Ancine promete reparar edital que excluiu produções nortistas

Por Wérica Lima Publicado em: 20/01/2023 às 11:21

Diante das críticas de realizadores, agência volta atrás e anuncia que produções da região serão contempladas; com destaque internacional, o audiovisual na Amazônia mais uma vez é apagado por uma política de seleção excludente herança do governo Bolsonaro. Na imagem acima, o ator Adanilo em fotografia de still de Noites Alienígenas, dirigido por Sérgio Carvalho (Divulgação)

Manaus (AM) – Pressionada, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) sinalizou que vai voltar atrás e contemplará projetos de audiovisual da Região Norte. A chamada pública BRDE/FSA – Cinema – Novos Realizadores 2022 deixou de fora todas as propostas de produtores da Amazônia. Na quinta-feira (19), um dia após a divulgação dos resultados, a Ancine e o Ministério da Cultura anunciaram que vão “adotar, em regime de urgência, providências para atender também aos realizadores da Região Norte”. Foi uma rápida resposta às manifestações de repúdio contra essa exclusão, que é mais uma herança maldita do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Mesmo com a obrigatoriedade do edital em preencher 40% dos recursos disponíveis com projetos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e foco em priorizar artistas em ascensão, nenhuma produtora independente nortista foi contemplada com os 46,1 milhões de reais destinados a 26 projetos. No resultado do edital da Ancine, publicado na quarta-feira (18), ficou evidente a exclusão de produções da região Norte: Pernambuco (8 projetos contemplados), Bahia e Distrito Federal (5 cada), Goiás (3), Paraíba e Mato Grosso (2) e Ceará (1).

“Na Amazônia que tem ganhado destaque nacional, internacional, o resultado de um edital que deveria estar fomentando a produção na região, acaba criando uma grande exclusão, vi isso com muita sombra, muita perplexidade e muita tristeza também”, desabafa o cineasta Sérgio de Carvalho. “Estamos vendo um virtual apagamento do Norte no cenário do cinema brasileiro. Isso é grave. Se pensarmos que é na região Norte que está a Amazônia, teremos a noção da gravidade da situação”, acrescenta Gustavo Soranz, diretor da região Norte da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API).

O diretor Sérgio Carvalho foi premiado no 50º Festival de Cinema de Gramado pelo longa Noites Alienígenas
(Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto)

Tão logo foi divulgado o resultado da chamada pública, Zienhe Castro e Manoel Leite (ZFilmes Produções), Fernando Segtovick (Marahu Filmes), Pablo Guimarães Costa (Floresta Cinema Video) e Sergio de Carvalho (Saci Conteúdos) publicaram uma nota ácida contra o edital da Ancine. “O fato é que nenhum dos sete estados da região Norte teve projeto aprovado, mesmo na cota reservada, onde competia apenas com os estados do Nordeste e Centro-Oeste. Isto não faz sentido. Nesse momento histórico em que a palavra “Amazônia” vira o foco da atenção mundial, a Ancine determina que nenhum projeto desta região é digno de ser escolhido num edital que contemplou 58 projetos de novos realizadores do Brasil inteiro?”, questionam.

O recuo anunciado pela Ancine dá alguma esperança aos realizadores, mas não esconde um mal-estar que não se limita a esse edital. A região Norte já havia sido excluída do edital Produção Cinema 2022. “É a Amazônia sendo novamente colônia do Brasil. Sem filmes feitos na região por cineastas que nela vivem, o imaginário sobre a Amazônia e sobre o Brasil permanecerá um imaginário elaborado por forasteiros. A Amazônia não pode ser apenas um tema de interesse no debate climático. É hora de perceber como a produção de imagens e de narrativas sobre a região por seus próprios habitantes é fundamental para ampliar a visão que temos do Brasil”, diz Gustavo Soranz.

O brilho do cinema do Norte

Cena de Noites Alienígenas com Gleici Damasceno e Gabriel Knoxx (Foto: Divulgação)
O ator Adanilo em fotografia de still de Noites Alienígenas, dirigido por Sérgio Carvalho (Divulgação)
A atriz Isabela Catão em cena de "O Barco e o rio" (Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação)
A atriz Isabela Catão em cena de "O Barco e o rio" (Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação)
A atriz Carolinne Nunes em cena de "O Barco e o rio" (Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação)
jaider Esbell em cena de Por onde anda Makunaíma (Foto; Divulgação)
Still de Por onde anda Makunaíma (Foto: Divulgação)
Still de Por onde anda Makunaíma (Foto: Divulgação)
Still de Por onde anda Makunaíma (Foto: Divulgação)
Cena de Uyra, a retomada da floresta (Foto: Divulgação)
Cena de Uyra, a retomada da floresta (Foto: Divulgação)
Cena de Uyra, a retomada da floresta (Foto: Divulgação)
Cena de Uyra, a retomada da floresta (Foto: Divulgação)

