sem Voz, Alerta, Selvagem e Carrego Meus Furos Comigo.

A revista Torquato já publicou seis edições. Questionada sobre o uso da internet para produção poética, Susy faz críticas aos “instapoetas”, escritores que usam o Instagram para publicar trechos de poesias próprias que viralizam. “É o tipo de produção que não me toca, que não me diz nada e que realmente está ali pelos likes, porque a pessoa achou que aquilo combinou com o horóscopo que ela ouviu na rádio de manhã. Tenho mais interesse em outros aspectos e daí vem a linha editorial da revista”, defende.

A escritora e poeta Elisa Coimbra, de Roraima, disponibiliza seus livros a partir de suas redes sociais, mas ela não faz parte do grupo dos “instapoetas”. Com duas obras publicadas, Sem Título e Mó, Elisa acredita na facilitação da literatura feita de forma independente e questiona os custos para publicar e vender livros.

“Disponibilizar em PDF foi uma forma de provocar, porque o conceito do que pode ser um livro é muitas vezes elitista. Eles dizem: ‘Você só se torna poeta a partir do seu quarto livro’, ou ‘eu sou contra a máquina de xerox porque ela sucateia o trabalho dos escritores’, mas quando você vai ver, tem gente cobrando 60 reais por livro”, explica.

Elisa enxerga que as redes podem ser ferramentas de aproximação e que não necessariamente transformam o conteúdo em algo superficial. “Você entra nessa de produzir cada vez mais conteúdo por causa do algoritmo e toda a produção precisa ser algo compartilhável, por conta dessas demandas próprias dos algoritmos, o trabalho pode ficar bem mais sucateado”, diz.

Oportunidades e desafios

André Piñero (Foto: Divilgação)

Os poetas do Norte têm conseguido publicar suas obras de forma impressa, com dedicação e oportunidades. O professor André Piñero publicou seu primeiro livro em outubro do ano passado. Nascido em Belém, no Pará, há dois anos ele reside na capital do Amazonas, onde dá aulas no sistema estadual de ensino. O livro Copo Americano reúne 46 poesias que ele escreveu antes e durante a pandemia da covid-19. A publicação só foi possível com a seleção da Editora Urutau, que abre chamada para escritores iniciantes da região amazônica.

Dividido em três partes, o livro traz poemas com críticas sociais contra o governo federal, que citam momentos cotidianos da vida do autor e também casos amorosos. Durante a pandemia, Piñero passou a organizar e reescrever textos que estavam guardados desde 2015. “Ficar três meses trancado em casa, sozinho, foi muito difícil. Eu escrevia poemas a cada mês, senão eu ia enlouquecer. Nesse período meu melhor amigo morreu, então eu pensei ‘ao invés de falar com as paredes é melhor eu escrever’“, conta.

O professor tem a expectativa de inscrever sua obra no Prêmio Jabuti, que está com as inscrições abertas e aceita candidaturas de conteúdos lançados no ano anterior à edição. Mas Piñero faz críticas ao prêmio, sobretudo por seu caráter excludente. Para fazer a inscrição, é cobrada uma taxa de aproximadamente 400 reais.

“Esse prêmio é feito pela galera que não é do Norte. Eles vão olhar para o que acreditam que esteja mais próximo de representar o que é nacional. A gente do Norte discorda disso, porque aqui a gente também é Brasil. Temos uma cultura até mesmo com mais personalidade, mais força, mais tradição, para eles isso talvez seja exótico e agora talvez seja mais vendável, mas pra gente é cultura, vivência, rotina e é ser brasileiro também”, diz Piñero.

O único escritor da região amazônica que venceu na categoria “poesia” do Prêmio Jabuti foi Thiago de Mello, nos anos de 1997 e 2000. Antes dele ou depois, nenhum outro recebeu a honraria. A primeira edição ocorreu em 1959. Nos últimos 20 anos, poetas do Sudeste, Nordeste e Sul foram os principais premiados. Foram 14 premiações para poetas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Thiago de Mello venceu com as obras De Uma Vez por Todas e Campos dos Milagres. Em 2002, ele recebeu menção honrosa pela obra Poemas Preferidos pelo Autor e seus Leitores e em 2018 foi homenageado como personalidade literária. Thiago morreu em janeiro deste ano, por causas naturais, aos 95 anos.

Sem políticas públicas

Susy Freitas (Foto: Marcelo Moraes/Divulgação)

Os poetas do Norte se queixam da falta de representatividade e reconhecimento, mas acreditam que suas produções têm maior valor entre os leitores de suas localidades. A poeta Susy Freitas critica a falta de políticas públicas de incentivo e formação para autores contemporâneos.

“Nossas políticas públicas estão fincadas no passado, em obras do passado, em modos de produção do passado e não existe atenção ao que é feito na contemporaneidade, não existe esse equilíbrio em conseguir perceber o que se há de novo. Falta um cenário, uma contextualização, faltam polos para incentivar essa produção”, explica.

Susy afirma que o Prêmio Jabuti é composto por pessoas que valorizam aspectos da escrita cujas referências são sudestinas, o que leva os artistas do Norte a não serem escolhidos com mais frequência. “Quando a referência é algo distante da nossa realidade, a referência em modos de se expressar, de falas, jeito de escrever, de assimilar a oralidade, isso ocorre. A referência é o Sudeste, como a gente pode ganhar um prêmio que as pessoas que vão fazer o julgamento estão totalmente dentro dessa referência?”, questiona.

