A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

A guerra maranhense

O governador do Maranhão, Flávio Dino (do PC do B), em seu segundo mandato, é o novo herói brasileiro (ou à moda brasileira). Ele é vangloriado (e se vangloria) por ter realizado com êxito uma autêntica operação de guerra, enganando […]

Respiradores comprados da China chegam ao Maranhão (Foto: Agência Maranhão)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 23/04/2020 às 18:46

O governador do Maranhão, Flávio Dino (do PC do B), em seu segundo mandato, é o novo herói brasileiro (ou à moda brasileira). Ele é vangloriado (e se vangloria) por ter realizado com êxito uma autêntica operação de guerra, enganando de uma só vez os governos da Alemanha, dos Estados Unidos e do próprio Brasil, para conseguir levar até São Luís 107 respiradores e 200 mil máscaras de proteção compradas na China. Graças a essa estratégia, desta vez (a terceira) a preciosa carga não foi retida pelo caminho, como aconteceu anteriormente. E o governador pôde impedir a morte de seus conterrâneos, colocando os interesses deles acima das veleidades burocráticas e das exigências formais.

O povo acima de tudo, mesmo que à custa de um processo judicial, que a Receita Federal anunciou, por ordem do presidente Jair Bolsonaro, adversário – ou inimigo – do governador.

A carga é menos expressiva do que a propaganda do governo estadual a anunciou. Desaparece se comparada à aquisição feita pela Vale, a maior empresa em atuação no Maranhão (e em outras 13 unidades federativas). Ontem (22), o sexto avião com insumos comprados pela mineradora na China para combater a disseminação do novo coronavírus, pousou em São Paulo.
Com essa viagem, já chegaram ao Brasil 12,8 milhões dos 15,8 milhões de equipamentos de proteção individual (EPIs) que a Vale irá repassar ao ministério da Saúde, além de 3,5 milhões de um total de 5 milhões de kits de teste rápido anunciados pela empresa.

A carga das seis aeronaves – dois aviões de carreira e quatro cargueiros – soma 178,7 toneladas, o equivalente ao peso médio de quase 179 carros populares. No total, serão mais de 600 toneladas de insumos até maio, além de 5 milhões de kits, comprados por bancos brasileiros com a ajuda logística da empresa. Para trazer tudo, serão necessárias 15 aeronaves (13 cargueiros e dois aviões de carreira). Parte dessa carga irá para o Maranhão. O Ministério da Saúde fará a distribuição.

Os 107 respiradores e 200 mil máscaras teriam custado 6 milhões de reais ao governo maranhense. Como parâmetro, apenas para considerar esse tipo de procedimento atualmente realizado, há a experiência de Brasília. O governador Ibaneis Rocha (MDB) adquiriu 300 mil testes rápidos da China por R$ 65 milhões. Custo unitário: R$ 216,67. Produtos chineses equivalentes custam R$ 150 até quando vendidos em pequenos lotes, segundo relato do jornalista Fernando Rodrigues, no site Poder 360.

Até agora não houve uma prestação de contas para individualizar os custos dos bens adquiridos, dos fretes e outras despesas incluídas numa operação complexa e, provavelmente, cara.

Um importador do Estado negociou diretamente com uma empresa chinesa para que o voo – fretado – fizesse escala na Etiópia, na África, evitando passar pela Europa e os Estados Unidos. Em março, respiradores comprados em Santa Catarina pelo governo estadual foram apreendidos pelo governo federal, que os incluiu no programa de distribuição nacional do ministério da Saúde. A segunda tentativa foi empreendida na China, mas a Alemanha pagou mais caro e ficou com um lote de 150 respiradores.

Quando chegou a São Paulo, a carga foi embarcada imediatamente em avião fretado com destino ao Maranhão, para evitar a alfândega e eventual retenção do governo federal. Somente no Estado o carregamento foi desembaraçado na Receita Federal.

Há um detalhe importante ainda não confirmado. O secretário estadual de Indústria e Comércio do Maranhão, Simplício Araújo, que coordenou a ação, disse à Folha de S. Paulo que o cargueiro que saiu da China e aterrissou em São Paulo foi pago pela mineradora Vale. O carregamento chegou a São Luís no dia 14. 20 dias depois. Até agora, a Vale nada disse a respeito.

Além do questionamento sobre custo real da operação de guerra e a sua efetiva necessidade, há dúvidas sobre a qualidade dos equipamentos comprados na China.

No seu artigo, Fernando Rodrigues lembra que a Espanha comprou 640 mil testes da China e teve de devolver o material: só 30% dos kits funcionavam direito. Na República Tcheca só 20% dos 300 mil testes tiveram desempenho aceitável quando aplicados. Já o Reino Unidos precisou descartar os 2 milhões de testes por não serem confiáveis.

Mal a carga chegou, já a Receita Federal anunciou que processará o governador do Maranhão, Flávio Dino, afirmando em nota que a operação foi “realizada sem o prévio licenciamento da Anvisa e sem autorização da Inspetoria Receita Federal em São Luís, órgão legalmente responsável por fiscalizar a importação das mercadorias”.

O órgão anunciou que vai “adotar providências legais cabíveis contra as pessoas físicas e jurídicas envolvidas, promovendo os competentes procedimentos fiscais, além de representação aos órgãos de persecução penal”. A Infraero registrou boletim de ocorrência no dia 15, bloqueando a retirada da carga.

O episódio fornece elementos concretos para uma análise sobre a ação do poder público no combate à epidemia do coronavírus, as interferências políticas, as jurisdições e alçadas, a complexidade do país, grande em tamanho e em população, oitava economia mundial, e a relação entre o poder e a sociedade. Enquanto isso, como tem sido a sua sina há muito tempo, o Maranhão vê a sua situação se agravar.

O Supremo Tribunal Federal não permitiu que o Ministério da Saúde fique com 68 respiradores comprados pelo Maranhão para uso em leitos de UTI destinados a pacientes com o coronavírus. Ao saber da compra, o ministério requisitou os equipamentos, produzidos por uma empresa de Santa Catarina. O STF determinou que os respiradores sejam devolvidos ao Maranhão em até 48 horas. Na decisão, o ministro Celso de Mello afirmou que a corte tem entendimento consolidado em relação à requisição, pela União, de bens públicos estaduais, salvo em caso de estado de defesa ou de sítio. Os equipamentos fazem parte da segunda tentativa que o governo maranhense fez para comprar os respiradores. A terceira é que foi realizada na China.

O Estado do Maranhão já é o sexto em número de casos do coronavírus confirmados: 1.757; e, em mortes: 76; conforme os dados divulgados hoje (23) pelo Ministério da Saúde. É pouco provável que a operação de guerra do governador Flávio Dino pudesse – ou possa – impedir essa evolução (ou involução). Mas também a participação centralizadora e autoritária do governo federal não melhora a situação. Nem no Maranhão nem no Brasil todo.

A imagem que abre este artigo mostra a chegada dos respiradores comprados da China no aeroporto de São Luís, no Maranhão (Foto: Agência Maranhão)

Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.