Diante do resultado, os realizadores relembram grandes premiações nortistas dos últimos anos em festivais, o que derruba qualquer argumento contrário de não haver uma produção de qualidade. Em 2020 o filme Por onde anda Makunaíma, uma produção de Roraima de Rodrigo Séllos, venceu o prêmio Candango de Melhor Filme no Festival de Brasília. Em 2021, o curta-metragem O Barco e o Rio, do diretor Bernardo Ale Abinader no Amazonas, venceu as principais categorias do festival de Gramado, levando cinco Kikitos, dentre eles Melhor Filme do Júri Popular, Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte. Já em 2022, o longa-metragem Noites Alienígenas, do Acre, dirigido por Sérgio de Carvalho, fez história ao ser o primeiro do estado a vencer na 50ª edição do Festival de Gramado, conquistando cinco prêmios Kikitos, além de uma menção honrosa.

O desastre da exclusão de cineastas do Norte pode ser explicada por mudanças ocorridas na Ancine, a partir de 2019. Os pareceristas, ou seja, os avaliadores, em grande parte passaram a ser pessoas voluntárias sob a alegação de falta de recursos devido aos cortes gerados por Bolsonaro. Os remunerados que faziam parte do quadro interno da Ancine também não tiveram seus nomes divulgados, como acontecia em outros governos.

Contrariando um ritmo proposto pelo mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), que em seu governo fez implementação da Lei 12.485 de 2011, lançou o programa “Brasil de Todas as Telas”, em 2014, e promoveu a participação e presença do Norte no audiovisual, a pluralidade foi ficando de escanteio junto com a falta de transparência no governo Bolsonaro.

Ismael Machado, cineasta do Pará, integrante da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API) e sócio da Floresta Urbana, produtora de Belém, explica que anteriormente era possível ter um feedback de cada etapa do processo de seleção, como as fases de habilitação documental, avaliação dos participantes e da produtora, com tempo para abrir recursos com relação a documentação.

“Havia uma transparência, você sabia quem eram os pareceristas, tinha acesso aos pareceres sobre o teu projeto, sobre o roteiro, enfim, sobre a viabilidade, a discrepância do teu orçamento com o teu projeto. Você tinha um retorno, era mais transparente dessa lógica”, conta. “O que muito nos espantou agora dessa vez é que nenhum foi selecionado. Essa é a grande questão e sem que nós saibamos que tipo de critérios foram usados, quem fez os pareceres, de que forma, ninguém sabe nada, porque tudo no governo Bolsonaro era um governo às escuras.”

Soranz critica a inclusão do desempenho comercial junto aos critérios de desempenho artístico nos últimos editais. “Cada edital se tornou um espaço de grande concorrência entre todos, contudo, os critérios comerciais se impõem na avaliação, e neste ponto os projetos do Norte saem em grande desvantagem. Estamos distantes das distribuidoras de cinema e dos exibidores do eixo do Sudeste e isso dificulta o diálogo e a inserção das produtoras da região no circuito mais estabelecido do eixo e o resultado pode ser visto nesses editais de 2022”, explica.

“É uma completa falta de compreensão da realidade amazônica, da profissão no norte do Brasil. Eu acho que foi uma banca feita por pessoas que realmente não tem conhecimento da produção regional, do que é produzido, da maneira que é produzido na Amazônia”, acrescenta Sérgio de Carvalho.

Para Clemilson Farias, diretor do Norte da Conne e um dos coordenadores do Mercado Audiovisual do Norte (Matapi), o edital da Ancine é um resquício bolsonarista. “Foi lançado dentro do outro governo, eles desconstruíram a lógica de seleção e do processo de pontuação e seleção dos editais que vinham dando certo, que vinha numa crescente virtuosa e aconteceu isso. Eles mexeram demais num negócio que estava bem estruturado e sem a reflexão suficiente”, afirma.

Alteração do resultado

Clemilson Farias (Foto: Reprodução Instagram)

“Recebemos essa resposta (o recuo no edital da Ancine) com ar de esperança renovada. Eu acredito que são reflexos do novo cenário político. Temos um governo, de novo um líder que pensa nas coisas porque nunca a gente conseguiu imaginar esse cenário no Bolsonaro. Chegamos a enviar vários ofícios e eles nunca respondiam”, ressalta Clemilson Farias. “A gente acredita que daqui para frente não podemos aceitar menos do que isso.”