A Câmara Brasileira do Livro, responsável pelo prêmio, foi questionada pela Amazônia Real a respeito da falta de poetas do Norte nas premiações das últimas décadas, mas não respondeu à reportagem.

Apesar dos poetas do Norte não terem sido premiados, escritores da região foram reconhecidos em outras categorias em anos recentes. A paraense Monique Malcher venceu a categoria “Contos”, por seu livro Flor de Gume, em 2021. No mesmo ano, o manauara Ademar Vieira foi indicado na categoria “Histórias em Quadrinhos”, pelo livro Ajuricaba. Em 2017, o escritor Cristino Wapichana, de Roraima, venceu a categoria “Infantil”, com o livro A Boca da Noite.

“Existimos e publicamos”

Paulo Monteiro (Foto: Divulgação)

O poeta Paulo Monteiro, de Manaus, publicou seu primeiro livro em 2017, embora tenha iniciado na escrita seis anos antes. O Jazz para Rinocerontes expõe uma vivência boêmia, referências à cultura pop e à música. Antes da publicação, Paulo escrevia fanzines para vendê-los em bares e praças. O livro foi feito após uma chamada pública da Editora Moinhos, de Belo Horizonte. “É importante para dar visibilidade, a pessoa consegue alcançar mais gente e vejo que é importante. Eu quero muito que as pessoas do Norte ganhem prêmios para que a região seja valorizada”, diz.

Mesmo com o desejo de que sua arte seja vista, Paulo teme que esse reconhecimento seja exotizado e classificado como “poesia regional”. O escritor afirma que essa invisibilidade existe por ignorância. “Nós existimos, escrevemos e publicamos, estamos nas ruas. O Norte continua sendo invisível e poucas pessoas conseguem furar essa bolha, como Thiago de Mello, Milton Hatoum, mas existem muitas pessoas produzindo”, diz.

Poeta urbano, Paulo também vende seus fanzines e seu livro de mão em mão. “Se queremos conquistar espaço e ser lidos, temos que fazer por onde também. Às vezes precisamos sair rasgando e penetrando os espaços, conquistando mesmo”, conta.

A escritora Carol Magno, de Belém, publicou o primeiro livro de poesias em 2016, intitulado Feminino à Queima-Roupa. Durante sua pesquisa de doutorado, que envolve a escrita feminina, Carol viajou conversando com outras mulheres e constatou que não havia referências de escritoras nortistas. Por isso, Carol está focada em reunir poemas de mulheres que fizeram parte da “Roda de Escritoras Paraenses” .

“Nem as mulheres que já foram premiadas conhecem poetas da nossa região. Existe essa invisibilidade, mas percebo que não é sentida só no Norte, existe esse eixo que é considerado centro (São Paulo e Rio de Janeiro) e nós todos somos o resto”, afirmou.

O trabalho para fazer a antologia é grande, porque envolve produções de mais de 50 mulheres, além dos debates que envolvem a presença de pessoas trans e negras. A expectativa é de que a antologia seja feita em formato de e-book. “Precisamos ser cada vez mais independentes, para que a gente não tenha essa demanda de ter que sair, ir para o Rio de Janeiro, para São Paulo, porque eles têm que vir para cá, porque o resto do Brasil é muito maior do que esse eixo”, conclui.

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“Quando a referência é algo distante da nossa realidade, a referência em modos de se expressar, de falas, jeito de escrever, de assimilar a oralidade, isso ocorre. A referência é o sudeste, como a gente pode ganhar um prêmio que as pessoas que vão fazer o julgamento estão totalmente dentro dessa referência?”, questiona a poeta Susy Freitas.

Links:

https://www.premiojabuti.com.br/premiados-por-edicao/

https://amazoniareal.com.br/morte-do-poeta-thiago-de-mello/

https://www.editorapatua.com.br/produto/76322/alerta-selvagem-de-susy-freitas

https://editoraurutau.com/titulo/carrego-meus-furos-comigo

https://revistatorquato.com/

https://editoraurutau.com/titulo/copo-americano

https://www.instagram.com/elisacoim/

https://medium.com/@dannachr

https://www.instagram.com/urbcookie/

https://www.instagram.com/jamille.anahata/

https://medium.com/morma%C3%A7o-editorial

https://editoramoinhos.com.br/loja/jazz-para-rinocerontes/

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Manaus

Jullie Pereira

Jullie Pereira é manauara, jornalista formada na Universidade Federal do Amazonas, com pesquisa científica em análise do discurso político e TCC em produção de documentário sobre questões de gênero. Desenvolve trabalhos com foco em direitos humanos e já participou de projetos com organizações nacionais e internacionais, como a Safer Net e Artigo 19. Em 2018 trabalhou como produtora de TV no Grupo Rede Amazônica e atualmente é repórter do site Amazonas Atual, além de ser colaboradora da startup galápagos Newsmaking. Em Manaus, cria ações semanais dentro do CPA - Centro Popular do Audiovisual e da Abaré Escola de Jornalismo, projeto de combate à desinformação que fundou em 2020.