A Ancine e o Ministério da Cultura, recriado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), publicaram uma nota em conjunto informando que a Chamada Pública BRDE/FSA Cinema – Novos Realizadores 2022 ainda se encontra na fase recursal, e que o compromisso do novo governo é de “manter a equidade da política pública e o consequente desenvolvimento de todas as Regiões do País”, além de tomar medidas para que “nas próximas chamadas não ocorram distorções nos indutores regionais”.

Para incluir produções da região Norte, a Ancine avalia criar uma suplementação de recursos, de forma a não prejudicar os já contemplados. A agência informou ainda que irá considerar os argumentos e sugestões apresentados pelos realizadores nortistas nas tomadas de decisões.

Após receber os resultados do edital da Ancine, a direção da Associação de Produtores do Audiovisual do Centro-Oeste Norte Nordeste (Conne) e a Associação de Produtores do Audiovisual Negro (Apan), encaminharam na quinta-feira (19), um ofício direcionado ao diretor presidente da agência, Alex Braga. O documento ao qual a Amazônia Real teve acesso, solicitou que a Ancine analise e acate as medidas propostas pelas organizações “para possibilitar o justo acesso das produtoras da região Norte aos recursos previstos para a macrorregião Conne”.

Dentre os itens, o ofício solicita a possibilidade de revisão do resultado preliminar para que os projetos da região Norte sejam incluídos e que para nas próximas chamadas públicas a agência considere a escolha de no mínimo um projeto de cada região da Conne “de forma a garantir um mínimo de diversidade e distribuição dos recursos”, conforme diz o documento.

O ofício também solicita a disponibilização dos dados de editais anteriores no período entre 2019 a 2022, para serem analisados e promoverem uma reflexão a respeito das políticas públicas do audiovisual. “A região Norte, integrante da Conne, é um território estratégico e de grande potência nas temáticas atuais, que conta com grandes profissionais e obras no setor cultural, mas que ainda não é enxergada em sua totalidade pelos agentes públicos e não consta de suas agendas oficiais, tendo sido invisibilizada, nos últimos anos, pelo desmonte das políticas culturais. Não podemos mais aceitar este lugar. Somos também protagonistas do Brasil”, diz o documento.

Exibição de Noites Alienígenas no Rio de janeiro (Foto: Reprodução Instagram)

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Citações

“Sem projetos nesses editais aquele ciclo crescente de filmes e de crescente qualidade artística dos filmes da região será inevitavelmente interrompido. Estamos vendo um virtual apagamento do Norte no cenário do cinema brasileiro. Isso é grave. Se pensarmos que é na região Norte que está a Amazônia, teremos a noção da gravidade da situação”, afirma Gustavo Soranz, diretor da região Norte da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API).

Links

https://www.gov.br/ancine/pt-br/assuntos/noticias/informe-ao-mercado-24

https://www.cineset.com.br/ancine-ignora-regiao-norte-em-resultado-absurdo-de-edital/

https://amazoniareal.com.br/curta-o-barco-e-o-rio-ganha-5-kikitos-em-gramado-que-venha-o-longa/

https://amazoniareal.com.br/primeiro-longa-metragem-do-acre-vence-em-gramado/

https://farofafa.com.br/2023/01/18/edital-da-ancine-escanteia-regiao-norte-e-vira-polemica-no-pais-todo/

https://www.brde.com.br/chamada-publica-brde-fsa-cinema-novos-realizadores-2022/

Local de Cobertura

Manaus

Wérica Lima

Formada em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Nilton Lins, é estudante de Ciências Biológicas no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Em sua trajetória, passou pela assessoria de comunicação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e publicou artigos pela organização internacional de mudanças climáticas Climate Tracker. Em 2019, participou da 1ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real e foi social media na agência entre julho de 2020 e janeiro de 2021. Empenha-se em fazer reportagens que representem a diversidade amazônica e dê espaço para as populações falarem sobre suas próprias realidades, a partir do jornalismo científico e socioambiental. ([email protected])

1 Comentário

matosmarieny disse:
21/01/2023 às 12:15
N a realidade não é so uma herança do governo passado, este era declaradamente discriminadores,bem como as dificuldades de captação de recursos,pela rei de incentivo,recentemente o edital do ministerio banco do brasil também nos exclui.
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